A campainha não tocou.
A porta não se abriu.
Mesmo assim, Rafael sabia que não estava sozinho.
O apartamento estava mergulhado em penumbra, só a luz da rua atravessando as frestas da cortina. Ele tinha acabado de chegar da faculdade, a mochila ainda escorregando do ombro, quando sentiu. O ar diferente, o silêncio pesado demais.
E então o viu.
Um homem sentado na poltrona ao canto da sala, imóvel, como se sempre tivesse pertencido àquele lugar. Os olhos dele brilhavam num tom prateado impossível de se explicar.
Rafael deixou a mochila cair no chão com um baque surdo. O coração disparou.
— Quem é você? — sua voz falhou, mas saiu firme o suficiente para cortar o silêncio.
O homem não se mexeu. Não parecia perigoso, mas também não parecia humano.
— Eu não devia estar aqui — disse, a voz grave, carregada de algo entre dor e certeza.
— Então saia! — retrucou Rafael, mas o estranho não se moveu. Apenas inclinou a cabeça, observando-o como quem estuda um enigma.
Foi então que Rafael percebeu o detalhe impossível.
Na mão do homem havia uma pena. Não branca, nem preta. Uma pena incandescente, que queimava como brasa sem se consumir.
O cheiro de ozônio invadiu a sala.
Rafael recuou, encostando-se na parede. O homem levantou-se devagar. Alto, imponente, cada gesto carregado de uma estranha solenidade. Aproximou-se apenas o suficiente para que Rafael pudesse sentir o calor que vinha daquela pena ardente.
— Você não deveria me ver — murmurou.
Antes que Rafael pudesse reagir, o homem deixou a pena cair no chão. Mas, em vez de se apagar, ela se dissolveu em luz, desaparecendo diante de seus olhos.
Quando piscou, o homem já não estava mais ali.
Sozinho na sala, Rafael respirava ofegante. Suas mãos tremiam.
Olhou para o chão em busca de algum sinal do que havia acontecido, mas não havia nada.
Nada, exceto uma marca em sua própria pele:
uma linha fina, brilhante, atravessando o braço como se tivesse sido desenhada a fogo.
Ele não sabia quem era aquele homem.
Mas sabia que aquilo não era o fim. Era apenas o começo.
Rafael não dormiu naquela noite. A marca brilhante em seu braço ardia como febre, e cada vez que fechava os olhos, via de novo o estranho na poltrona — os olhos prateados, a pena incandescente, a voz grave.
Na manhã seguinte, tentou convencer a si mesmo de que fora um surto, uma alucinação provocada pelo cansaço. Mas, quando puxou a manga da camisa, a linha luminosa ainda estava lá, fina como uma cicatriz recente.
Não era imaginação.
À noite, a chuva caía pesada sobre a cidade. Rafael saiu do trabalho atrasado, caminhando rápido pelas ruas encharcadas. Evitava olhar para o reflexo das vitrines, como se temesse encontrar o estranho à espreita.
Mas foi inútil.
Ao atravessar a praça quase vazia, ele o viu. O mesmo homem. De pé sob um poste apagado, cercado por sombras. A chuva batia em seu corpo sem deixá-lo molhado, como se deslizasse por uma barreira invisível.
Rafael parou de repente, o coração disparando.
— Você! — gritou, a voz ecoando pelo espaço molhado. — Quem é você? O que fez comigo?
O homem ergueu os olhos. Um brilho cortante atravessou a noite, refletindo nas gotas de chuva suspensas no ar. Ele deu um passo à frente.
— Você não devia me ver — repetiu.
— Já disse isso antes! — Rafael sentiu a raiva se misturar ao medo. — Mas eu vi. Eu sinto essa… coisa em mim! — ergueu o braço, mostrando a marca que ardia sob a pele. — O que é isso?
O homem hesitou. Seus olhos prateados se estreitaram, e por um instante, Rafael teve a impressão de que ele carregava um cansaço antigo, algo pesado demais para caber em um ser humano.
— É uma ligação — disse, baixo, como se fosse perigoso pronunciar aquela palavra.
Rafael deu um passo à frente, a chuva escorrendo pelo rosto.
— Ligação com o quê?
O homem não respondeu. Aproximou-se lentamente até ficar a poucos metros dele. E então, em voz quase inaudível, como uma confissão, murmurou:
— Comigo.
O silêncio que seguiu foi absoluto. Até a chuva pareceu cessar por um instante.
Rafael sentiu a marca em seu braço pulsar em resposta, como se confirmasse a palavra do estranho.
Antes que pudesse falar qualquer coisa, um clarão iluminou o céu — e quando piscou, o homem havia desaparecido outra vez, engolido pelas sombras.
Rafael ficou sozinho no meio da praça, o coração martelando contra o peito.
E, apesar do medo, uma certeza começava a nascer dentro dele:
Queria vê-lo de novo.
Rafael não conseguia parar de pensar nele.
Nos dias que se seguiram, tentou mergulhar no trabalho, nas aulas, nos livros empilhados na mesa. Mas era inútil. O nome que ele ainda não sabia, o rosto marcado por olhos prateados, a voz grave dizendo “ligação comigo” — tudo isso queimava em sua mente como se fosse parte de si mesmo.
A marca no braço latejava em intervalos irregulares, como um coração fora de compasso. Às vezes, Rafael jurava sentir o calor subir até o ombro, espalhar-se pelo peito, arrepiar-lhe a pele. Nenhum médico teria resposta para aquilo. Nenhuma lógica.
Na terceira noite desde o último encontro, Rafael sonhou. Mas não era um sonho comum.
Estava no mesmo apartamento, só que vazio, como se tivesse sido abandonado há décadas. As paredes descascadas, móveis cobertos por lençóis brancos, janelas abertas para um céu sem estrelas.
E então ouviu.
Um som grave, ritmado, que não era vento, nem trovão.
Um bater de asas.
O chão vibrou sob seus pés, e antes que pudesse reagir, uma sombra atravessou a sala e se ergueu diante dele. O homem — o mesmo de sempre, mas maior, mais terrível. Não mais escondido sob roupas humanas, mas deixando entrever algo impossível.
Atrás dele, as asas se abriam. Não eram brancas, nem negras. Eram feitas de fragmentos de luz e sombra, como vidros estilhaçados que refletiam todas as cores e, ao mesmo tempo, nenhuma. Cada batida levantava um vento que bagunçava os cabelos de Rafael e fazia a cortina bater como se fosse grito.
Rafael recuou até sentir a parede fria nas costas.
— O que você é? — sua voz saiu trêmula, mas firme.
O homem deu um passo à frente, aproximando-se até que Rafael pôde sentir o ar quente e elétrico que emanava de seu corpo. As asas se recolheram lentamente, como se fossem vivas, respirando.
— Não deveria me ver assim — disse ele, a voz soando em ecos múltiplos, como se falasse em várias línguas ao mesmo tempo.
— Mas eu vejo — rebateu Rafael, o coração disparando. — E sinto! — ergueu o braço, mostrando a marca incandescente. — Isso está me consumindo, você entende?
O estranho aproximou-se mais um passo. O espaço entre eles era quase inexistente. Com a ponta dos dedos, tocou a marca no braço de Rafael.
O impacto foi imediato.
Rafael arfou, o corpo inteiro tomado por uma onda de calor que o fez tremer. Sua visão escureceu nas bordas, e a sala pareceu desmoronar, como se não suportasse aquela energia. Imagens fragmentadas atravessaram sua mente: cidades em chamas, rios de luz, vozes cantando em línguas esquecidas.
— Você não devia carregar isso — murmurou o homem, afastando a mão.
Rafael caiu de joelhos, ofegante, suado.
— Então por quê? — gritou, a voz quebrada. — Por que eu?
O silêncio se arrastou por segundos que pareceram eternos. Então, finalmente, veio a resposta:
— Porque eu escolhi você.
O coração de Rafael parou por um instante. Não sabia o que significava — proteção, maldição, destino? — mas aquelas palavras o atingiram como uma revelação impossível de ignorar.
Quando ergueu os olhos, o homem já recuava, as asas recolhendo-se até desaparecerem por completo. Ele o olhou uma última vez, e dessa vez não havia apenas mistério em seus olhos prateados. Havia algo humano. Algo que queimava em silêncio.
— Você ainda não entende — disse. — Mas vai entender.
E com um bater de asas que sacudiu o ar ao redor, ele desapareceu.
Rafael ficou sozinho, de joelhos no chão, o braço latejando sob a marca ardente. O silêncio que se seguiu foi esmagador, mas dentro dele uma certeza crescia, incontrolável:
Aquele homem não era apenas um estranho.
Ele era a chave para algo que Rafael ainda não conseguia nomear.
E queria — precisava — vê-lo de novo.
Rafael acordou suando frio. O quarto estava mergulhado na penumbra, mas o corpo ainda latejava com o eco do sonho — ou do que quer que tivesse sido. As asas, os olhos prateados, a frase que não saía da cabeça: “Eu escolhi você.”
Era madrugada. O silêncio era quebrado apenas pelo tique-taque irritante do relógio. Ele se sentou na cama, respirando fundo, tentando convencer a si mesmo de que podia voltar à normalidade. Mas não podia.
Desde que o homem — se é que ainda podia chamá-lo assim — aparecera, nada em sua vida fazia sentido. O trabalho parecia distante, os amigos, irreais, as conversas do dia a dia soavam banais. A única coisa que pulsava em sua mente era ele.
Gabriel.
Não sabia o nome, mas no íntimo já o chamava assim. Era como se a palavra tivesse sido gravada dentro dele junto com a marca.
Durante o dia, Rafael tentava ignorar a obsessão. Mas cada reflexo no vidro, cada sombra no canto da sala, cada clarão de luz lhe dava a sensação de que Gabriel estava perto, observando.
À noite, a marca queimava mais. E era sempre quando a solidão batia que a dúvida surgia: aquilo era escolha sua ou uma imposição?
Será que queria vê-lo porque algo nele, em sua alma, desejava?
Ou porque Gabriel o havia marcado como um caçador marca a presa?
O medo e o desejo se confundiam em uma mistura insuportável.
Na quinta noite, Rafael não aguentou mais.
Saiu andando pela cidade sem rumo, como se os pés fossem guiados por uma força maior. A chuva fina escorria pelo rosto, o frio da madrugada cortava, mas ele não parava.
E, sem perceber, chegou à mesma praça em que vira Gabriel pela segunda vez.
O espaço estava vazio, exceto por uma figura parada sob o mesmo poste apagado.
Rafael parou, o coração disparando.
Gabriel estava lá.
Dessa vez não tentou fugir. Não se escondeu. Apenas ergueu os olhos prateados e o fitou, como se esperasse aquele encontro.
Rafael respirou fundo, caminhou até ele, e cada passo parecia arrastar o peso do mundo. Quando ficou a poucos metros, parou.
— Eu não sei mais o que é real — confessou, a voz embargada. — Só sei que penso em você o tempo todo. Que sinto isso queimando em mim… — ergueu a manga, revelando a marca em brasa. — E não sei se é desejo ou se é maldição.
Gabriel deu um passo à frente. A distância entre eles agora era mínima, e Rafael podia sentir o calor que emanava dele, como uma chama viva.
— É os dois — respondeu, em voz baixa, quase íntima.
O coração de Rafael falhou uma batida. O medo se misturava ao fascínio, e antes que pudesse reagir, Gabriel ergueu a mão. Não o tocou — apenas deixou os dedos pairarem a centímetros de seu rosto.
Rafael fechou os olhos, e nesse instante, sentiu o sopro quente de asas invisíveis envolver-lhe o corpo, como um abraço feito de vento e eletricidade. O desejo explodiu nele, tão forte quanto o pavor.
Quando abriu os olhos de novo, Gabriel já havia recuado.
— Ainda não está pronto — disse, a voz carregada de algo que parecia pesar séculos. — Mas vai estar.
E desapareceu, deixando o ar vibrando e Rafael em pedaços, dividido entre querer correr e querer segui-lo até o fim.
Sozinho na praça, Rafael percebeu: estava perdido.
Não importava se era amor, desejo ou condenação. Ele já não podia escapar.
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