Renascida Entre Colheitas
Só mais um parágrafo
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O relógio marcava 23h47 e a tela do computador parecia brilhar mais do que nunca.
Marina piscava pouco, digitava muito e respirava quase nada. A pilha de relatórios ao lado crescia como se tivesse vida própria, e o prazo — aquele monstro invisível — respirava no seu cangote.
Marina
“Só mais um parágrafo”
Ela repetia, pela vigésima vez naquela hora. O estômago roncou, mas ela ignorou. O café da tarde já tinha virado lembrança distante, e a última refeição decente… ninguém mais lembrava.
Ela não sabia, mas naquele momento estava prestes a descobrir que, sim, é possível morrer de tanto trabalhar. E
O estômago roncou outra vez, dessa vez tão alto que quase poderia entrar na ata da reunião. Marina abriu a gaveta em busca de um biscoito esquecido, encontrou apenas um grampo, um post-it amassado e um boleto atrasado.
Marina
“Não dá tempo pra comer agora”, pensou, enquanto tentava convencer a barra de progresso no computador a se mover mais rápido com a força do olhar.
O corpo começou a pesar. Primeiro as pálpebras, depois os braços, e, por fim, até os pensamentos. O cérebro, mal-humorado, começou a desligar setores, como quem apaga as luzes de um prédio que está fechando.
E foi assim, entre um relatório e outro, que Marina caiu de cara no teclado.
A tela piscou, o cursor congelou, e o silêncio foi tão absoluto que até o prazo se assustou.
No dia seguinte, encontraram-na ali, imóvel, com a xícara de café ainda quente ao lado — e a cara impressa no Word.
No laudo: exaustão extrema.
No coração: fome atrasada.
Na empresa: mais uma vaga aberta.
Eu renasci?
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A escuridão foi substituída por uma luz suave e amarelada, como a de uma vela. Marina piscou, tentando entender por que não estava mais na frente do computador. Ao abrir os olhos, viu um teto de madeira, tosco e cheio de vigas. O cheiro de palha e fumaça de lenha enchia o ar.
Uma mulher jovem, com vestido simples de algodão e um lenço amarrado no cabelo, se inclinou sobre ela. O rosto era cansado, mas os olhos castanhos brilhavam com um carinho tão intenso que Marina sentiu um nó na garganta — ou no que agora era sua garganta de bebê.
Ao lado, um garotinho de uns seis anos, cabelo castanho desgrenhado e bochechas coradas de frio, a observava com curiosidade.
Pequeno Tomás
— Mamãe! Ela abriu os olhos! — disse, com um sorriso que mostrava um dente faltando.
A mulher se emocionou, acariciando o rostinho minúsculo da recém-nascida.
Mamãe Elisa
— Bem-vinda ao mundo, minha pequena Helena.
O nome soou estranho… até que Marina percebeu: estava num berço de madeira, enrolada em um cobertor de lã grosseira.
Suas mãos eram minúsculas, e quando tentou falar, só um choro fraco saiu.
Ela, que tinha morrido de fome e exaustão num escritório, agora estava viva de novo — como filha de camponeses, num lugar que parecia ter saído de um livro de fantasia.
E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que o prazo não era mais o problema… mas sim sobreviver.
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O teto de madeira já não parecia tão estranho.
Em poucos dias, Helena havia decorado cada nó e cada rachadura dele.
Bebê Helena
“A vantagem de ser um bebê”, pensou, “é que todo mundo acha normal você passar horas olhando pro nada”.
O calor da lareira aquecia o pequeno quarto, e o cheiro de fumaça misturado com pão assando começava a se tornar familiar.
O irmão — Tomás — vinha sempre espiar o berço. Às vezes fazia caretas, às vezes tentava “ensinar” palavras, mesmo que ela só conseguisse responder com sons estranhos.
Pequeno Tomás
— Repete: to-ma-te — dizia ele, segurando um legume torto.
Bebê Helena
Helena apenas balbuciava algo que soava mais como “blé”.
Pequeno Tomás
Tomás ria, satisfeito como se tivesse dado aula para um sábio.
Mamãe Elisa
A mãe vivia ocupada, indo e vindo com cestos de lenha, vasilhas e panos, mas sempre encontrava um momento para acariciar a bochecha da filha.
Mamãe Elisa
— Minha pequena trabalhadora… você ainda vai me ajudar muito um dia.
Bebê Helena
“Se soubesse que eu já fui escrava de um escritório, ia reconsiderar essa profecia.”
À noite, quando tudo ficava silencioso, ela ouvia ratos correndo no telhado e vento batendo nas frestas da parede. Não era o apartamento barulhento da cidade, mas era um som que ela começava a achar… aconchegante.
O problema é que, junto com essa paz, vinha também a certeza: ela estava num mundo onde não podia se virar sozinha. Ainda.
Ar o clima de preocupação
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Era final de tarde, e a luz dourada que entrava pela pequena janela já começava a sumir. A mãe de Helena colocava lenha na lareira enquanto Tomás, sentado no banco de madeira, descascava batatas com uma faca cega demais para o trabalho.
Pequeno Tomás
— Vai dar pra passar o inverno, mãe? — perguntou o menino, olhando para o balde quase vazio de legumes.
Mamãe Elisa
A mulher suspirou, mexendo no fogo.
— Se a colheita tivesse sido melhor, talvez… Mas com a chuva atrasada e o imposto do barão, vamos ter que racionar.
Pequeno Tomás
Tomás franziu a testa.
— E se faltar?
Mamãe Elisa
A mãe olhou de relance para o berço, onde Helena fingia estar completamente entretida com as próprias mãos.
— Então rezamos para que a primavera chegue cedo.
Bebê Helena
Helena, por dentro, já calculava o tamanho do problema. Na outra vida, ela lidava com metas impossíveis, mas pelo menos ninguém morria de fome no escritório. Agora, a fome era uma possibilidade real — e não só pra ela.
Pequeno Tomás
O menino se aproximou do berço e sorriu.
— Não se preocupe, Lena. Eu prometo que vou te proteger.
Bebê Helena
Ela o encarou, sem poder responder, mas sentiu algo apertar dentro do peito. Talvez essa fosse a primeira vez, em muito tempo, que alguém dizia isso para ela.
E talvez fosse a primeira promessa que ela realmente queria que fosse cumprida.
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A casa estava mergulhada no escuro. Só o crepitar da lareira quebrava o silêncio. A mãe dormia num colchão de palha, e Tomás estava enroscado numa manta fina, respirando pesado.
Bebê Helena
Helena, por outro lado, estava acordada.
O frio entrava pelas frestas da parede como dedos gelados, e ela não conseguia se entregar ao sono.
Um som baixo, quase um sussurro, vindo de fora. Não era o vento — era ritmado, como passos leves sobre a neve.
Bebê Helena
Ela prendeu a respiração.
De repente, uma sombra passou diante da janela. Alta, esguia, e… rápida demais para ser uma pessoa comum.
Bebê Helena
Helena tentou se levantar, mas o corpo pequeno e fraco só permitiu que ela se virasse no berço.
O som parou. Silêncio absoluto.
Bebê Helena
Ela estava prestes a se convencer de que tinha imaginado tudo quando algo se aproximou da janela. Dois pontos brilhantes, como olhos refletindo a luz da lareira, a encararam.
Bebê Helena
Helena sentiu um arrepio percorrer seu corpo minúsculo.
E então, tão rápido quanto apareceu, a sombra sumiu.
Do lado de fora, no escuro, algo se movia entre as árvores.
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O dia amanheceu cinza, e o vento carregava um frio que parecia morder a pele. A mãe de Helena preparava um mingau ralo enquanto Tomás arrumava um cesto com lenha para levar até o galpão.
Mamãe Elisa
— Não se afaste muito — disse ela, sem tirar os olhos da panela. — Ontem à noite eu ouvi… coisas.
Pequeno Tomás
Tomás parou, curioso.
— Coisas? Tipo lobos?
Mamãe Elisa
A mulher fechou a cara.
— Eu preferia que fossem lobos.
Bebê Helena
Helena, deitada no berço, ficou atenta.
Mamãe Elisa
— A velha Marta disse que a neve trouxe de volta os Vigias da Floresta — continuou a mãe, baixando a voz, como se até as paredes pudessem ouvir. — Criaturas que passam pelas vilas quando o frio aperta. Procuram por crianças pequenas…
Pequeno Tomás
Tomás riu, tentando disfarçar o arrepio.
— Histórias pra assustar.
Bebê Helena
Helena engoliu seco. Aquilo explicava os olhos que tinha visto na noite anterior. Não era imaginação.
E, pela primeira vez, ela percebeu que nesse mundo, não bastava sobreviver ao inverno.
Era preciso sobreviver ao que o inverno trazia.
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A noite caiu mais cedo do que o normal. A lareira queimava preguiçosa e o ar estava tão gelado que a respiração virava fumaça dentro da casa. A mãe e Tomás dormiam, mas Helena mantinha os olhos abertos, esperando.
Ela sabia que a criatura voltaria.
A mesma sombra passou diante da janela, lenta dessa vez, como se tivesse certeza de que estava sendo observada. Os dois olhos brilhantes surgiram, e um leve baque soou na porta.
Do lado de fora, uma figura encapuzada entrou, seus pés não fazendo barulho algum sobre o chão de terra. Sob o capuz, Helena viu o contorno de um rosto quase humano, mas com olhos dourados que pareciam carregar séculos de memórias.
Mensageira
— Então é verdade… — a voz soou baixa, melodiosa. — A reencarnada despertou.
Bebê Helena
Helena congelou.
Mensageira
A criatura se ajoelhou ao lado do berço, inclinando-se para ela.
— A deusa me enviou para garantir que sua chegada foi segura. Há muito mais em jogo do que você imagina, pequena.
Bebê Helena
Ela tentou balbuciar, mas só um som infantil escapou.
Mensageira
— Não se preocupe — disse a criatura, como se pudesse ouvir seus pensamentos. — Sua hora virá. Até lá, permaneça oculta. Muitos… não ficariam felizes em saber que você voltou.
E, antes que Helena pudesse sequer processar, a figura se endireitou, desaparecendo na escuridão sem abrir a porta.
Quando o silêncio voltou, ela percebeu que não sabia se aquilo a deixava mais tranquila… ou mais assustada.
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