Prólogo
Oslo, Noruega – 2021
Dimitri despertou sobressaltado. Mais uma vez, sonhara com aquela jovem — a terceira em tão pouco tempo. Se ainda tivesse coração batendo em seu peito, estaria acelerado. Pele clara como a aurora, cabelos negros como a noite: ela era a criatura mais bela que já vira… ou imaginara. “Não pode ser real”, pensou, perturbado.
Sentia-se nervoso, inquieto, quase febril. Precisava de uma bebida. Não de sangue, não ainda. Whisky. Serviu-se de um copo em seu escritório, engolindo a primeira dose de uma vez. O álcool queimou-lhe a garganta, mas não apagou a lembrança. A cada gole, a silhueta daquela jovem invadia sua mente, mais nítida, mais próxima.
Era um cansaço estranho o que o consumia. Não físico — isso seria impossível para alguém como ele. Dimitri era um vampiro de séculos, com força inigualável. Mas o vazio era outro: um tédio profundo, uma sede de algo que fosse além da eternidade monótona em que estava preso.
Lissa, sua companheira, dormia no quarto acima. Havia voltado da floresta exausta e embriagada de sangue humano, com aquela fúria selvagem que o excitava e o repelia ao mesmo tempo. Depois de se entregarem a uma paixão carnal e desmedida, ela caíra em sono pesado. Para ele, no entanto, aquilo não passara de mais uma noite desperdiçada.
Encostou o copo no braço da poltrona, lembrando-se de outra época. Século XIV. A peste negra devastava a Europa, e ele, faminto, mordeu uma vítima infectada. O sangue contaminado queimou em sua boca, e as alucinações vieram como uma febre ardente. Foram três dias de delírios até que, por fim, o corpo resistiu. Na primeira noite de sono tranquila após a tormenta, sonhou.
E nesse sonho, havia uma mulher. Dias depois, conheceu Lissa. Soube, então, que não era coincidência: era um presságio.
Agora, séculos depois, o sonho voltava a se repetir. Mas desta vez, não era Lissa. Era outra. Uma jovem diferente, cujo rosto ele não conseguia distinguir por completo, apenas a aura — e isso bastava para incendiar seus sentidos.
“Ela está em meu caminho”, concluiu, os olhos estreitos. “E não vai demorar para eu encontrá-la.”
Saiu para a noite gélida de Oslo. Precisava mais do que whisky. Precisava de sangue embriagado de álcool, algo que entorpecesse aquela visão. Caminhou pelas ruas, elegante como sempre, o blazer impecável e a bengala em mãos. Sentia os olhares sobre si, como se sua presença rasgasse o tecido da realidade comum.
E então a viu.
A princípio, pensou ser apenas uma humana qualquer, uma estudante de uniforme, estatura mediana. Mas quando seus olhos se encontraram, o mundo parou. O cheiro de seu sangue o atingiu como um trovão. O corpo imortal de Dimitri reagiu com um arrepio incontrolável.
Ela não podia ser apenas uma garota. Não podia.
“Quem é você?” pensou, enquanto o desejo e o medo se misturavam dentro dele.
Quando a jovem voltou o olhar em sua direção, ele desapareceu na mesma hora. Não podia se arriscar. E se fosse uma armadilha? Uma feiticeira mascarada? Embora não sentisse cheiro de magia, a intensidade daquele sangue era algo que jamais experimentara.
A fome apertou, mas quando tentou morder um mendigo em uma viela próxima, a lembrança dos olhos da garota o paralisou. O corpo recusou-se a continuar. Ele a soltara, quase em desespero, e sumira na noite, deixando a sede corroer-lhe a garganta.
Naquele momento, teve certeza:
Dimitri Petrache estava perdido.
Capítulo 1 – O princípio do fim
Oslo, Noruega – 2022
O inverno castigava Oslo com temperaturas abaixo de zero. A neve cobria as ruas como um manto silencioso, mas nada disso seria motivo suficiente para Emmy faltar à escola. Sentia-se febril, os olhos pesados e o corpo dolorido, mas sabia que sua mãe jamais a deixaria ficar em casa por causa de uma simples indisposição. Por isso, guardou silêncio.
Levantou-se devagar, tomou um banho quente, vestiu-se, bebeu uma xícara generosa de café fumegante, colocou o casaco grosso e enfrentou o frio da manhã.
Na escola, as horas se arrastaram. As aulas pareciam mais desinteressantes do que nunca, e Emmy mal teve ânimo para conversar com os amigos. Durante o intervalo, não tocou no lanche, preferindo ficar quieta, observando os minutos se arrastarem. Sentia-se fraca, inquieta. Ao menos pôde sorrir ao se despedir de Suzana, sua melhor amiga, quando desceu do ônibus de volta para casa.
Assim que entrou em seu quarto, as forças lhe abandonaram. Naquela noite, quando finalmente deitou-se, sabia que não seria fácil descansar. Havia dias que sonhava repetidamente com algo perturbador. Acordava mais cansada do que quando se deitava.
E não foi diferente.
Pela terceira vez, despertou trêmula, o corpo suado, gelado, o coração disparado. O sonho lhe causava medo e fascínio ao mesmo tempo — uma mistura avassaladora que a confundia. Nada era nítido: os rostos, os lugares, tudo era envolto em sombras. Mas a intensidade era tão real, tão hipnótica, que parecia impossível ter sido apenas fruto de sua imaginação.
— Estou ficando louca... — murmurou, ainda trêmula.
Era madrugada, quase amanhecendo. Emmy precisava se arrumar para mais um dia longo. Tentou afastar o sonho da mente, mas não conseguia. Era extraordinário e assustador. Ela gostava de filmes de terror, sobretudo os que envolviam vampiros, mas a estranha sensação ultrapassava qualquer fantasia.
Tomou café, entrou no ônibus em piloto automático e atravessou o dia como uma sombra. O plano de ignorar aquilo falhara miseravelmente. Quanto mais tentava esquecer, mais obcecada ficava com a presença que rondava seus sonhos. Não conseguia entender por que tinha a sensação de estar sendo observada, drenada.
Naquela noite, ao deitar, o pesadelo voltou com força.
Encontrou-se em uma rua deserta, mal iluminada por postes de luz amarelada. Ao longe, um túnel escuro. Um arrepio percorreu seu corpo. Algumas pessoas se aglomeravam na entrada do túnel, todas vestidas de preto. Seus instintos gritaram para que fugisse, mas então ela o viu.
O estranho.
Era alto, esguio, com o peito amplo parcialmente exposto pela camisa vinho entreaberta. O cabelo negro, comprido, se confundia com a noite, e sua pele pálida lembrava porcelana. Quando sorriu, Emmy sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. Ele avançou em sua direção com movimentos tão rápidos que, em um piscar de olhos, já estava diante dela.
— Achou o que procurava, milady? — a voz grave e rouca a envolveu como uma melodia proibida.
Antes que pudesse reagir, sua mão firme segurou-lhe a nuca. Os lábios quentes tocaram sua pele, e um arrepio ardente a percorreu. Então, a dor: duas perfurações em seu pescoço, o sangue escorrendo quente, o cheiro metálico no ar. Emmy tentou resistir, mas despertou ofegante em sua cama.
Só que dessa vez havia algo diferente.
A dor em seu pescoço não sumira com o sonho. Correu até o espelho. Duas pequenas marcas estavam lá, vivas e reais.
— Não... não pode ser... — sussurrou, apavorada.
A voz de sua mãe a tirou do transe:
— Emmy, venha almoçar. Está bem?
— Estou... gripada, só isso — respondeu, tentando disfarçar.
Os dias seguintes foram um tormento. O medo não a abandonava. Sentia-se vigiada, via vultos quando estava sozinha. As marcas desapareceram, mas a pele do pescoço ardia como se fosse constantemente tocada por dedos invisíveis.
O tempo passou. Emmy já não conseguia se concentrar na escola, afastava-se dos amigos e até dormia no quarto da mãe, inventando desculpas para não ficar só. Sua intuição gritava que corria perigo, mas não sabia de quê.
Até que Suzana lhe deu uma ideia:
— Escreve um diário, amiga. Um diário dos sonhos. Pode ajudar a controlar isso.
— Controlar?
— Sim. Se você anotar os detalhes, pode até aprender a mudar o rumo dos sonhos.
Naquela tarde, Emmy comprou um caderno. Sentou-se à escrivaninha, encarou a página em branco, hesitou. Riscou, recomeçou, até que enfim encontrou as palavras certas:
"Olá. Nestas páginas vou registrar algo que poderá assustar quem, no futuro, vier a lê-las. Tudo aqui é a mais pura e cruel verdade. Há meses venho sendo atormentada por um demônio de cabelos pretos, pele pálida e um sorriso diabolicamente sensual. Ele surge nos meus sonhos, mas seus atos atravessam a barreira da imaginação e tocam o mundo real. Prepare-se, leitor... estes sonhos podem causar arrepios."
Leu em voz baixa, satisfeita. Preencheu metade do caderno de uma vez, escrevendo como se uma força maior guiasse sua mão. Quando fechou a última página, um arrepio percorreu-lhe a nuca. A sensação de estar sendo observada voltou, mais intensa do que nunca.
Sorriu de leve, encarando a escuridão do quarto.
— Se a sua intenção é me enlouquecer... vai ter que lutar mais por isso.
Capítulo 2 – Solitário à beira da loucura
Já havia se passado um ano desde o dia em que Dimitri viu, pela primeira vez, a moça de cabelos negros que o assombrava em seus sonhos. Desde então, ele permanecia recluso em seu castelo nas montanhas de Bergen. Perto o suficiente para encontrá-la se desejasse, mas distante o bastante para se convencer a não ceder à tentação a cada pôr do sol.
É claro que distância alguma poderia impedi-lo. Bastaria um pensamento para se teletransportar até ela. Mas usava essa desculpa para conter o desejo. Todas as manhãs, quando se deitava ao lado de Lissa, era a jovem desconhecida que dominava sua mente. Quando fazia amor com sua esposa, era a imagem daquela outra mulher que o incendiava por dentro. Ela o consumia de uma forma que nem mesmo os séculos haviam preparado seu coração morto para suportar.
Estava enlouquecendo.
Sonhava com ela noite após noite. Nos últimos meses, começara a usar um antigo feitiço aprendido com uma das bruxas de Salém, ainda nos tempos em que a fogueira devorava mulheres por muito menos. Fora essa bruxa quem lhe ensinara a arte de caminhar pelos sonhos alheios. E Dimitri, em sua loucura, usava o feitiço para invadir o sono da garota. Nunca mostrava o rosto, receava que ela o reconhecesse, mas já não era suficiente. Seus passos no mundo onírico, em vez de atraí-la, estavam apenas a assustando.
— No mundo da lua novamente, meu amor? — Lissa quebrou o silêncio, com a voz carregada de impaciência.
Dimitri estava há horas parado diante da janela da biblioteca, fitando o vasto jardim do castelo. Mas não via flores nem árvores. Apenas o rosto da garota.
— Ah, Lissa… só estava pensando.
— E posso saber em quê? Ou em quem?
— Por favor, hoje não. — Ele fechou os olhos, cansado. — Não tenho forças para mais discussões.
— Então me diga de uma vez o que aconteceu há doze meses. O que foi que te deixou assim? Preso em um mundo onde não há espaço para mim.
Dimitri suspirou. Seu peito imóvel parecia pesar toneladas.
— Já conversamos sobre isso. Não aconteceu nada. Apenas ando refletindo sobre a eternidade e o que tenho feito dela. — Forçou um sorriso. — Estava pensando em voltar a pintar… ou a tocar. O que acha?
Mudar o foco era a única forma de evitar uma nova briga. Mas desde que vira a garota em Oslo, a paciência de Lissa diminuía a cada dia.
— Que seja. — Ela cruzou os braços. — Desde que volte a ser o meu Dimitri de antes.
Ele se aproximou e depositou um beijo rápido em seus lábios.
— Voltarei a ser eu mesmo, querida. Prometo.
— É bom mesmo. Irei até a casa dos Vanrouters. Haverá uma caça ao tesouro. Quer vir comigo?
— Não hoje. Preciso caçar. Já faz mais de uma semana desde a última vez que me alimentei. Talvez depois…
— Por que não disse antes? Eu cacei assim que acordei. Poderíamos ter ido juntos.
— Na próxima vez, iremos. Prometo.
Lissa lhe lançou uma piscadela antes de desaparecer no ar. Dimitri permaneceu imóvel por alguns instantes, mas logo seus pensamentos voltaram ao mesmo ponto: ela.
Como seria provar o doce sabor de seus lábios? O gosto ardente de seu sangue? Bastava recordar o perfume que exalava daquela jovem para que suas presas latejassem de desejo. A sede o dominava, insuportável. Precisava caçar imediatamente ou se perderia por completo.
Abriu a janela. O vento frio da noite revolveu seus cabelos longos. Pela primeira vez em dias, sentiu-se livre. Pensou em descer até a vila mais próxima e beber de algum humano ao acaso, mas a ideia o nauseou. Não queria presa fácil. Queria merecer sua caça.
E então se teletransportou.
Quando abriu os olhos, um arrepio percorreu sua espinha. Estava em Oslo.
A cidade dela.
Precisava sair dali imediatamente ou não resistiria. Estava prestes a dar meia-volta quando uma brisa suave trouxe o aroma inconfundível do sangue da jovem até ele.
Seus olhos escureceram. As presas cortaram sua própria pele.
Era tarde demais.
Dimitri não iria embora até sentir o gosto daquele sangue em seus lábios.
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