⚠️ Aviso de Conteúdo
Este livro contém violência física, corrupção, drogas ilícitas e outros temas sensíveis.
A leitura é recomendada para maiores de 18 anos.
A obra retrata universo da máfia, portanto todo universo criado em volta da história é fictício.
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Dizem que Valmont não existe.
Que não passa de uma sombra entre fronteiras, um rumor contado em corredores de mármore e vielas encharcadas de sangue. Dizem que nenhum mapa oficial ousa traçar seus limites, porque reconhecer sua existência seria reconhecer também as feridas que carrega.
Mas eu sei a verdade.
Valmont respira, pulsa. Valmont me pertence.
Somos um pequeno país no sul da Europa, uma ilha esquecida por conveniência, cercada por águas profundas e vizinhos poderosos que fingem não nos ver… todos fingem. Mas eles sabem. Sempre souberam. A riqueza que corre por nossos portos, os segredos guardados nas mansões silenciosas, os vícios alimentados nas sombras… tudo isso mantém Valmont viva.
Nossa capital, Porto Della Luce, é a joia e a cicatriz do país. Um lugar onde as fachadas douradas escondem corredores subterrâneos, e onde um brinde de cristal pode selar tanto um contrato de negócios quanto uma sentença de morte. À noite, a neblina cobre os becos como um véu, e só quem conhece os caminhos sobrevive para ver o amanhecer.
Cagliaro, cercada de montanhas que escondem rotas clandestinas. Ali, um simples trem noturno pode carregar mais do que passageiros — pode carregar armas, explosivos, vidas condenadas a nunca mais voltar.
Já Villapietra é como uma ferida aberta à beira-mar. Bela, decadente, consumida por cassinos disfarçados de clubes aristocráticos, onde fichas de jogo se trocam por favores e a sorte de um homem pode ser comprada com a mesma facilidade que sua alma.
E então há San Benedetto, nosso porto mais cobiçado. Quem controla San Benedetto controla a respiração de Valmont. Cada embarque, cada contêiner que parte dali, é uma promessa — ou uma ameaça.
Esse é o palco da minha vida.
Valmont é uma terra de contrastes: luxo e ruína, silêncio e pólvora, promessas e traições. Aqui, os políticos governam no papel, mas o verdadeiro poder pertence àqueles que sabem se mover nas sombras. Àqueles como eu.
Alguns dizem que sou apenas mais um nome sussurrado nas esquinas, outros me chamam de maldição com rosto de mulher. Mas eu não sou apenas Aurora Marchezzi. Eu sou a herdeira de um império moldado por sangue e silêncio. Sou quem decide quem vive, quem cai, quem nunca será encontrado.
Valmont é o tabuleiro.
E eu sou a jogadora que nunca perde.
Agora que você está aqui, vai descobrir a verdade.
Sobre mim.
Sobre como o amor pode ser tão letal quanto uma bala bem disparada.
Lembre-se: este país é fictício. Não o procure em mapas, nem em livros de história. Mas se algum dia ouvir um rumor sobre Porto Della Luce, sobre as rotas de Cagliaro ou os jogos de Villapietra… apenas sorria e finja que não ouviu.
Porque quem busca Valmont, encontra.
E quem encontra Valmont… nunca sai ileso.
Nasci em meio ao caos, filha da violência disfarçada de tradição. Em Valmont, meu sobrenome abre portas e provoca silêncios. Alguns me enxergam como uma herdeira fria, outros como uma estrategista cruel ou apenas o codinome de vingança. Mas a verdade? Eu não apenas jogo o jogo… eu o criei.
Cresci em corredores de mármore, cercada por homens que acreditavam estar no controle. Aprendi cedo que sorriso pode ser arma, que um olhar pode subjugar mais do que uma bala. Enquanto eles ostentavam força bruta, eu aperfeiçoei o poder do silêncio, da paciência, da manipulação.
Não sou cruel por prazer. Sou implacável por necessidade. Aqui, ou você se torna predador, ou vira presa. E eu jamais aceitei ser caçada.
Aurora Marchezzi é o nome que governa nas sombras.
E então há Ayla...
Quando a vi pela primeira vez, não acreditei que alguém como ela pudesse existir em Valmont. Doce demais, ingênua e corajosa para um mundo que se alimenta de cinismo. Ela tem um jeito de olhar para as pessoas como se ainda houvesse bondade escondida nelas… até mesmo em mim.
Ayla é feita de contrastes:
– Forte, mas marcada por fragilidades.
– Doce, mas capaz de ferir quando empurrada ao limite.
– Uma mulher que não deveria ter espaço em meu universo, mas que, inexplicavelmente, abriu caminho.
Alguns diriam que ela é minha fraqueza.
Eu prefiro pensar que ela é a única capaz de me lembrar que, por trás do nome Marchezzi, ainda pulsa algo humano.
Valmont, no entanto, não perdoa amores, não perdoa falhas.
E eu? Eu não sei se quero protegê-la… ou ensiná-la a queimar junto comigo.
Lembre-se: Valmont não é um país de sonhos. É um tabuleiro. E eu sempre joguei para vencer.
— Aurora Marchezzi.
““Auroraaaa!”
O grito ecoou dentro dela. A lembrança veio com força: olhos azuis arregalados, sangue respingando no chão do quarto, o som abafado de um corpo tombando. E o grito — aquele grito que perfura os ossos.
Abriu os olhos. Inspirou fundo. O cheiro de fumaça e perfume forte não bastava para afastar a dor.
Levou o copo aos lábios. A cicatriz no ombro ardeu — ainda ardia, mesmo depois de seis anos.
As noites em Porto Della Luce tinham cheiro de vinho velho, maresia e segredos. A névoa se acumulava nas esquinas de pedra como um véu sobre os pecados da cidade.
No coração do submundo, onde políticos e empresários apertavam mãos sujas com luvas de couro, escondia-se o Salone Nero — um cassino onde as apostas eram tão altas quanto as condenações.
O salão era sufocante em elegância: lustres de cristal pendiam sobre o teto abobadado com afrescos dourados, as paredes forradas de veludo vinho abafavam o som dos pecados cometidos ali. O jazz tocava baixo, vindo de um quarteto ao fundo. Taças tilintavam, fichas deslizavam pelas mesas, sorrisos falsos se escondiam atrás de charutos e taças de conhaque e risadas escandalosas de mulheres seminuas entretendo homens pais de família.
Num canto reservado, Aurora Marchezzi cruzava as pernas longas e expunha a cicatriz no ombro como quem exibia uma joia. Usava um vestido preto de seda que desenhava sua figura magra e atlética. Os cabelos loiros estavam presos em um coque perfeito. Os olhos de um par de safiras azuis, frios como aço, observavam o salão com tédio e indiferença.
Ela segurava um copo de cristal. Dentro, o brilho âmbar de um Dalmore 62, mais raro de sua coleção — um luxo que quase ninguém ali reconheceria. Tomou o segundo gole com calma, sentindo o calor escorrer pela garganta até o peito. O gosto era amargo, profundo, quase metálico. Como sangue.
Tomou outro gole de uísque.
Foi então que ouviu.
Dessa vez não foi dentro da cabeça, mas no mundo real.
— Me solta... por favor, isso não é possível...
Aurora virou o rosto devagar, os olhos semicerrados, como quem desperta de um pesadelo e encontra outro, de pé.
Perto do balcão, um homem corpulento — Bernardo Bianchi, viciado em jogatina, falido, nojento — segurava com força o braço de uma garota. A menina não devia ter mais de vinte e poucos anos. Tinha cabelos negros desalinhados, pele clara, e olhos verdes que brilhavam mais de raiva do que de medo — uma pureza que contrastava violentamente com a podridão ao redor.
Ela estava deslocada ali. Vestido simples que marcava sua silhueta fina, sapatos gastos, dignidade intacta. Tudo nela destoava daquele antro de vícios.
— Papai? Do que ele está falando? Que dívida? Me solta! Você está me machucando!
O homem balbuciava, incoerente, os olhos fixos nas cartas inúteis sobre a mesa, evitando o olhar da filha. — Eu… eu ia ganhar a próxima mão, filha… eu juro… era minha chance… eu ia recuperar tudo…
Bernardo sorriu. Aquele tipo de sorriso que Aurora conhecia bem: de quem se acha dono da vida alheia.
— Seu pai apostou. Perdeu. E eu ganhei. É simples, querida.
A garota tentou se soltar. Ele apertou mais. Ela mordeu os lábios para não chorar.
Aurora observava. Sem piscar.
O salão continuava vivo — risos, apostas, ignorância fingida. Ninguém ousava se meter.
Ela então se levantou. Calma. Sem pressa. Seus saltos estalaram no chão de mármore como tiros abafados.
O segurança ao lado tentou dizer algo, mas parou ao ver o olhar dela. Sabia que não se interrompia Aurora Marchezzi.
Ela parou a poucos passos de Bernardo.
— Bernardo. — disse, sem emoção.
Ele se virou, rindo com escárnio. — Senhora Marchezzi... me desculpe o escândalo. Só estou levando o que é meu.
— Quanto? — perguntou Aurora, arrancando uma mala de couro da mesa ao lado com um movimento decidido. Atirou-a sobre o balcão e abriu com um gesto firme. Dentro, pilhas de notas, perfeitamente organizadas, reluziam à luz fraca.
— O quê?
— Quanto por ela? — repetiu, sua voz baixa e cortante.
Bernardo explodiu em uma gargalhada, como se Aurora tivesse contado a piada mais absurda já ouvida.
— Ela não está à venda — declarou, seu tom agora mais sério. — O pai dela jogou. E perdeu. Isso aqui é legal, Marchezzi. Você sabe muito bem...
Aurora fechou a mala com um estalo seco.
— Pena. — sussurrou ela, com uma expressão fria e determinada. Com um movimento quase imperceptível, deslizou a mão pela lateral do corpo, levantando suavemente a barra do vestido. O tecido macio cedeu, revelando o brilho negro polido de sua Walther PPK oculta no coldre preso à sua coxa. Num gesto fluido e preciso, ela retirou a arma de seu esconderijo, pronta para o que viesse a seguir.
O som do disparo ecoou como uma batida de tambor abafada.
Bernardo caiu para trás, os olhos ainda arregalados, um buraco no meio da testa. A garota gritou. O salão silenciou.
Aurora se virou para o segurança.
— Limpem isso.
Depois olhou para a garota.
— Você está livre. Pode ir embora.
Ela começou a andar, sem olhar para trás.
Passou pela porta principal do Salone Nero sem pressa, enquanto um dos seguranças o colocava um sobretudo, deixando os murmúrios crescidos atrás de si como poeira levantada por um desastre.
Lá fora, o frio da madrugada a recebeu com um sopro cortante. A brisa salgada do mar atravessava os becos. Aurora acendeu um cigarro e deu uma tragada, mas tossiu levemente. O gosto do tabaco parecia mais amargo naquela noite.
Ela deu o segundo trago, olhando para o céu encoberto. Nenhuma estrela visível.
Atrás dela, passos apressados.
— Mulher...!
A voz era doce e melódica.
Aurora não se virou.
— Ei... — disse de novo a jovem, com a respiração ofegante. — Por favor... espera...
Aurora soltou a fumaça devagar, sem dizer nada.
— Eu me chamo Ayla…
— Eu me chamo Ayla — repetiu a jovem, agora mais próxima, a voz embargada pela hesitação e pelo frio da madrugada.
Aurora se virou devagar, os olhos azuis tão gélidos quanto o vento cortante que soprava pelas ruas de pedra. Avaliou a garota de cima a baixo: cabelos negros desalinhados, olhos verdes grandes demais para aquele rosto delicado, a pele exposta e arrepiada. Vestia um casaco fino, gasto. A bolsa ao lado parecia tão antiga quanto a cidade.
— Qual o seu nome? — insistiu Ayla. — Eu preciso agradecer o que você fez por mim.
Aurora jogou o cigarro no chão e o pisou com indiferença.
— Não precisa. Você não me deve nada.
— Preciso sim. — Ayla cruzou os braços, tentando se aquecer. — Meus pais me ensinaram a ser grata.
— O mesmo pai que te vendeu num jogo clandestino? — rebateu Aurora, com a voz baixa, mas cortante.
As palavras feriram. Ayla desviou o olhar, engolindo a dor com um silêncio breve. Os olhos marejaram, mas ela permaneceu firme.
— Eu sei que o que ele fez não foi certo... — disse, quase num sussurro. — Mas ele é só um homem doente.
— Não me pareceu doente. Pareceu um canalha — disse Aurora com desdém.
Ayla assentiu, resignada. Aquela conversa não levaria a lugar nenhum. Mas algo dentro dela se recusava a desistir.
— Você ainda não me disse seu nome — murmurou, levantando os olhos de novo.
— Por que quer saber? Já te disse: está livre. Vá embora.
— Quero agradecer.
Houve uma breve pausa. Aurora suspirou, vencida pelo incômodo daquela insistência.
— Aurora. Me chamo Aurora.
Ayla repetiu o nome como quem experimenta algo raro na boca.
— Nome bonito — disse, sincera.
Aurora arqueou uma sobrancelha. Um elogio? Ela não ouvia algo assim fazia muito tempo.
— Pronto. Agora já sabe. Pode ir.
Aurora se virou, dando alguns passos.
— Espera.
Ela parou. Respirou fundo e virou apenas o rosto.
— O que você quer, garota?
Ayla hesitou. Juntou as mãos na frente do corpo e cruzou os dedos finos. Encarou o chão por um instante, depois os olhos de Aurora.
— Eu tenho uma dívida com você.
— Não. Não tem. — Aurora franziu a testa, sem esconder a irritação. — Eu não quero nada de você.
— Mas eu tenho. Não gosto de dever nada a ninguém.
Aurora cruzou os braços. A voz saiu mais dura agora:
— E pretende pagar como, exatamente? Não parece que tem dinheiro.
Seus olhos varreram Ayla da cabeça aos pés. Casaco gasto, sapatilhas finas, tudo dizia pobreza. Mas a postura ereta dizia algo diferente.
— Não... eu não tenho. — Ayla respondeu, a voz mais fraca. — Mas posso trabalhar. Posso limpar, cozinhar, lavar... até...
Fez uma pausa. Corou até a raiz dos cabelos.
— ... até dormir com você, se quiser.
Aurora piscou lentamente. Um sorriso quase invisível se desenhou nos lábios.
— Já fez isso antes? Dormir com alguém?
Ayla abaixou o olhar. O rosto queimava.
— Não.
— Então por que me oferece isso?
— Porque... talvez eu seja bonita. É o que os amigos do meu pai dizem.
Aurora soltou uma risada baixa, sem humor.
— Você tem coragem, garota. Mas não é necessário. Eu não quero dormir com você. Para isso, já tenho as melhores garotas de Porto Della Luce à disposição. E elas são profissionais.
Ayla mordeu o lábio inferior. Ainda assim, não recuou.
— Só me dê trabalho. Qualquer coisa. Eu não tenho para onde ir agora. Depois que você matou aquele homem... meu pai fugiu.
Aurora fechou os olhos por um breve segundo, lutando contra a torrente de verdades que queria desaguar. Queria explicar que o pai da garota não havia fugido, que na verdade, os homens dela o levaram para uma “lição” inesquecível. Mas ela conteve as palavras afiadas que ameaçavam escapar de seus lábios.
— Tchau, garota. Você é jovem. Vai encontrar outro lugar. Um emprego decente e seguro.
Com um suspiro pesado, Aurora deu as costas à jovem e caminhou em direção ao sedã preto, que estava estacionado sob a luz bruxuleante e amarelada de um poste. A noite envolvia tudo ao redor como um manto escuro, e as sombras dançavam nas paredes dos prédios próximos.
Foi então que o som cortou o silêncio. Clack... clack... clack... O ruído úmido e ritmado das sapatilhas finas de Ayla ressoava contra o piso molhado de pedra atrás dela. Aurora parou, a expressão em seu rosto uma mistura de incredulidade e cansaço, como se o peso do mundo pendesse sobre seus ombros.
— Você não vai desistir?
Ayla negou com a cabeça, seus olhos brilhando com determinação sob a luz fraca.
— Eu já disse... te devo a vida.
Aurora a olhou por um longo tempo. Um silêncio excruciante caiu entre elas. O tipo de silêncio que antecede uma escolha que não pode ser desfeita.
Sem dizer mais nada, Aurora apertou o controle. Um clique suave. O carro destravou.
Ela deu a volta, abriu a porta do passageiro e indicou com um gesto ríspido.
— Entra.
Ayla hesitou apenas um segundo. Depois, com passos curtos, entrou no carro e sentou-se no banco, encolhida, como quem entra num santuário profano.
Aurora fechou a porta com firmeza.
Passou no banco do motorista e ligou o motor.
O ronco grave ecoou pelas vielas molhadas da cidade, quebrando o silêncio da madrugada.
Enquanto guiava pelas ruas escuras, Aurora murmurou algo para si mesma, sem encarar a garota ao lado:
— Eu sei que vou me arrepender disso...
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