Eveline
Dizem que toda jovem sonha com o dia em que usará um vestido digno de ser lembrado, quando as portas de um grande salão se abrem e todos os olhares se voltam para ela como se fosse o centro de um universo encantado. Mas aprendi cedo que nem todos os sonhos pertencem às sonhadoras, e nem sempre os olhares que nos seguem carregam admiração. Alguns pesam como correntes invisíveis, e não há seda, nem rendas, nem joias capazes de disfarçar a sensação de estar presa em um destino que nunca escolhi.
Naquela noite, quando as chamas dos candelabros espalhavam um brilho dourado pelas paredes cobertas de tapeçarias, minha mente não estava no burburinho das damas ansiosas por comentários, nem no tilintar dos copos de cristal. Estava apenas no som da voz de meu pai, repetida em minha cabeça como uma sentença irrecorrível: “Você será a esposa do conde Damian Blackthorn.”
Pouco importava que eu nunca tivesse visto esse homem além de retratos frios, pintados com cores que escondiam mais do que revelavam. Pouco importava que meu coração nunca tivesse batido de forma desordenada por sua lembrança, como acontece com as jovens que suspiram por cavalheiros nos bailes de verão. O que importava era o peso de um acordo, um tratado silencioso entre famílias que viam em mim não uma filha, não uma mulher, mas uma moeda de troca.
Apoiada na sacada do salão, observava as carruagens chegarem uma após a outra, cada uma trazendo mais convidados, mais testemunhas da vida que se fechava sobre mim como uma armadilha dourada. E tive a estranha sensação de que, de todos os corações reunidos naquela noite, o meu era o único que não estava em festa. Batia em guerra, sim, mas não uma guerra feita de espadas e sangue, como as que os homens narravam com orgulho nas tavernas. Era uma guerra silenciosa, travada dentro de mim, entre o dever e o desejo de ser dona da minha própria história.
Enquanto as damas riam em grupos, abanando-se com leques coloridos, e os cavalheiros disputavam entre si a graça de conduzi-las à pista de dança, minhas mãos se enroscaram na renda da saia do vestido cor-de-rosa antigo que minha mãe insistira em que eu usasse. A cor era delicada, suave, mas em minha pele parecia um lembrete cruel de que ainda me viam como uma menina, frágil e moldável. Mal sabiam que, por dentro, eu me sentia como aço sendo forjado: pressionada, aquecida até quase se partir, mas pronta para resistir.
Foi nesse instante que o salão inteiro pareceu prender a respiração. O heraldo anunciou com voz firme:
— Lorde Damian Blackthorn.
A música hesitou, os murmúrios se espalharam como um incêndio. E eu soube que meu destino tinha acabado de atravessar aquelas portas então ele surgiu no limiar como uma sombra sólida, distinta de todos os demais homens presentes. Era como se o ar tivesse mudado de densidade no instante em que Damian Blackthorn atravessou as portas. As damas ergueram leques, algumas sufocando exclamações abafadas, e até os cavalheiros se remexeram, inquietos. Não era apenas por seu título ou pelas histórias que o acompanhavam sobre guerras vencidas, duelos sobrevividos, inimigos derrotados. Era porque ele carregava tudo isso no corpo, no olhar, na postura que não pedia licença, mas conquistava espaço.
A primeira coisa que notei foi a altura dele, imponente sem esforço, envolta em um casaco negro que parecia absorver a luz ao redor. Medalhas discretas brilhavam em seu peito, símbolos das batalhas que havia travado em terras distantes, mas foi seu semblante que me atingiu como um golpe invisível. O rosto firme, marcado por linhas de dureza, não exibia orgulho pelas vitórias, apenas cicatrizes que não estavam gravadas apenas na pele, mas nos olhos. Eram olhos escuros, profundos, que pareciam ver além da superfície, e quando por um instante encontraram os meus, senti uma estranha vertigem.
Não havia ternura neles. Não havia o calor de um galanteador que busca cortejar. Havia algo mais complexo — uma mistura de cálculo, silêncio e uma intensidade que fez meu coração falhar uma batida. Era como ser vista por inteiro, como se todos os pensamentos que eu tentava esconder se tornassem evidentes. Apertei os dedos contra a renda do vestido, lutando para não desviar o olhar, embora cada fibra do meu corpo implorasse por fuga.
Meu pai, claro, avançou imediatamente. Seus olhos brilhavam de satisfação ao receber o conde, como se cada sorriso, cada gesto estivesse milimetricamente planejado para consolidar a aliança que tanto desejava. Eu, porém, fiquei imóvel, como uma prisioneira aguardando a sentença. Até que, inevitavelmente, fui chamada:
— Esta é minha filha, Lady Eveline Whitmore.
O nome pareceu ecoar no salão, e não havia recuo possível. Caminhei em direção a eles com passos medidos, mas em meu íntimo cada passo era o arrastar de correntes invisíveis. Damian inclinou a cabeça em saudação, e quando sua voz soou pela primeira vez, grave e precisa, percebi que ela tinha o mesmo efeito de sua presença: não precisava ser alta para dominar.
— Lady Eveline.
Meu nome nunca soara tão diferente, como se não me pertencesse mais. Fiz uma reverência contida, mantendo o sorriso protocolar, e respondi:
— Lorde Blackthorn.
Pensei que a troca terminaria ali, um gesto formal selado pela etiqueta, mas o conde surpreendeu-me ao se inclinar levemente, reduzindo a distância entre nós. Sua voz chegou apenas a mim, baixa e firme, como uma confidência proibida:
— Seus olhos não mentem, Lady Eveline. Não deseja estar aqui.
O impacto foi imediato. Por um segundo, o salão inteiro pareceu desaparecer. Não era comum que homens ousassem tamanha franqueza, muito menos em uma primeira apresentação. Ele não falava de beleza, de trajes, de música — falava de mim, daquilo que eu tentava esconder sob camadas de silêncio.
Recuperei-me como pude, mantendo o sorriso nos lábios, mas minha resposta saiu quase como um sussurro:
— Talvez meus olhos apenas revelem o cansaço de uma noite longa.
O leve arqueamento de sua sobrancelha mostrou que não se deixava enganar. Um sorriso breve, frio e enigmático, atravessou seu rosto.
— Ou talvez revelem algo que não pretende confessar.
Meu coração disparou, e pela primeira vez percebi que não estava diante apenas de um conde, mas de um estrategista. Ele sabia observar, ler, sondar. E, de alguma forma, entendi: esse homem não se contentaria com máscaras.
Eu acreditava que a conversa terminaria ali, abafada pela presença orgulhosa de meu pai, mas Damian parecia determinado a não me conceder esse alívio. Seus olhos, que até então haviam permanecido firmes nos meus, baixaram apenas para se fixar em minhas mãos. Antes que eu pudesse me afastar, sua voz soou de forma clara o suficiente para ser ouvida pelos que estavam próximos:
— Concederia-me esta dança, Lady Eveline?
Não era um pedido. A mão estendida diante de mim era firme, quase um desafio, e todos sabiam que recusar seria não apenas uma descortesia, mas um escândalo que meu pai jamais perdoaria. Por um instante, minhas mãos hesitaram, geladas, incapazes de decidir entre recuar ou aceitar. Então, vencida pelo peso das convenções, coloquei meus dedos sobre os dele.
A diferença foi imediata. Não era a mão macia de um aristocrata que vive de taças e debates ociosos. Sua pele era quente, calejada, marcada por experiências que não pertenciam ao mundo confortável dos salões. Era uma mão que conhecia armas, frio, dor. E, ainda assim, segurava a minha com firmeza calculada, nem violenta nem suave demais, mas de um jeito que me fez sentir que não havia saída.
O salão abriu espaço para nós como se soubesse a importância do instante. Os músicos iniciaram uma valsa, e ele me guiou até o centro da pista. Os olhares acompanharam cada passo, e pude sentir os murmúrios se espalhando como ondas. Eu, que tantas vezes havia dançado por obrigação em temporadas passadas, pela primeira vez sentia que cada gesto estava carregado de significado.
Quando a mão dele pousou em minha cintura, mesmo através das camadas de tecido, um arrepio percorreu meu corpo. A proximidade era medida, correta, mas intensa demais para não me afetar. Nossos corpos se moveram juntos, obedecendo à música, mas a dança não era apenas uma exibição de técnica: era um campo de batalha silencioso. Cada passo parecia um duelo, cada giro, uma provocação.
— Dizem que as damas desta temporada sonham em conquistar atenções — ele murmurou, a voz baixa, quase íntima, roçando em meu ouvido. — Mas você parece sonhar em fugir delas.
Engoli em seco, mantendo o sorriso educado que se esperava de mim. Minha resposta saiu baixa, firme, quase como uma confissão disfarçada:
— Nem todo sonho merece ser seguido, milorde.
Senti a pressão da mão dele em minha cintura aumentar por um breve instante, como se aquela simples frase tivesse provocado algo inesperado. Seus olhos, escuros e insondáveis, estreitaram-se, e eu não consegui decifrar se havia ali irritação, respeito ou apenas curiosidade.
O salão girava ao nosso redor, as luzes refletiam nos cristais, mas para mim tudo se resumia àquele olhar que me prendia e à certeza de que aquela não era apenas uma dança. Era o prenúncio de uma guerra — e eu não sabia se estava preparada para sobreviver a ela.
A valsa chegava ao fim, e eu sentia como se o tempo tivesse se alongado ao ponto de se tornar insuportável. Cada compasso da música, cada volta que ele me obrigava a dar sob seu comando, aumentava a sensação de estar presa numa rede invisível. Damian não falava mais; apenas observava. Seu silêncio era mais perturbador do que qualquer provocação.
Quando a última nota ecoou, e o salão explodiu em aplausos, ele não me soltou de imediato. Manteve a mão firme em minha cintura, sustentando-me como se ainda estivéssemos no meio da dança. Eu tentei recuar, dar um passo atrás, mas sua força discreta me reteve por um instante a mais — o suficiente para que o mundo ao redor desaparecesse outra vez.
— Você dança como quem luta, Lady Eveline — disse por fim, a voz baixa e rouca. — Como alguém que nunca se rende de imediato.
Meu coração disparou, não apenas pela frase em si, mas pela forma como ele a disse. Não era um elogio banal, como tantos que já ouvira. Era um aviso.
— Talvez seja porque não me agrada a ideia de me render — respondi, surpreendendo até a mim mesma pela firmeza do tom.
Por um breve segundo, vi um brilho surgir em seus olhos, como se minhas palavras tivessem atiçado uma chama oculta. Ele então inclinou-se, e o calor de sua respiração roçou minha orelha quando murmurou:
— Ainda assim, todos se rendem, Eveline. Uma hora ou outra.
Meu nome, pronunciado com tanta naturalidade, soou como um selo. Não havia mais títulos, formalidades ou distância. Apenas a promessa silenciosa de que ele não recuaria — e de que, cedo ou tarde, esperava ver-me ceder.
Quando finalmente me soltou, minhas pernas estavam trêmulas, e só o hábito de anos sustentando a postura em salões salvou-me de cair em desgraça diante de todos. Afastei-me, mantendo o sorriso delicado no rosto, mas dentro de mim a batalha já havia começado.
Naquele instante, soube com absoluta clareza: meu destino não seria o de uma dama sonhadora que encontra no casamento apenas segurança. O homem diante de mim não oferecia paz. Oferecia guerra.
E meu coração, contra toda a lógica, batia como se estivesse pronto para lutar por alguém que ele de um jeito que eu não compreendia escolheu amar.
Eveline
A noite chegou ao fim envolta em sussurros e olhares que pareciam grudar em mim como sombras. O baile, que deveria ter sido apenas mais uma das obrigações sociais de minha família, havia se transformado em algo que jamais esquecerei. Quando a última carruagem deixou o solar, e os criados apagaram as luzes cintilantes dos lustres, restou-me apenas o silêncio.
Silêncio — e o peso do que acabara de acontecer.
Recolhi-me aos meus aposentos sem coragem de olhar para meu pai. Conhecia bem a expressão orgulhosa que ele exibia sempre que acreditava ter conquistado algo valioso. Eu não era tola; sabia que, para ele, meu casamento com Damian Blackthorn era mais do que uma aliança. Era uma vitória. Uma medalha invisível cravada em seu peito.
Fechei a porta de meu quarto e, por um instante, permaneci encostada nela, como se pudesse barrar o mundo do lado de fora. A respiração saía entrecortada, e minhas mãos ainda tremiam da dança. Corri até a penteadeira, e ao me encarar no espelho, quase não me reconheci.
A jovem refletida não era a Eveline que sonhava em caminhar pelos campos em liberdade, nem a moça que lia poemas escondida sob a sombra das árvores do jardim. No vidro, vi apenas a imagem de uma mulher aprisionada em seda, prestes a ser sacrificada em nome de convenções e interesses que não eram seus.
Sentei-me à beira da cama, sentindo o corpo pesar. Era como se cada músculo tivesse absorvido a tensão daquela noite. Meus dedos ainda guardavam a lembrança da textura da pele de Damian, e o calor de sua mão insistia em permanecer gravado em mim, apesar de todo esforço em esquecê-lo.
Fechei os olhos e a cena retornou como uma chama que não se apaga: a firmeza de sua voz, a proximidade perigosa de seus lábios quando murmurou que todos, cedo ou tarde, se rendem. Meu coração, traidor, acelerou novamente só de lembrar.
Não queria admitir, mas havia algo nele que me perturbava além do medo. Algo que despertava em mim uma sensação que não ousava nomear.
Afastei esse pensamento como quem afasta um veneno. Não podia me permitir fraquejar. Eu sabia o que estava em jogo. Minha vida não poderia ser conduzida por fascínios obscuros.
Levantei-me e caminhei até a janela. O luar banhava os jardins, transformando-os em um cenário quase irreal. O vento noturno trouxe o aroma úmido das flores, e por um instante lembrei-me de quando era apenas uma menina correndo por aqueles mesmos corredores, sonhando com um futuro que agora me parecia inalcançável.
Minha mãe costumava dizer que cada estrela no céu era um desejo ainda não realizado. Eu costumava acreditar nisso. Hoje, ao olhar para elas, só via promessas quebradas.
Um arrepio percorreu meu corpo, e percebi que não era apenas o frio. Era a consciência de que, gostasse eu ou não, meu destino já estava selado. A guerra que eu tanto evitara agora batia às portas do meu coração.
O som de passos suaves à porta interrompeu meus devaneios. Suspirei, já imaginando quem poderia ser.
— Entre, Margaret — chamei, e a madeira rangeu lentamente quando minha dama de companhia surgiu, trazendo uma lamparina nas mãos.
Margaret era alguns anos mais velha do que eu, mas ainda guardava no rosto uma vivacidade invejável. Seus olhos castanhos sempre carregavam mais perguntas do que ousava fazer, e naquela noite não foi diferente.
— Minha senhora — disse em voz baixa, como se temesse que alguém a escutasse através das paredes. — Precisa descansar. Amanhã será um dia longo.
Assenti, mas não fiz menção de deitar-me. Margaret pousou a lamparina sobre a mesinha ao lado da cama e, depois de me observar em silêncio por um instante, perguntou:
— Foi tão terrível assim?
A simplicidade da pergunta arrancou-me um riso curto, quase um soluço. Caminhei até a penteadeira novamente e acariciei a borda fria do espelho antes de responder.
— Terrível seria pouco. — Voltei-me para ela. — Margaret, ele… ele é diferente de tudo que imaginei.
— Diferente bom ou diferente mau? — ela arriscou, ajeitando-se numa cadeira.
Encarei-a, surpresa com sua ousadia, mas não consegui repreendê-la. Margaret sempre tivera a estranha habilidade de arrancar verdades de mim, mesmo quando eu mesma não queria admiti-las.
— Mau… — comecei, mas a palavra soou fraca, quase incerta. — Pelo menos deveria ser. É frio, severo, marcado pela guerra… mas… — Hesitei, mordendo o lábio. — Há algo nele que não consigo definir.
Margaret arqueou as sobrancelhas e cruzou as mãos sobre o colo.
— Algo que a atrai.
Minha respiração falhou.
— Eu não disse isso!
Ela sorriu de lado, aquele sorriso sagaz que me irritava e consolava ao mesmo tempo.
— Não precisou. Seus olhos falaram por você.
Afastei-me, voltando para a janela como quem busca refúgio. O luar parecia zombar de mim, revelando o que eu tentava esconder até de mim mesma.
— Ele me assusta, Margaret. — Minha voz saiu quase como um sussurro. — Não apenas pelo que é capaz de fazer, mas pelo que pode despertar em mim.
Dessa vez, minha dama não sorriu. Aproximou-se e segurou minhas mãos, firme, como fazia desde a infância sempre que eu tinha medo das tempestades.
— O coração é traiçoeiro, minha senhora. Ele não segue lógica nem convenções. Mas lembre-se: nem todo medo é sinal de perigo. Às vezes, é apenas o presságio de uma mudança.
Engoli em seco, tentando absorver aquelas palavras. Mudança. Não era isso o que mais temia? Minha vida estava à beira de uma transformação irreversível, e eu me sentia tão impotente quanto uma folha levada pelo vento.
Afastei-me lentamente e deitei-me sobre a cama, sem, no entanto, fechar os olhos. Margaret apagou parte das luzes, deixando apenas a lamparina acesa, e retirou-se após desejar-me boa noite. O quarto mergulhou em sombras, e ainda assim o sono não veio.
A cada piscada, a lembrança dele surgia como um fantasma persistente: o olhar penetrante, a voz que parecia atravessar todas as minhas defesas, o toque que queimava e gelava ao mesmo tempo.
Odiei-me por pensar nele. Odiei ainda mais por desejar entendê-lo.
A madrugada avançava devagar, e percebi que, talvez, aquela fosse a primeira de muitas noites em claro.
Porque algo dentro de mim já sabia: minha vida jamais voltaria a ser a mesma depois de cruzar o caminho de Damian Blackthorn.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!