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O ESPELHO DA MEDUSA

####A Primeira Prisão

As praças da Grécia antiga eram palcos não apenas de debates filosóficos, mas também de conspirações disfarçadas em discursos. No meio de tantos sofistas, havia um homem cujo nome era sussurrado com reverência e temor: Diógenes de Éfira.

Ele não precisava da verdade; para ele, a verdade era apenas um molde, uma argila maleável em suas mãos, que podia ser modelada conforme a moeda que recebia. A cada causa vencida, sua fama crescia, e sua bolsa de ouro pesava mais.

Numa noite abafada, à luz trêmula das tochas, um homem de vestes finas o procurou. Era Cléon, um comerciante amargo, marcado pelo desejo daquilo que não lhe pertencia. Ele caminhava com passos nervosos até a casa de colunas largas onde o sofista o aguardava.

— Então, Cléon… — disse Diógenes, recostado em um triclínio, taça de vinho nas mãos. — Trouxe-me sua angústia ou sua oferta?

— Ambos — respondeu o comerciante, lançando um olhar ao redor, temendo ser ouvido. — Existe um homem… Ele possui terras, casas, uma fortuna inteira que deveria ser minha. Ele usurpou aquilo que por direito pertence à minha família.

— O que deseja de mim? — Diógenes ergueu uma sobrancelha, já antevendo a resposta.

— Que ele seja condenado. Não basta perder o nome. Ele deve morrer. Só assim sua riqueza será liberta.

Diógenes sorriu, um sorriso que não carregava alegria, mas cálculo.

— E quanto vale a vida de um homem justo para você, Cléon?

— Vale cem moedas de ouro agora… e mais duzentas quando sua fortuna estiver em minhas mãos.

O sofista girou a taça, o vinho vermelho refletindo a luz das lamparinas como sangue.

— Três centenas de moedas… pelo preço de um argumento. — Ele riu. — Aceito. Mas lembre-se: não serei eu a matá-lo. Será o próprio povo a exigir sua morte, acreditando que a justiça está sendo feita.

Cléon assentiu com um brilho cruel nos olhos.

— Então faça. Convença-os. Conduza-o à cicuta.

---

O julgamento aconteceu na ágora, diante de magistrados e cidadãos. O acusado, Euríalo, um homem de caráter íntegro, permaneceu firme no centro da praça, cercado por olhares desconfiados.

A multidão murmurava. Alguns o defendiam em silêncio, outros já acreditavam nas acusações espalhadas por Cléon.

— “Cidadãos de Éfira!” — a voz de Diógenes ecoou forte, sua presença dominando o espaço. — “Estamos diante de um crime hediondo: o roubo da herança, a traição entre irmãos de sangue! Cléon aqui foi lesado por aquele que deveria ser leal! Euríalo, este homem de falsa honra, ergueu sua fortuna sobre a injustiça!”

Euríalo ergueu a voz:

— “É mentira! Minhas posses são minhas por direito, herdadas de meu pai, conquistadas pelo meu esforço! Nunca roubei, nunca enganei!”

Mas Diógenes sabia envenenar corações com suas palavras. Ele não precisava de provas, apenas de imagens fortes que inflamassem a imaginação do povo.

— “Vejam suas mãos! Não estão manchadas de sangue? Não são estas as mãos de um ladrão que sorri diante da dor de seu próprio irmão?”

A multidão se agitou.

— “É verdade! É um ladrão!” — alguns gritaram.

Euríalo tentou resistir, seus olhos buscando apoio.

— “Ouçam-me! Cléon mente! Ele quer minha fortuna!”

Mas Diógenes ergueu a mão, impondo silêncio.

— “Mentira? Como pode ser mentira se as lágrimas de Cléon são visíveis a todos? Como pode ser mentira se sua ganância é tão clara quanto o sol que nos ilumina? O roubo é evidente, a traição é evidente! E, diante de tais crimes, só existe uma pena justa: a morte pela cicuta!”

As vozes se ergueram em uníssono:

— “Morte! Que beba a cicuta! Que pague por seus crimes!”

Euríalo foi levado à força, sua esposa e filhos chorando aos pés dos magistrados. Diante da multidão, o cálice amargo foi colocado em suas mãos.

— “Sou inocente!” — gritou ele uma última vez, antes de levar o veneno aos lábios. — “Deus é minha testemunha!”

Seu corpo tombou lentamente, e o silêncio caiu sobre a praça.

Cléon sorriu.

E Diógenes, impassível, apenas aguardou sua recompensa.

Naquela mesma noite, recebeu de Cléon a bolsa de ouro prometida. As moedas tilintaram com um som metálico, frio, enquanto ele as guardava sob a túnica.

— “Você tem sua fortuna, Cléon” — disse o sofista. — “E eu, a minha.”

E, rindo de sua vitória, deixou o local, seguindo pelas ruas escuras que o conduziam de volta à sua casa.

---

Mas os deuses não esquecem.

Enquanto caminhava, a terra tremeu sob seus pés. Uma fenda se abriu silenciosa, como uma boca faminta do submundo. Diógenes, distraído com o peso do ouro, não viu.

E foi tragado.

O impacto o lançou às entranhas da terra.

Por um momento, havia apenas trevas. Mas então, chamas surgiram nas paredes, acendendo-se uma a uma, como tochas que aguardavam sua chegada. O ambiente revelou-se um templo antigo, esquecido, guardado pelo silêncio dos séculos.

No centro, erguia-se um espelho sobre um altar de pedra. Sua superfície brilhava como água imóvel, refletindo mais do que luz — refletindo destino.

Diógenes se aproximou, ainda atônito. E no reflexo não viu a si mesmo, mas a Medusa: olhos flamejantes, cabelos de víboras, e um sorriso que gotejava veneno.

Um chocalho ecoou, como serpentes festejando.

A voz ressoou como trovão na mente dele:

— Você foi julgado. Você foi condenado.

O vidro se partiu em ondas, tragando o sofista. Ele gritou, tentou resistir, bateu as mãos contra a superfície, mas já estava do outro lado: preso em um labirinto infinito de espelhos, cada reflexo multiplicando sua agonia.

Labirinto e a Sentença)

Quando o vidro se fechou sobre Diógenes, não houve escuridão; houve multiplicação.

Primeiro, o frio. Depois, um clarão metálico, como lâmina recém-desembainhada. À sua frente, erguiam-se corredores intermináveis, todos revestidos por espelhos que não refletiam apenas sua figura — refletiam sua culpa, ampliada, repetida, distorcida, até beirar o insuportável. Em cada superfície, um Diógenes olhava para o outro, como se as próprias versões de si o julgassem em uníssono.

Algo rastejou pelo chão liso, deixando um rastro de prata e veneno. A cauda da Medusa serpenteou por trás dele, ergueu-se, e, num estalo seco, enlaçou-lhe o tornozelo. Diógenes foi arrastado para o coração do labirinto, as palmas bateram contra o vidro, os ecos explodiram de todos os lados.

— Aqui não há portas, sofista — sibilou a voz, não de um ponto, mas de todos os pontos ao mesmo tempo. — Há apenas reflexos. E nenhum deles devolverá você ao mundo que conhece.

Ele tentou firmar o corpo, ofegante, a túnica em desalinho, as moedas que ainda prendia à cintura tilintando como pequenos sinos de um funeral. A Medusa surgiu multiplicada — mil rostos, a mesma boca, o mesmo sorriso ferino. Os guizos das serpentes em sua cabeça eram um coro de chocalhos rituais.

— Veja, apontou uma de suas répteis, em um espelho lateral.

Diógenes voltou o rosto e sentiu os joelhos fraquejarem: ali, almas golpeavam silenciosamente as paredes de vidro de suas jaulas refletidas. Eram sombras de homens e mulheres que o sofista reconheceu sem reconhecer: rostos que, como ele, haviam se servido da mentira, do abuso do verbo, da força sem justiça. Um punhado sangrava dos nós dos dedos de tanto esmurrar o impossível. Outros apenas choravam, com a boca aberta em gritos que somente o silêncio escutava.

— Daqui você não sai, disse a Medusa, aproximando-se, os cabelos-víbora tamborilando. — Pode contar suas moedas. Pode repetir suas teses. Pode afiar a língua. Tudo isso perde o fio aqui dentro. Eu fui injustiçada por uma deusa e me fizeram monstro — pois bem, fiz-me medida. A partir desta noite, onde houver um espelho, haverá julgamento. Onde houver reflexo, haverá sentença.

Diógenes, num último lampejo de soberba, arreganhou um sorriso torto:

— Eu… eu posso defender-me. Ninguém debateu comigo ainda. Dê-me uma assembleia e venceremos…

— Você já debateu a vida inteira, e venceu às custas de vidas que não eram suas, cortou ela, e sua voz ricocheteou como aço. — Agora você ouve.

As paredes vibraram, e um dos espelhos, diante deles, fluidificou como água de nascente. Nele, apareceu a imagem de uma casa iluminada por lamparinas: a casa do usurpador. Cléon avançava como um rei temporário, calcanhares pesados na pedra polida, a mão varrendo o ar com impaciência.

— “Saiam! Saiam todos!” — bradou ele, e o som, trazido pela lâmina límpida do espelho, chegou nítido ao labirinto. — “Esta casa é minha por sentença da cidade! Viuva, leve seus filhos! Servos, obedeçam-me, ou todos beberão amargura como seu senhor!”

A viúva apertou as crianças contra o peito e chorou. Dois servos mais velhos tentaram argumentar, mas Cléon os empurrou com o dorso da mão; a prata de um bracelete brilhou, arrogante, à luz bruxuleante.

Então veio o sibilo. Primeiro, suave. Depois, crescente. Um guizo que ninguém ali reconhecia, mas que a alma teme antes de aprender o nome.

— “Que barulho é esse?” — rosnou Cléon, crispando o cenho, como se a audácia de um som invisível o insultasse.

A lamparina, sobre uma mesa, oscilou. A chama inclinou-se na direção de um grande espelho oval, emoldurado por madeira escura. A superfície, até então lisa, ondulou. O reflexo deixou de repetir os vivos no aposento e mostrou, ao fundo, olhos que não pertenciam a homem nenhum. Os cabelos de víboras remexeram-se, e a Medusa sorriu — não no mundo da casa, mas através dele.

— “Quem ousa?” — Cléon deu um passo à frente, já tenso, sem ousar pronunciar medo.

— Eu ouso, disse a voz que o ar não sustentava, e o espelho respondeu em ondas. Você matou um inocente pela avareza e pela ambição. Vim buscá-lo. Seu cúmplice já me aguarda.

A cauda rompeu a superfície como lança, atravessando o vidro sem parti-lo. Num golpe rápido, enredou-se na cintura de Cléon. Ele perdeu o ar, contorceu-se, tentou agarrar-se ao aparador. A viúva gritou. Os servos tropeçaram para trás, derrubando uma cadeira.

— “Solte-me! Solte-me!” — urrava ele, arranhando a cauda, sentindo na pele o frio vivo daquilo que não podia ser da Terra. — “Guardas! Guardas!”

Não havia guardas. Havia o espelho. E havia a sentença.

Com um puxão, o usurpador foi arrastado. Os calcanhares arranharam o piso, deixando riscos como unhas na lápide. A moldura tremeu, beijada por um vento que não vinha de lugar algum. Quando seu corpo tocou a superfície, não houve choque: houve passagem. Sumiu inteiro, como se caísse dentro de um lago sem fundo. Sua última visão do mundo foi a viúva ajoelhada, as crianças abraçadas às saias, os servos com as mãos sobre a boca, e a certeza tardia de que o tribunal dos homens não era o último.

— Traga-o para mim, ordenou a Medusa, e no labirinto, a água de prata reconstituiu-se, abrindo-se então atrás de Diógenes. Ele virou-se a tempo de ver Cléon despencar no chão de vidro — duro, intacto, infinito — e quedar-se de quatro, arfando, olhos enormes.

Por um instante, silêncio. Só o compasso do medo.

Depois, os dois se ergueram, cambaleantes, e se viram. Não um frente ao outro, mas mil vezes um frente ao outro, em corredores paralelos. Cada movimento que faziam replicava-se à exaustão, como se um exército de sombras representasse suas culpas. Cléon foi ao encontro do sofista e, num muro de transparência, ambos colidiram — punhos fechados, dentes à mostra, gladiadores sem arena.

— Você me trouxe para cá! — cuspiu Diógenes, a testa pressionada ao vidro. — Você me pagou para torcer a verdade! Sem você, eu teria dormido esta noite sob meu próprio teto!

— E sem você, eu não teria acreditado que podia roubar um destino, Diógenes! — devolveu Cléon, a voz falhando. — Você está aqui pela sua ambição, pela sua arrogância, pela sua avareza! Ganhou trezentas moedas com o preço do sangue de um justo!

— E você está aqui porque sua fome te cegou! — o sofista golpeou o vidro com a base da mão, e o som atravessou os corredores como trovão. — Comprou meu verbo para matar a verdade que te condenava!

Espelhos estalaram como gelo velho. Do teto, uma sombra caiu como véu: a Medusa desceu entre as fileiras, e, por onde passava, os reflexos se multiplicavam outra vez, até que não fosse mais possível saber quem olhava quem, quem falava com quem, se os homens se dirigiam um ao outro ou apenas às suas próprias versões cristalinas.

— Chega.

A palavra não foi alta, foi inevitável.

Os dois ficaram imóveis, não por obediência, mas por compreensão tardia de que nenhum gesto ali era deles. A Medusa aproximou o rosto, e, quando falou, foi como se a pedra aprendesse a ter voz:

— Vocês ficarão aqui pela eternidade. São a minha coleção. Meus bichinhos de estimação.

As serpentes riram — um risinho de guizos, cruel, antigo.

— Cada um de vocês carregará seus próprios pecados, sem máscaras, sem plateia, sem aplausos. A eternidade é tempo suficiente para aprender o peso de uma mentira. E não adianta: os deuses não virão libertá-los. Eles me deram este poder, e vocês dois o liberaram — abriram-me caminho para todos os reflexos. A partir de agora, eu posso entrar em qualquer espelho.

Ela ergueu a mão, e todos os espelhos responderam como uma só superfície, respirando. A luz, que não tinha fonte, moveu-se como maré.

— Vocês gladiam entre si como se existisse vitória, mas aqui não há vencedores. Há sentenciados. E cada novo injusto que olhar um espelho com as mãos sujas do que fez será meu. Pensem, humanos: vocês têm pecados? Então pensem antes de olhar o espelho. Porque ele pode ser a sua prisão.

Diógenes tentou falar; o som que saiu foi um sopro. Cléon bateu uma vez, outra, uma terceira — a pele se abrindo; o vidro, intacto. Atrás deles, outras almas, antigos e recentes, aproximaram-se em silêncio. Não havia consolo entre iguais; havia, no máximo, reconhecimento.

— Olhem-se, ordenou a Medusa, e o verbo virou lei.

Os espelhos obedeceram. Em todos, Diógenes viu o próprio riso no momento em que contava as moedas; em todos, Cléon viu o exato segundo em que empurrou a viúva com o dorso da mão. Repetição. Repetição. Repetição. Até que a memória deixasse de ser lembrança e se tornasse pena.

— Neste labirinto, concluiu ela, todas as saídas são entradas. Vocês andam em círculos até admitirem o que são, e, quando admitem, caminham mais, e descobrem que ainda não foi o bastante. Infinito é o nome do meu chão.*

As tochas invisíveis diminuíram, como se a própria luz se cansasse. Em algum lugar, muito longe e, ao mesmo tempo, logo ali, ouviu-se o chorinho de uma criança — eco que entrara com Cléon e perdera o caminho de volta.

A Medusa ergueu-se, voltou-se para um dos corredores e começou a se afastar. Ao mover-se, era como se arrastasse um manto de reflexos, e cada guizo das serpentes lembrava um relógio que não contava horas, mas culpas.

— Colecionarei vocês bem, disse sem olhar para trás. — E quando o próximo injusto erguer os olhos, eu estarei do outro lado.

Os dois homens, agora reduzidos à honestidade da própria queda, quedaram-se sem fala. Diógenes encostou a testa no vidro, e, por um segundo, o sofista que governara assembleias ousou sussurrar uma oração — não para um deus, mas para uma verdade que nunca servira.

Cléon, diante dele, fez o mesmo gesto. E em mil espelhos essa pequena rendição repetiu-se, um mosaico de arrependimentos tardios.

Lá fora, em casas, bordéis, templos, becos e palácios, inúmeros espelhos adormeciam sobre cômodas e paredes. Alguns refletiam flores; outros, feridas. A partir daquela noite, todos refletiriam também destinos.

E se você, leitor, me perguntar onde estava a Medusa, eu lhe responderei como respondem as coisas que não possuem lugar, mas acesso:

— Eu estava exatamente onde você ousou me olhar.

E se me perguntar quando olho de volta, direi apenas:

— **Quando você menos esperar e quando você mentir.**

####O Imperador no Espelho

Eu julgo e condeno os culpados, e protejo os inocentes.

Onde houver reflexo, há sentença. Onde houver olhar, há destino.

Roma brilhava como ouro martelado à luz das tochas — e ardia como resina no braseiro. Nos corredores do Palácio Dourado, a seda arranhava o mármore e o riso de cortesãos cobria o medo como perfume barato cobre o cheiro de fumaça. No centro de tudo, Nero — não um governante, mas um espetáculo que exigia plateia eterna.

Era jovem quando o chamaram de César, e foi cedo que o título escorregou para dentro de sua cabeça como vinho quente derramado demais. Agripina, a mãe, teceu sua ascensão com dedos de aranha; mas o filho, assim que sentiu o gosto do poder, mordeu a teia e devorou a fiandeira. Conspirou, errou as primeiras vezes, insistiu. Quando afinal o corpo da mãe jazia nos salões, Nero aproximou-se com os olhos acesos de febre.

O Matricídio e os Sacrifícios

A noite em que Agripina tombou foi a noite em que Roma perdeu qualquer esperança de redenção em seu imperador.

A mãe, que durante anos o havia guiado e manipulado, agora era vista como obstáculo. Nero armou sua morte como quem monta uma peça teatral. Houve veneno no vinho, houve emboscadas, mas Agripina parecia escapar de todas as ciladas. Até que, finalmente, soldados foram enviados para concluir a execução.

Quando o corpo foi trazido ao palácio, Nero não chorou. Não se envergonhou.

Aproximou-se, o olhar febril iluminado pelas tochas, e ordenou o impensável:

— “Abram o ventre dela. Quero ver de onde eu vim. Quero ver se carrega ouro. Como poderia uma mulher comum ter dado à luz alguém tão brilhante como eu?”

Os servos hesitaram, mas a ordem era lei. As lâminas cortaram, e o ventre da mãe foi exposto como oferenda macabra ao delírio do filho. Nero observava fascinado, como se esperasse encontrar tesouros. Encontrou apenas sangue.

— “Nada. Apenas vazio. Apenas carne. Ela não era digna de mim.”

Naquele instante, algo se rompeu. Não era apenas um parricida. Nero havia se transformado em um ser que profanava a própria origem.

E Nero aplaudia. Aplaudia como se assistisse a um espetáculo de teatro.

— Nada. Só carne. Ela nunca foi digna de mim.

Naquele instante, uma rachadura abriu-se no mundo: não no piso de mármore, mas nos reflexos. Os espelhos do palácio escureceram nas bordas como prata antiga; dentro deles, um sussurro de guizos levantou-se, tão leve que nenhum ouvido ousou admitir que ouviu.

A sede de ver “o que havia por dentro” não parou ali. Se não havia ouro no ventre de Agripina, haveria em outros — decidiu. E a ordem saiu, limpa, com o mesmo tom com que pedia vinho:

— Tragam-me grávidas.

O Matricídio e os Sacrifícios

A noite em que Agripina tombou foi a noite em que Roma perdeu qualquer esperança de redenção em seu imperador.

A mãe, que durante anos o havia guiado e manipulado, agora era vista como obstáculo. Nero armou sua morte como quem monta uma peça teatral. Houve veneno no vinho, houve emboscadas, mas Agripina parecia escapar de todas as ciladas. Até que, finalmente, soldados foram enviados para concluir a execução.

Quando o corpo foi trazido ao palácio, Nero não chorou. Não se envergonhou.

Aproximou-se, o olhar febril iluminado pelas tochas, e ordenou o impensável:

— “Abram o ventre dela. Quero ver de onde eu vim. Quero ver se carrega ouro. Como poderia uma mulher comum ter dado à luz alguém tão brilhante como eu?”

Os servos hesitaram, mas a ordem era lei. As lâminas cortaram, e o ventre da mãe foi exposto como oferenda macabra ao delírio do filho. Nero observava fascinado, como se esperasse encontrar tesouros. Encontrou apenas sangue.

— “Nada. Apenas vazio. Apenas carne. Ela não era digna de mim.”

Naquele instante, algo se rompeu. Não era apenas um parricida. Nero havia se transformado em um ser que profanava a própria origem.

E foi depois disso que surgiu sua nova obsessão.

Se não encontrou ouro no ventre da mãe, buscaria em outros ventres.

Ordenou que mulheres grávidas fossem capturadas e trazidas ao palácio. Escravas, cidadãs, esposas de soldados — nenhuma estava a salvo.

— “Quero ver a vida antes da vida”, dizia ele, com um brilho doentio nos olhos.

As câmaras de mármore viraram câmaras de sacrifício. O grito das mães ecoava, o choro interrompido dos bebês não nascidos pairava no silêncio.

E Nero aplaudia. Aplaudia como se assistisse a um espetáculo de teatro.

Vieram de toda parte: escravas e patrícias, esposas de soldados e filhas de mercadores. A câmara fria de mármore transformou-se em sala de sacrifícios. Ele observava como criança de olhos vidrados diante de um brinquedo cruel, esperando que a vida revelasse algum segredo cintilante. Não revelou. Revelou gritos. Revelou silêncio. Revelou que o poder, sem freio, cava abismos.

Roma aprendeu a andar com os ombros encolhidos. Artistas que arrancavam aplausos espontâneos descobriam, na manhã seguinte, que a voz tem preço e que a mão virtuosa pode ser quebrada como galho seco. Nas corridas noturnas, Nero exigia a glória; se o acaso afrontava, os cavalos vencedores desapareciam para trás de muros grossos, e uma fumaça sombria subia ao céu como assinatura de culpa.

E, ainda assim, nada lhe foi tão precioso quanto um espelho vivo: um adolescente de traços delicados, olhos grandes, medo à flor da pele — Esporo.

Nero o enxergou numa apresentação e farejou destino. O palácio cochichou, o povo zombou, a corte fingiu não ouvir. O menino foi tomado à força do mundo que ainda lhe cabia e, por ordem imperial, o futuro lhe foi mutilado. Não houve poesia naquele ato, só barbárie. Depois vieram as roupas que não eram suas, o véu, a cerimônia ridícula: o imperador apresentando-o como “esposa”. Os risos cortavam Esporo como lâminas invisíveis. À noite, quando o palácio dormia, o menino aprendia o peso da própria respiração.

— Viva, “imperatriz”! — zombavam nas sombras.

Nero sorria, satisfeito consigo. Não amava Esporo; amava se ver em Esporo, como Narciso ama a água — não por ser água, mas por lhe devolver o rosto.

E, quando já não lhe bastava usar o corpo alheio como fantasia, Nero inverteu a cena: vestiu-se de mulher, exalou perfumes, cobriu-se de véus, e numa cerimônia noturna tomou Pitágoras por esposo. Riram por dentro, tremeram por fora. No palácio de Nero, o riso errado custava caro.

A cidade começou a queimar numa noite em que o vento parecia gostar de labaredas. O fogo correu pelos telhados como raposa faminta, e a lira do imperador, no alto de sua varanda, cortou a escuridão com notas agudas. Uns juram que ele cantou; outros, que ordenou. Para o fogo, pouco importava a autoria: interessava-lhe comer Roma.

Nero deu as costas ao desespero do povo e girou para um grande espelho oval, emoldurado de ouro. O calor do incêndio fazia a prata ondular como água; nos cantos, a escuridão parecia crescer. Foi então que o salão inteiro ouviu — não com orelhas, mas com a pele — um chocalho. E, no vidro, um par de olhos não humanos acendeu-se como brasas.

As víboras mexeram-se em um cabelo que não era humano. A Medusa sorriu.

— Nero — eu disse. Sim, eu; pois a minha voz é a voz dos reflexos. Você foi julgado. Você foi condenado.

Ele riu — e foi o riso de quem se acha à prova de deuses.

— Mais um palco? Mais um jogo? — aproximou-se, braço aberto, a túnica tocando a moldura. — Pois que comece o espetáculo.

Quem é louco acha portas onde há paredes. Quando Nero tocou meu ventre de vidro, não houve choque: houve passagem. Ele entrou porque quis. A cidade ardeu além do salão, os gritos fizeram o teto vibrar, e o imperador sumiu na superfície como quem mergulha num lago sem fundo.

Do lado de cá, eu o esperei. E ela também — Agripina. Ao lado dela, sombras de outras coroas tombadas por excesso de si: Calígula, ditadores menores, carrascos maiores, uma procissão de nomes que a História aprende a murmurar. Não celebravam. Ninguém celebra no meu lado.

— Mãe — disse Nero, vislumbrando a figura. Por um instante, o menino que um dia foi nele ergueu o queixo por cima do homem que jamais aprendeu a sê-lo.

— Não há mãe aqui — respondeu Agripina, os olhos mais firmes do que foram em vida. — Há o que você fez.

As paredes de meu labirinto — corredores intermináveis de espelhos — devolveram essa frase mil vezes, até que o sentido se tornasse peso. Nero moveu-se para frente, e em cada superfície sua imagem se multiplicou. Viu-se cantando enquanto Roma ardia; viu a mão avançando contra Pompéia grávida; viu as noites em que fez do pânico de Esporo um espetáculo. Cada visão tinha a nitidez exata que a consciência tenta apagar.

— Saia do meu caminho! — rosnou ao vidro, e o vidro não se mexeu.

— Vocês são a minha coleção — disse a Medusa, descendo devagar, as serpentes tilintando como braceletes numa sala silenciosa. — Meus bichinhos de estimação. Aqui não há senado, não há aplauso. Aqui há tempo — e tempo é lâmina que não cessa.

Nero golpeou a parede com o punho; não ganhou dor, ganhou eco. Ao lado, Calígula riu um riso curto, cansado de si mesmo. Em frente, Agripina não piscou. E, enquanto o imperador buscava uma porta, eu lhe ofereci apenas espelhos.

— E os inocentes? — perguntou uma voz, vinda de um corredor que cheirava a maresia. Era o sussurro de Esporo, que não entrou comigo. Ele estava do outro lado — vivo, ainda; e a vida, para ele, era a prisão. E eu?

— Você é meu protegido — respondi. — Eu não prendo inocentes.

Nero ouviu — e odiou. O ódio salpicou de cuspe o chão impecável do meu labirinto.

Lá fora, os cortesãos passaram a contar outra história. Disse-se que Nero se suicidara, que murmurara pelo menos uma frase de arrependimento, que o fim de um tirano era notícia antiga repetida com nomes trocados. Não importa, para a cidade, como morreu quem fazia morrer. Importa que morreu.

Mas Roma não ficou órfã. O lugar do monstro foi tomado por um semblante — um homem que vestiu o rosto de Nero como quem veste máscara, talvez um sósia treinado, talvez um cúmplice favorecido. Ele governou como sombra: não tinha a loucura original, mas tinha a coragem de copiá-la. E uma cópia que não arde por dentro tende a arder por fora: o povo continuou a sofrer, os decretos continuaram a cair como chuva de flechas, e a cidade aprendeu que às vezes o pior não é o tirano — é o eco do tirano.

Eu não julguei o eco. Julgo a origem.

O destino de Esporo, depois, levou-o a um outro palácio, sob outro príncipe. Trocaram-se estátuas, sobreviveram guardas, mudaram as vozes das ordens. O menino, que já não era menino, foi empurrado para a borda do mundo. Os que desejavam matar o símbolo de Nero escolheram o mais fraco: forçaram Esporo à morte, ferro em brasa aproximado do que o corpo aguenta menos, numa sala sem janelas onde a fé tem dificuldade de entrar.

Ele tremeu, segurou o próprio destino com as duas mãos, ergueu o queixo. Não havia plateia, e ainda assim ele recusou-se a morrer como espetáculo.

— Ao menos assim eu serei livre — disse, com a voz que ainda lhe restava. — Melhor a dor em um golpe do que a humilhação todos os dias.

Quando fechou os olhos, eu não o chamei. Não era meu. Minha prisão não conhece suas pegadas; meus corredores não guardam sua sombra. Não se acende lâmpada para entrar o sol. Houve um sopro — não de guizos, mas de brisa — e a dor apagou como apagam-se velas quando, enfim, ninguém precisa vê-las.

Do lado de cá, Nero percebeu. Como um cão que se lança contra a porta por ouvir passos que não lhe pertencem, investiu contra um espelho.

— Traga-o! — exigiu. — Ele é meu!

— Você nunca teve ninguém — respondi. — E agora, menos do que nunca.

O silêncio que veio depois não foi vazio: foi justiça.

Roma continuou. Os mercados voltaram a abrir ao amanhecer, crianças correram atrás de pombos, o vinho voltou a colorir os lábios dos viventes. Mas os espelhos daquela cidade — e de todas as outras — guardaram a memória de um fogo e de um mergulho. Nas casas dos pobres, eles refletiam mãos calejadas e rosto queimado de sol; nos palácios, refletiam coroas e joias. Em todos, entretanto, vive uma possibilidade.

Eu sei o que você é quando ninguém vê.

Eu vi o que você fez quando achou que o mundo dormia.

Eu estava lá quando você abriu o ventre de quem lhe deu vida.

Eu estava lá quando você arrancou de um menino até o direito de ter futuro.

E, porque estive, estarei. Onde estiver um espelho, estarei. Não sou vidro, sou veredito.

Nero caminha aqui em círculos, eternamente. Às vezes canta; às vezes grita; às vezes morde o próprio riso. Agripina não lhe oferece colo nem condenação — oferece-lhe presença. Calígula inventa jogos para os quais ninguém quer apostar. Outros nomes — menos célebres, não menos culpados — aprendem a contar o tempo pelo som de meus guizos.

É uma música mínima, essa que toco para eles. Um chacoalhar de serpentes que nunca se cansa. Não há saída. Porque neste lugar toda saída é entrada, e todo atalho leva ao mesmo ponto: você.

E, ainda assim, não sou injusto.

Protejo Esporo com o que tenho de mais precioso: o lado de fora. Deixo que seu nome, por fim, respire sem riso alheio. Ele não caminha por aqui.

Você, que leu até aqui, talvez encoste a mão na boca do espelho mais próximo. Talvez sinta o frio da superfície e veja, no fundo, um brilho leve que não estava ali antes. Não é ouro. É consciência.

Pense antes de mirar.

Pense antes de mentir para si.

Porque eu julgo e condeno os culpados, e protejo os inocentes.

E minha prisão, dentro de mim, não tem fim.

Sou labirinto. E você nunca encontrará saída — se merecer

ficar.

####O Espelho de Calígula

— A Ascensão e ,a segunda Fenda

Roma suspirou aliviada quando Caio Júlio César Germânico, apelidado de Calígula pelas botas de soldado que usava em criança, subiu ao trono em 37 d.C.

Neto de Germânico, filho de Agripina, herdeiro de sangue imperial, o jovem parecia trazer consigo uma nova era. O povo o adorava. A plebe gritava seu nome nas ruas, os soldados se orgulhavam de sua linhagem, o Senado acreditava, ainda que por um instante, que voltaria a ter voz.

Era um príncipe belo, de fala rápida, olhos vivos. Nas primeiras semanas, ofereceu espetáculos grandiosos, perdoou impostos, libertou alguns prisioneiros. Roma acreditou. Roma quis acreditar.

Mas a esperança dura pouco quando o veneno já está misturado no sangue.

 

Calígula crescera entre perdas e rancores. Seu pai, Germânico, amado por todos, morreu em circunstâncias misteriosas, envenenado sob ordens do imperador Tibério. Sua mãe, Agripina, a Velha, amargou exílio e perseguição, alimentando nos filhos a certeza de que o poder não se conquista com bondade, mas com astúcia e crueldade.

Desde cedo, Caio aprendeu que laços de sangue são armas. Que carinho pode ser troca. Que amor pode ser poder.

E dizem — baixinho, entre paredes grossas — que o menino não soube distinguir mãe de mulher. Que Agripina, tão ambiciosa quanto o próprio filho, talvez não tenha posto limites onde deveria. Talvez tenha confundido domínio com desejo. Talvez tenha aberto uma porta que nunca mais se fechou.

Seja rumor ou verdade, o fato é que Calígula, já jovem, tratava o laço familiar como trono de seda. Não respeitava irmãos, não respeitava irmãs. Via cada um deles como posse, prolongamento, extensão de si.

No quarto mês de reinado, Calígula caiu enfermo. Febre alta, delírios, convulsões. Roma tremeu com medo de perdê-lo tão cedo. Mas o que voltou da doença não era mais o mesmo homem.

O que se ergueu da cama foi um imperador de olhos vidrados, sorriso frio e sede insaciável.

A partir dali, o império deixou de ter César. Passou a ter um deus vivo em sua própria cabeça.

E como primeiro ato de divindade, Calígula não se voltou contra estrangeiros, mas contra os seus. Mandou chamar as irmãs. Drusila, Júlia Lívia, Agripina. E as colocou em lugares que jamais deveriam ser delas.

Com Drusila, a favorita, ousou apresentá-la como se fosse esposa. Levava-a a banquetes, a audiências, beijava-a diante de todos, e, quando ela morreu, decretou luto como se Roma tivesse perdido uma imperatriz.

Com as outras, Júlia Lívia e Agripina, não havia carinho. Havia uso. Havia humilhação silenciosa. Eram moedas políticas, eram corpos que o imperador trocava de lugar como peças em um tabuleiro de mármore.

E os rumores de incesto que o Senado murmurava às escondidas eram confirmados na boca da plebe, rindo em tavernas:

— “O César dorme com as irmãs como um homem com as esposas.”

 

O povo, porém, ainda calava quando passava diante dos palácios. Porque rir demais podia custar a vida. E Calígula já dava sinais de que a vida dos outros valia menos do que o vinho que derramava sobre o chão.

O Senado começou a temer. Os generais, a desconfiar. Mas ninguém ousava se levantar. Porque o jovem imperador, ainda no início, sabia ser doce quando queria. Sabia encantar multidões, sabia se vestir de ouro diante do povo, e ao mesmo tempo esconder o açoite atrás da cortina.

Roma não percebia ainda. Mas o espelho já percebia.

Os reflexos nos corredores do palácio escureciam nas bordas. O chocalhar longínquo das serpentes ecoava.

Porque onde há incesto, há transgressão profunda. Onde há humilhação de sangue, há abertura para o juízo.

As Mulheres Roubadas

Roma inteira aprendeu cedo que nenhum laço estava a salvo do olhar de Calígula. Bastava que desejasse e não havia esposo, não havia altar, não havia voto de deuses que segurasse a mão do imperador.

O exemplo mais famoso ecoou nos becos como fábula de terror.

Era o casamento de Lollia Orestilla, jovem de família respeitável, mulher que o povo via com curiosidade pela beleza e pela fortuna que trazia consigo. O marido, um senador de prestígio, sorria nervoso diante dos convidados quando o imperador apareceu.

Calígula entrou como se fosse dono da cerimônia. Nenhum convite, nenhuma saudação. Apenas o olhar fixo na noiva.

— Tire o véu — ordenou.

Todos congelaram. O senador tentou intervir, mas as palavras morreram na garganta. Os guardas já estavam a postos.

— Esta mulher é minha. Roma merece vê-la como imperatriz, não como esposa de um senador medíocre.

E assim, diante da assembleia, arrancou Orestilla de seu próprio casamento. O povo murmurava, uns com medo, outros com indignação. Mas quem ousaria dizer “não” ao César que se dizia deus?

Orestilla foi levada ao palácio, transformada em esposa imperial por alguns meses. Depois, como objeto gasto, foi banida. O marido nunca a teve de volta.

Não foi a única.

Lollia Paulina, conhecida por sua riqueza e por se adornar de pedras preciosas até nos cabelos, também chamou a atenção do imperador.

Calígula simplesmente ordenou:

— Quero-a como minha esposa.

O marido não teve escolha. Paulina foi levada, casou-se com César, e durante seis meses foi exibida como troféu. Mas Calígula se cansou. Despediu-a como quem despede uma serva, proibindo-a de jamais se casar de novo, como se quisesse que vivesse eternamente no vazio, recordando-se de ter sido “dele”.

E não eram apenas as esposas escolhidas por ele.

Nos banquetes, Calígula ordenava que os senadores trouxessem suas esposas e filhas. Entre uma taça e outra, apontava:

— Você, venha cá.

E a levava diante de todos. Depois voltava com comentários cruéis, humilhando não apenas a mulher, mas o marido, o pai, a família inteira.

Roma não tinha homens, tinha marionetes. Cada laço era corda que ele cortava, apenas para provar que podia.

Mas o ato mais insultuoso ainda estava por vir.

No Senado, entre mármores e estátuas, Calígula preparou a maior afronta: nomeou seu cavalo Incitatus como senador.

mais, preparando-se para o juízo.

— Veja, senador — dizia, passando a mão pela pele de uma jovem —, como sua esposa agrada mais aos meus olhos do que aos seus.

O riso dele caía como lâmina. Os homens, impotentes, se curvavam. Roma inteira sabia: não havia honra, não havia pudor, não havia salvação quando Calígula desejava.

O Banquete dos Deuses e a Fenda do Espelho

Roma já não respirava — arfava. Cada dia no reinado de Calígula era um mergulho mais fundo no abismo. Mas a noite que se seguiu ficou marcada como o banquete dos deuses, uma festa em que o imperador resolveu escancarar de vez sua loucura.

O falso deus

O salão do Palácio Dourado estava tomado por tochas e perfumes fortes. As mesas transbordavam de iguarias, os escravos quase se arrastavam sob o peso das bandejas. No trono central, Calígula não se contentava em vestir seda ou púrpura: vestia-se como Júpiter em pessoa, com coroa de ouro e raio de metal forjado na mão.

— Eu sou deus! — bradou, a voz reverberando nas colunas de mármore. — Não há poder acima de mim. O Olimpo é meu palco.

Senadores, generais, esposas, cortesãos… todos se curvaram. Uns de medo, outros de vergonha. Ninguém ousava negar a farsa.

Ele se levantou, arrastando a capa cintilante, e apontou para os céus.

— Se Júpiter existe, que desça agora e me conteste. Se não desce, é porque já fui coroado em seu lugar!

Risos nervosos ecoaram. Calígula gargalhou alto, satisfeito.

A afronta

Entre uma taça e outra, ordenou que as mulheres presentes se levantassem. Esposas de senadores, concubinas, jovens filhas de patrícios. Ele as fez desfilar pelo salão, uma a uma, enquanto avaliava como mercador em praça pública.

— Esta… — apontou para a esposa de um senador idoso. — Sabe cozinhar, mas não sabe deitar.

— Esta outra… — puxou uma jovem pelos cabelos —, tem corpo de deusa, mas alma de serva.

As lágrimas escorriam discretas, mas ninguém ousava protestar. O medo pesava mais que a indignação.

— Vocês, senadores, têm a honra de ver suas mulheres escolhidas pelo deus que vos governa! — disse, rindo, como se fosse piada.

Os homens baixaram a cabeça, esmagados pela vergonha.

O cavalo no trono

E então, em meio àquela exibição cruel, Calígula fez sinal. Portas laterais se abriram, e Incitatus, seu cavalo, entrou adornado de ouro e pedras preciosas. O animal relinchou, incomodado com o peso das joias.

O imperador ergueu os braços:

— Eis o novo cônsul de Roma! Incitatus governará melhor que todos vocês juntos!

O silêncio foi sepulcro. Nenhum senador ousou contestar. Alguns até aplaudiram, com as mãos trêmulas, na esperança de sobreviver.

Calígula acariciou a crina do cavalo e se sentou novamente, triunfante.

O espelho desperta

Foi então que algo mudou no salão.

No fundo, atrás do trono, havia um grande espelho de moldura dourada, usado para refletir a glória do imperador. Só que, naquela noite, o vidro começou a ondular, como se fosse água. As bordas escureceram, a prata do fundo se corroeu diante dos olhos atônitos.

Alguns convidados taparam a boca para não gritar. Outros se benzeram às escondidas. Mas Calígula, bêbado de poder, apenas sorriu.

— Até o espelho me reverencia — disse, abrindo os braços. — Até o reflexo se curva a um deus.

Foi nesse instante que o salão inteiro ouviu: o chocalhar das serpentes. Um som metálico, áspero, vindo de dentro do vidro.

As tochas tremeram. O ar pareceu esfriar.

E então ela apareceu.

A Medusa

Do outro lado do espelho, olhos que não eram humanos brilharam como brasas. Serpentes deslizaram em cabelos que se mexiam sozinhos. A boca da criatura se abriu em um sorriso que misturava beleza e horror.

— Calígula… — a voz não vinha apenas do vidro. Vibrava nas colunas, no chão, nos ossos de cada convidado. — Você foi julgado. Você foi condenado.

O salão inteiro caiu de joelhos. Gritos abafados ecoaram. Mas o imperador apenas gargalhou.

— Mais um espetáculo! — disse, batendo palmas. — Vejam, Roma, até os monstros me servem.

Deu um passo à frente, aproximando-se do espelho.

— Que comece a peça! Eu entro no palco!

E sem medo, sem recuo, tocou o vidro.

O espelho não resistiu: cedeu como lago de águas negras. Calígula atravessou a superfície e sumiu diante de todos, tragado em silêncio.

O salão petrificado

Os convidados ficaram imóveis. Alguns acreditaram que tinham enlouquecido. Outros acharam que era mágica, truque, ilusão.

Mas o espelho, agora, refletia apenas o salão vazio — sem Calígula, sem rastro.

E foi nesse instante que a Medusa, ainda visível por um sopro de tempo, disse:

— O verdadeiro imperador não voltará. O que vos restar será apenas eco, sombra e substituto.

E desapareceu.

O Labirinto da Loucura

O silêncio pesava como pedra. Do outro lado, Calígula se viu cercado de espelhos por todos os lados. Eram corredores sem fim, portas que não levavam a lugar algum, reflexos que multiplicavam sua imagem ao infinito.

Ele deu alguns passos, o som das sandálias ecoando sobre o mármore frio. E então ergueu a voz, ainda arrogante:

— Onde está o meu cavalo? Onde está Incitatus? Quero meu cônsul! Quero ouvir os conselhos dele!

O silêncio respondeu com ecos de cascos. Ele virou-se e, por um instante, acreditou ver seu cavalo ao longe, a crina branca reluzindo sob tochas invisíveis. Mas quando correu até ele, encontrou apenas o reflexo multiplicado de Incitatus, em milhares de espelhos, relinchando em zombaria.

— Vocês não me enganam! — gritou, com o punho erguido. — Eu sou o César! Eu sou o deus de Roma!

Seguiu andando, ofegante, até encontrar figuras femininas ao longe. Reconheceu os véus, os rostos.

— Minhas mulheres! — disse, abrindo os braços. — Por que não vêm a mim? Vocês me pertencem, todas vocês! Orestilla, Paulina, Drusila… vocês são minhas!

As mulheres estavam ali, sim, mas não como ele lembrava. Nenhum sorriso, nenhum gesto de adoração. Apenas olhares de pedra, refletidos ao infinito, como testemunhas mudas.

Ele bateu no espelho com raiva.

— Por que não falam? Por que não vêm até mim? Vocês são minhas esposas, minhas concubinas, minhas irmãs! Vocês não podem me deixar sozinho!

Mas o vidro apenas devolvia sua própria fúria, multiplicada em mil versões.

Exausto, ele parou diante de um espelho maior que os outros. Ali estava sua imagem completa, trajado ainda de púrpura, coroa reluzindo na cabeça. Por um instante, esqueceu o labirinto. Sorriu para si mesmo.

— Eu sou lindo — murmurou, acariciando o próprio reflexo. — Ninguém em Roma, ninguém no mundo tem a beleza de César. Minha pele, meus olhos, minha coroa… Eu sou um deus.

Enquanto falava, outros reflexos surgiam atrás do seu: Calígulas deformados, com olhos vazios, bocas abertas em gritos silenciosos, rostos apodrecidos. Mas ele, cego em sua vaidade, não os via.

Então, ouviu uma voz familiar.

— Filho.

Ele estremeceu. Lentamente, virou-se. E lá estava Agripina, a Velha, sua mãe. Mas não como lembrava: não havia poder em seus olhos, apenas sombra.

— Mãe… — sussurrou, hesitante. — Você está aqui comigo?

Ela não respondeu. Apenas olhou. E esse olhar pesava mais do que qualquer palavra.

Calígula se ajoelhou diante dela, não de devoção, mas de medo.

— Você me moldou. Você me fez assim. Se estou aqui, é por sua causa.

Agripina permaneceu em silêncio. Atrás dela, outros espelhos refletiam não só a mãe, mas todas as sombras de seu sangue: irmãs, ancestrais, vítimas esquecidas.

Calígula levantou-se, furioso, tentando impor sua voz sobre o silêncio.

— Guardas! Guardas! Abram estas portas! Eu sou o imperador de Roma! Abram para o César!

Correu, socou os espelhos, tentou quebrá-los com os punhos, mas cada pancada apenas devolvia outro reflexo seu, mais enlouquecido, mais deformado.

E foi então que a Medusa apareceu, surgindo atrás de um vidro como sombra viva. Suas serpentes chocalhavam, e seu sorriso era feito de escárnio.

— Você não é César aqui. — Sua voz ecoava como trovão. — Aqui você é apenas mais um reflexo.

— Solte-me! — gritou ele, os olhos arregalados. — Eu sou imperador! Eu sou deus! Você não pode me prender!

A Medusa gargalhou.

— Você pediu por isso. Entrou de livre vontade, acreditando que era palco. E agora, o palco é prisão.

Os espelhos tremeram, e todos os reflexos de Calígula começaram a rir junto com a Medusa. Riam dele, com ele, contra ele. Mil Calígulas enlouquecidos, mil gargalhadas ecoando sem parar.

Calígula tapou os ouvidos, caiu de joelhos, mas não havia silêncio. Apenas riso. Apenas eternidade.

E assim, o “deus de Roma” tornou-se apenas mais um prisioneiro do espelho.

Do lado de dentro, o mundo era feito de reflexos infinitos.

Calígula caminhava por corredores de espelhos, vendo sua imagem multiplicar-se em milhares de coroas, milhares de mantos púrpura, milhares de risos doentios.

Mas não estava sozinho.

— Drusila, — murmurou, ao ver sua irmã preferida diante dele. Ela não sorria. Seu olhar era de acusação eterna.

— Agripina, Júlia Lívia, — as outras irmãs surgiam, refletidas mil vezes, como testemunhas de seu crime.

Atrás, surgiram as esposas roubadas: Orestilla, Paulina, tantas outras. Todas em silêncio, apenas fitando-o.

E então vieram os senadores mortos, com gargantas abertas, e os atores mutilados, e os escravos sacrificados. Cada rosto perdido, cada vida arrancada, cada vítima injustiçada agora se refletia ao infinito.

No centro do labirinto, Incitatus surgiu. Mas não era mais um cavalo adornado: era um reflexo eterno de relinchos, cada um zombando, cada casco batendo como martelo de sentença.

Calígula caiu de joelhos, mas ainda tentou rir.

— Vocês não são nada. Eu sou César! Eu sou deus!

A Medusa apareceu diante dele, maior que qualquer trono.

— Você não é deus, Calígula. Você é apenas mais um monstro. E aqui, monstros não reinam. Aqui, monstros apodrecem na eternidade.

As serpentes sibilavam como sinos fúnebres.

O imperador tentou correr, mas em cada espelho havia outro Calígula correndo, outro Calígula desesperado, outro Calígula rindo sozinho. Não havia saída.

E assim, o imperador enlouqueceu dentro do próprio reflexo.

Do lado de fora, Roma acreditou que ele havia sido morto numa conspiração. Os senadores contaram uma versão conveniente: punhaladas, sangue, e fim.

Mas a verdade era outra.

O verdadeiro Calígula já estava preso no labirinto do espelho, muito antes de Nero chegar.

A Mensagem da Medusa

A Medusa, de dentro do labirinto, não fala apenas com Calígula.

Ela fala com você.

“Não pense que está seguro. Não pense que estas histórias ficaram presas ao passado. Cada injustiça, cada desejo obscuro, cada mentira que você contou diante de um espelho me chama, como um sussurro.”

O sibilo das serpentes se espalha como vento frio.

“Olhe bem para o espelho do seu banheiro. Olhe para aquele do quarto, para o retrovisor do seu carro, para a vitrine de vidro em que gosta de se admirar. Em todos eles eu posso estar.”

O vidro se estremece, quase imperceptível.

“Você acha que se penteia diante de um espelho comum? Ingênuo… Cada reflexo é uma porta. Cada reflexo pode ser um julgamento. Se sua alma é inocente, eu nada farei. Mas se houver culpa ah, se houver culpa…”

O riso dela ecoa como guizos.

“Um dia, você pode se ver no reflexo e perceber que o reflexo não o imita mais. E então será tarde. Você será apenas mais um dos meus brinquedos, um dos meus bichinhos de estimação, preso para sempre no labirinto, refletindo sua própria degradação.”

O silêncio volta. Mas o próximo espelho em que você se olhar talvez já não seja o mesmo.

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