Prólogo
Existem muitos porquês na vida, mistérios que talvez nunca entenderemos. Mas há algo que sempre me foi impossível aceitar: o direito que outros julgam ter de decidir por mim, como se minha vida fosse um tabuleiro nas mãos deles.
Meu nome é Alina, e nasci em um clã cigano. Para quem não sabe, isso significa que quase nada me pertence. Cada passo, cada escolha, cada sonho… sempre há um pai, um ancião, um chefe de clã para decidir em meu lugar.
Dizem que somos um povo alegre, dono de festas coloridas, de música e de liberdade. Talvez para alguns seja verdade. Mas a minha realidade nunca foi assim. Sempre me chamaram de ingrata por não aceitar “as maravilhas” que me foram dadas. Mas o que é um presente para uns pode ser uma prisão para outros. Eu só queria o que parecia simples: nascer livre, escolher quem amar, decidir se queria estudar, trabalhar, ou simplesmente não fazer nada. Queria que minha vida fosse minha.
Há cinquenta anos, meu clã deixou de vagar e se fixou no Morro de Santa Fé. Um lugar lindo, mágico, cheio de vida. E, ao mesmo tempo, minha prisão mais cruel. O que antes me fazia sentir o vento da liberdade passou a me sufocar.
Nossos casamentos são arranjados, nossas roupas ditadas, nossos cabelos intocáveis — porque dizem que a força de uma mulher está neles. Somos treinadas a dançar, não por diversão, mas para seduzir. E se alguém ousa desobedecer, é julgado em praça pública, humilhado, banido. A fé em Santa Sara Kali rege cada ato, e uma blasfêmia pode significar maldição eterna.
Eu nunca me encaixei nisso. Nunca amei as roupas berrantes, as joias pesadas, nem a maquiagem que me impunham. Sempre fui uma dançarina desajeitada. Tudo em mim destoava. Eu me sentia um erro. Um erro enorme.
E como já disse antes… errar, para mim, nunca foi permitido.
Alina
Espírito indomável, dona de uma beleza que parece nascer da própria terra, Alina carrega no olhar a inquietude de quem não aceita viver aprisionada. Prometida a Hector desde criança, ela se vê dividida entre a lealdade ao clã e o desejo secreto de escapar, de correr para além das fronteiras que lhe foram impostas. Sua força é silenciosa, mas pulsante — e ainda que lute contra o inevitável, seu coração insiste em sonhar com uma vida diferente.
Hector
Herdeiro do clã, marcado pela sombra do pai severo, Hector é ao mesmo tempo doce e imponente. Generoso e leal, sempre enxergou Alina como a parte mais luminosa de sua vida, alguém a quem prometeu cuidado e paciência. Mas o tempo o transformou: o menino partiu, e em seu lugar voltou um homem de presença magnética, dono de um sorriso sedutor e de olhos verdes que parecem esconder segredos e desejos proibidos. Entre a obediência e a paixão, Hector é o dilema vivo entre dever e vontade.
Rosa
A melhor amiga de Alina desde sempre, Rosa cresceu à sua sombra, dividindo segredos, risadas e sonhos. Mas, no fundo, guardava um desejo inconfessável: Hector. Seu coração, marcado pelo amor silencioso e pela inveja escondida, deseja ser escolhida, ser vista — ser amada. Entre a amizade e a rivalidade disfarçada, Rosa é a chama que arde em silêncio, pronta para se acender no momento certo.
Esther
Mãe de Alina, uma mulher que o tempo e as dores transformaram em doçura e resignação. Carrega no olhar a saudade de não ter criado a filha por inteiro, obrigada a entregá-la ainda bebê por causa de uma promessa feita pelo marido. Submissa à opressão, mas nunca quebrada, Esther é delicadeza em estado puro, a raiz de toda a bondade que vive em Alina. Sua presença é ternura, sua essência é amor.
Dalila
A caçula que muitos veem apenas como a irmã menor de Alina, mas que guarda em si a ambição de quem deseja mais do que lhe foi dado. Cresce em silêncio, observando, aprendendo, alimentando dentro de si o veneno da comparação. O que no início parece fragilidade logo se torna força, e Dalila se erguerá como uma rival perigosa, disposta a romper laços de sangue para conquistar Hector — e o lugar que acredita ser dela.
O sol caía lentamente sobre o Morro de Santa Fé, tingindo de dourado as copas das árvores e espalhando reflexos de cobre sobre o lago. Para os mais velhos do clã, aquele lugar era mais que um espelho de águas profundas — era sagrado, misterioso, um território que exigia reverência. Mas Dimitri, ainda jovem, acreditava que o mundo estava ao alcance das suas mãos e que nada poderia dobrar sua ousadia.
O comércio de peixes sustentava parte importante do povoado. Todas as manhãs, os homens do clã partiam em pequenas embarcações improvisadas, voltando com redes cheias que alimentavam famílias inteiras e garantiam lucro nas feiras locais. Dimitri, desejoso de mostrar sua coragem, quis provar-se mais hábil que os demais.
— Esse lago não me mete medo — disse a um primo que o acompanhava, um sorriso convencido nos lábios. — Hoje trarei mais peixes que todos.
O primo riu, abanando a cabeça. — Cuidado, Dimitri. As águas são traiçoeiras.
Mas Dimitri não o ouviu. A juventude o tornava surdo aos conselhos, e o orgulho, cego aos perigos.
Entrou no lago com passos firmes, sentindo a água subir-lhe pelos tornozelos, depois pelos joelhos. O sol faiscava na superfície como mil espelhos quebrados. Ele acreditava que nada poderia vencê-lo. Até que a natureza decidiu lembrá-lo de sua pequenez.
Um passo em falso. O fundo traiçoeiro cedeu sob seus pés. O corpo tombou. A água fechou-se sobre sua cabeça num golpe gelado. Em segundos, o ar faltou, e o desespero tomou-lhe o peito. Dimitri lutava, agitava os braços, mas cada movimento o arrastava mais para baixo. Engoliu água. Tossiu. Os olhos se arregalaram diante da escuridão líquida.
“Vou morrer...” foi o último pensamento que conseguiu formar.
Foi então que sentiu mãos firmes prendendo-lhe o braço, puxando-o com uma força quase sobre-humana. Entre turbilhões de bolhas e respingos, uma sombra ergueu-o das profundezas. Quando o ar invadiu de novo seus pulmões, ele engasgou violentamente, cuspindo água, agarrado à margem como um náufrago que se recusa a soltar a vida.
Aos poucos, o mundo voltou a se firmar diante dos seus olhos. E ali, diante dele, estava Rami, o chefe do clã. Um homem de presença imponente, de olhos negros tão penetrantes que pareciam atravessar a alma. A força em seus braços e a firmeza em seu olhar faziam dele mais que um líder — parecia uma lenda viva.
Dimitri caiu de joelhos na lama, trêmulo, encharcado, mas vivo. Com o coração martelando no peito e lágrimas de gratidão misturando-se à água que ainda escorria de seu rosto, ele ergueu os olhos para Rami.
— Tu me salvaste… — a voz saiu rouca, quebrada. — Eu devia estar morto.
Rami não respondeu de imediato. Apenas o observava, sério, como se esperasse algo mais.
Foi então que Dimitri, tomado pelo fervor da vida recém-recuperada, pronunciou as palavras que mudariam tudo:
— Pela vida que me devolveste, Rami, juro diante dos céus e da nossa padroeira Santa Sara Kali… que, se um dia eu tiver uma filha, a primeira menina que nascer em meu lar será tua dádiva. Ela será entregue à tua família, unida ao teu filho em matrimônio.
O silêncio se espalhou pela margem. O primo de Dimitri arregalou os olhos, incapaz de acreditar no que ouvira. Palavras assim não podiam ser retiradas — uma promessa feita diante da fé era tão forte quanto qualquer juramento sagrado.
Rami estreitou o olhar. Havia algo nele que Dimitri não soube decifrar — orgulho, talvez, ou o brilho calculista de quem vê o destino se moldar ao seu favor. Então, assentiu com um leve aceno de cabeça.
— Que assim seja. — Sua voz ecoou grave, como o peso de uma sentença.
E foi naquela tarde marcada pelo sol e pela promessa feita por Dimitri, que uma vida pode ser salva, enquanto outra que ainda nem existia foi fadada e assumir um compromisso que não lhe foi desejado.
O tempo correu veloz desde aquela tarde no lago. O clã prosperava, e Rami, firme como um pilar, liderava todos com a autoridade que lhe era própria. Logo tomou para si uma esposa, Esther, a mais bela entre as mulheres de Santa Fé. Seus olhos escuros eram profundos como a noite, seus cabelos longos reluziam sob o sol, e sua presença iluminava até os dias mais cinzentos do povoado.
Para Rami, ela era um troféu digno de seu posto. Para Esther, ele era o destino inevitável de quem nascera sob as regras implacáveis do clã.
Do casamento, nasceu uma menina — tão frágil e preciosa que, ao vê-la pela primeira vez, Esther sentiu o coração transbordar de amor. A chamou de Alina, “luz”, pois acreditava que aquela criança iluminaria sua vida.
Mas Rami sabia. A promessa feita a Dimitri ardia em sua memória como ferro em brasa: aquela filha não era sua para sempre. Pertencia a outro destino, a outra casa, a outro homem.
Nos primeiros meses, Esther mal se afastava da filha. A menina era sua alegria, seu motivo de viver. Mas quando Alina completou um ano, Rami tomou a decisão que mudaria tudo.
— Ela vai para o castelo — anunciou, firme, sem titubear.
Esther arregalou os olhos, apertando a menina contra o peito. — O quê? Não! Ela é minha filha!
— É a promessa — respondeu ele, frio. — Foi jurada diante de Santa Sara Kali. E o que é prometido, cumpre-se.
O choro de Esther rompeu a noite como um lamento ancestral. Ela implorou, suplicou de joelhos, mas Rami permaneceu inabalável. No dia em que os homens do clã vieram buscar a menina, Esther lutou como uma loba acuada. Mas nada pôde fazer.
Com lágrimas escorrendo pelo rosto, viu sua filha ser levada nos braços de uma das mulheres mais velhas. Os pequenos dedos de Alina ainda se agitavam no ar, como se procurassem a mãe.
Esther tentou alcançá-la, gritando o nome da filha até a voz se desfazer.
Rami apenas a fitou com indiferença e disse, num tom cortante:
— Poderás ter muitas outras. Que diferença uma fará?
Aquelas palavras dilaceraram Esther como lâminas invisíveis. Desde aquela noite, ela chorou até não ter mais forças, embalada pela ausência da filha. Cada riso de criança que ecoava no clã era uma ferida aberta. Cada amanhecer sem Alina, uma morte lenta.
E assim, a menina cresceu longe do colo da mãe, criada entre as paredes do castelo, sob o olhar austero da família do chefe do clã. Esther, por sua vez, nunca mais perdoou o marido — nem a si mesma — por não ter podido salvar sua pequena luz.
Eu sempre soube que não era como as outras meninas do clã. Elas pareciam aceitar com facilidade as regras, os vestidos pesados, as fitas coloridas e as joias que tilintavam como correntes disfarçadas. Eu, ao contrário, sentia tudo isso como uma prisão. Talvez fosse por isso que me chamavam de teimosa — ou ingrata.
Mas como aceitar algo que nunca escolhi? Como aceitar que até as roupas que eu vestia não me pertenciam?
Naquele dia, eu brincava com outras crianças no jardim do castelo. O sol estava quente, e o vento soprava suave, balançando as flores que rodeavam o pátio. Todos pareciam felizes correndo de um lado para o outro, mas eu olhava para uma árvore enorme que se erguia no canto. Seus galhos se abriam como braços convidativos, e eu tive certeza de que ela me chamava.
Eu queria subir. Queria sentir o vento no rosto, olhar o mundo lá de cima e fingir, por um instante, que era livre.
Mas o vestido comprido que eu usava me atrapalharia. Então, sem pensar muito, corri até meu quarto e troquei a roupa por um par de calças velhas que encontrei entre os baús dos meninos. Elas eram largas, cheiravam a poeira, mas me deram uma sensação que nunca havia sentido antes: a de poder ser eu mesma.
Subi na árvore com facilidade, rindo sozinha, sentindo a casca áspera sob minhas mãos e a altura aumentando a cada passo. Do alto, o castelo parecia menor, e por um instante, eu também me senti maior do que todas as regras.
Mas a alegria durou pouco. Uma das mulheres do clã me viu e gritou meu nome. Logo estava no chão, cercada de olhares de reprovação.
— Onde já se viu, uma menina de calças? — resmungou uma delas. — Isso é vergonha, é falta de honra!
— Meninas devem se portar como damas, não como moleques — disse outra, enquanto me encarava como se eu fosse um erro.
O calor subiu ao meu rosto, e antes que alguém percebesse minhas lágrimas, saí correndo. Corri pelos corredores de pedra, até encontrar um canto escondido nos fundos do castelo. Ali, sentei-me, abracei os joelhos e deixei o choro sair.
Era em momentos assim que mais sentia falta dela. Da minha mãe. Eu não lembrava direito de seu rosto — apenas fragmentos, um cheiro doce, a sensação de braços quentes ao meu redor. Lembranças tão vagas que doíam ainda mais, como se minha mente me castigasse por esquecer. Ela havia sido tirada de mim antes mesmo que eu pudesse amá-la como queria. E eu me perguntava, todos os dias, se ela também pensava em mim.
Foi então que ouvi passos leves. Levantei os olhos e vi um menino parado diante de mim. Ele era mais alto que eu, devia ter uns nove anos. Os cabelos castanhos caíam sobre a testa, e os olhos… os olhos eram de um verde tão claro que pareciam guardar dentro deles todo o frescor das manhãs.
Ele me olhou sério, mas não havia julgamento em seu olhar. Apenas curiosidade.
— Por que está chorando? — perguntou com uma voz calma.
Limpei as lágrimas rápido, tentando parecer forte. — Não é da sua conta.
Ele arqueou uma sobrancelha e deu de ombros. — Tudo bem. Mas se quiser me contar… eu sei guardar segredos.
Hesitei. Ninguém nunca tinha falado comigo daquele jeito. Ninguém nunca tinha me oferecido escuta.
— Elas disseram que eu não posso usar calças… que eu deveria ser como todas as meninas. — Minha voz saiu baixa, quase um sussurro.
Ele me observou por um instante e depois sorriu de lado. — Acho que calças ficam bem em você.
Aquela frase, simples e inesperada, aqueceu meu coração como se fosse um abraço. Sorri também, tímida, e naquele instante, senti que tinha encontrado um amigo.
— Meu nome é Hector — disse ele, estendendo a mão.
Olhei para a mão dele, depois para os olhos verdes que me fitavam com uma gentileza que eu nunca havia visto antes.
— Alina. — Apertei sua mão, sem imaginar que aquele aperto seria o primeiro elo de uma história que mudaria minha vida para sempre.
Eu ainda não sabia disso, pois na verdade tudo me parecia um grande mistério quando se referia a minha família, mas de fato minha mãe ainda pensava em mim, seus dias tinham se tornado cinza com minha partida, porém com o tempo ela recuperou-se e teve inclusive outra filha, outra menina Dalila, minha irmã que eu não conhecia.
Hector era filho de Rami, o chefe do clã e por isso era tratado como um verdadeiro príncipe dentro do castelo, ser amiga dele era a melhor coisa que poderia ter me acontecido, por que me permitia mais liberdade.
- Acha que sua mãe virá buscá-la um dia? – perguntou ele em dado momento me olhando enquanto eu me lambuzava comendo amoras.
- Não sei\, eu quero acreditar que sim\, eu quero acreditar que um dia ela passará por aquele portão e dirá a todos que eu sou a filha dela e que nada a impedirá de me levar para casa.
- E onde imagina que seja a sua casa?
Parei pensativa olhando para o nada.
- Não sei\, mas acho que eu seria feliz lá\, sem todas essas regras sobre conduta e vestimentas.
- Você odeia tanto assim suas roupas?
- Não gosto de vestidos\, não gosto de vermelho\, rosa\, laranja\, essas cores não me agradam\, também não gosto dos babados\, das fitas ou das rendas\, minhas orelhas doem com esses brincos e sinceramente? Tudo que eu mais queria era poder vestir um par de tênis\, mas mesmo no frio do inverno sou obrigada a usar sandálias. – Suspirei.
Ele riu.
- Eu gosto do jeito como se veste\, é bonito\, mas sabe o que gosto mais?
Olhei enfiando mais de uma amora na boca ao mesmo tempo.
- O que? – Disse de boca cheia.
- A cor dos seus olhos\, nunca vi olhos tão lindos.
Meus olhos eram de um tom azul esverdeado que contrastava com a minha pele mais bronzeada, sim eu também gostava muito deles, sorri para ele, Hector era extremamente gentil e sem dúvidas meu melhor amigo.
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