DEVIR
Introdução
“𝑵𝒆𝒏𝒉𝒖𝒎 𝒉𝒐𝒎𝒆𝒎 𝒋𝒂𝒎𝒂𝒊𝒔 𝒑𝒊𝒔𝒂 𝒏𝒐 𝒎𝒆𝒔𝒎𝒐 𝒓𝒊𝒐 𝒅𝒖𝒂𝒔 𝒗𝒆𝒛𝒆𝒔…”
Platão via o devir como algo ilusório, uma sombra da verdadeira realidade, que são as ideias perfeitas e imutáveis. Ele acreditava que a razão poderia transcender o devir e alcançar o mundo inteligível.
Para Heráclito, nada é estável, "tudo foge" e encontra-se sujeito a um devir feito da metamorfose perpétua das coisas que evoluem, aliás, não de modo linear, mas de acordo com um ciclo que realiza a coincidência dos contrários.
Esse é um conto fictício (ou nem tanto)
Com linguagem e diálogos com conteúdo adulto não sendo adequado pra menores de 18 anos.
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“𝑻𝒖𝒅𝒐 𝒒𝒖𝒆 𝒆́ 𝒔𝒐́𝒍𝒊𝒅𝒐, 𝒅𝒆𝒔𝒎𝒂𝒏𝒄𝒉𝒂 𝒏𝒐 𝒂𝒓…”
Acordei em um lugar desconhecido, diferente. Dor de cabeça. Estômago embrulhado. Um cheiro que não era o meu.
Um corpo ao lado que nem se quer reconheço — já sabia, fiz de novo. Respiro fundo, olhando ao redor a procura das peças de roupa que me faltam. Levanto, o desgosto na ponta da língua. Me visto de qualquer jeito, pego o celular, confiro a carteira no bolso da calça, cato o maço de cigarro da mesa e sem me olhar no espelho — um pouco pelo desprezo da imagem que refletiria — saio pela porta.
O sol brilhava forte, demais. Incômodo. Cerro os olhos tapando com uma das mãos ao sair do prédio em direção à rua. Xingo resmungando baixo comigo mesmo enquanto caminho, pegando o celular do bolso conferindo onde diabos eu tinha parado dessa vez.
Ninguém
Não tô tão longe pelo menos
Rota: 36 minutos a pé. Iniciar. Saco o maço, tiro um cigarro levando aos lábios, acendo tragando lento, começo a caminhar segundo instruções enquanto solto a fumaça. A cabeça latejando me punia por tudo que não conseguia lembrar da noite anterior. Aceitei de bom grado, merecido. Karma.
A camisa mal fechada, a calça amarrotada, a gravata pendendo sem sentido no pescoço… foda-se. Não era a primeira vez, talvez fosse assim que as coisas eram mesmo, o eterno castigo, o lado que nunca “vai chegar lá”.
Ninguém
Tsk! Merda de vida
Se eu me odeio? Quase sempre. As pessoas me olham, de fora, me julgam por meu status, meu intelecto, como me visto, a facilidade de interagir e sorrir, por ter conseguido “estabilidade”… — eu nunca nem soube o que era isso. A carcaça por fora, pode até parecer dura. Aqui dentro, sempre foi uma bagunça.
Termino o cigarro, falta muito ainda. Inquieto, mal pela ressaca, o corpo começando a suar… aperto o passo, só querendo desaparecer. Tento lembrar conforme caminho…
Ninguém
Quem caralhos era aquele cara? Nome… nome, nome, nome! Nem um nome?! Porra de cabeça fudida!
Irritado. Frustrado. Mas não surpreendido, eu me conheço bem. Quando entro naquele estado, sabia que ia sair do controle — eu sempre faço merda. Sai do trabalho e fui direto pro bar no caminho de casa, sem chance de ficar sozinho com meus pensamentos. Não hoje. Não depois que el-…
Ninguém
Não. De novo não. Falei que ia esquecer.
Saco o maço, acendo outro cigarro, sem perceber que já chegava no portão de casa.
Ninguém
Argh! Merda de dia!
Azar. Decido terminar antes de subir. Escoro na grade embaixo da árvore que tem ali, o olhar sobe tentando encontrar distração, qualquer coisa pra não pensar de novo — nele. Solto a fumaça devagar. Flashbacks mal configurados vindo de vez que outra na cabeça. Um copo. O cigarro nos dedos em cima do balcão. Música alta. Burburinho ao redor. O banheiro. Alguém se aproximando. Alguma merda saiu da boca dele. A mão na minha cintura.
Ninguém
Ahhh! Tsk… lixo! Fraco, idiota…
Parecia fazer sentido, ao primeiro sinal de que me notara eu fui pra cima dele. Provavelmente uma cena horrível, de péssimo gosto. Preferia não ter lembrado… a ânsia quase palpável de mim mesmo. Sorrio irônico, vencido
Ninguém
No fim, é isso que eu sou…
Apago o cigarro. Chave, portão, elevador, porta de casa. Finalmente. Cruzo por ela tirando os sapatos, a gravata largada no chão, termino de abrir a camisa e vou até a cozinha. Abro a geladeira. Água. Muita. Quase a garrafa inteira. Volto a me arrastar preguiçosamente pela casa até o banheiro. No reflexo, um vulto vergonhoso. Tento ignorar sem dar importância, tiro o resto de roupa e abro o chuveiro me colocando abaixo da queda d’água. A mão permanece recostada na parede, a cabeça pendente pra baixo…
Concentrando apenas na água que corre pelo corpo, o barulho, o frescor… juntei as mãos levando ao rosto, esfregando enquanto os pensamentos insistiam em voltar… eu fraco cedendo mais uma vez a eles… seu rosto, seu sorriso, seu cheiro, seus carinhos, os planos que fizemos, os sussurros que só seu ouvido conhecia da minha boca…
Lembrar ti dói, porra dói muito. O corpo, a cabeça, o coração, a alma. Ainda. Me agarrando a qualquer outro corpo, tentando apagar qualquer vestígio de sentimento que ainda exista. Desesperado em esquecer. Mas as memórias… as lembranças… ah.. essas continuam aqui. A água segue correndo pelo meu cabelo, enquanto eu sigo imóvel, perdido em você de novo. Tapa. O rosto sentindo arder
Estado: deplorável. Desde a última mensagem, o último toque, a última chance. Idiota. Eu já devia saber que não devia ser digno de ninguém. Não sei manter, sou bom em afastar, em construir muros e me fechar. O resto? Não sei como funciona. Erro de fábrica, como dizem.
Desligo o chuveiro, seco com a toalha e enrolo na cintura, saindo em direção ao quarto. Na passada, pego o celular e me jogo na cama de costas. Os braços abertos, os olhos no teto. Olho pra tela… esperando. Qualquer coisa, nem que fosse pra me mandar pro inferno. Nada. Isso era o pior.
Incômodo? Que incômodo? Quando incomodou? Quando eu disse que fez isso? Raiva me consome. O silêncio devastando minha mente, o medo me segurando no mesmo lugar. Eu sabia que tava perdido quando te beijei já a primeira vez. O jeito como meu corpo respondia ao seu toque. Como eu me senti confortável em me abrir e me expor. Tudo que eu disse pra te trazer pra mais perto. Então, eu estraguei tudo. Surtos. Incertezas. Desconfiança. Nada mais era real e tudo podia ter sido apenas um sopro no ar.
É, defeito de fábrica que dizem.
Continuo sozinho deitado ali. Silêncio. O peso da própria existência, das próprias escolhas… da falta. O cabelo molhado sob a cama, a respiração continua interrompida só por suspiros vez que outra… fecho os olhos sentindo a brisa fria que entrava pela fresta entreaberta da janela, balançando a cortina… levo os olhos até o céu do lado de fora, o sol continuava forte, brilhante e quente, sorrio triste lembrando de uma conversa que não deveria.
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“Aqui o vento tá gelado, mas no sol tá quente. Tá um dia de frio perfeito.”
O céu refletia azul de ponta a ponta. Algumas nuvens perdidas aqui e ali, a brisa passando pelo meu rosto, eu totalmente perdido nas lembranças.
O celular vibra na minha mão. Uma chamada, Juan. Não quero, mas atendo
Juan
Ahh tá vivo então, achei que tinha me livrado
Ninguém
Não foi dessa vez
*seco*
Juan
Já tô chegando. Tenho comida
Desligo. O interfone toca logo em seguida. Me levanto sem vontade, o corpo pesando uma tonelada e a cabeça prestes a explodir. Vou até o interfone e libero a entrada. Giro a chave deixando a porta destrancada e me atiro no sofá. A cabeça tombada no encosto e os dedos apertando os olhos com força, ainda enrolado na toalha. Não demora muito pra ouvir o som da porta abrindo.
Juan
E ai — fala andando na minha direção — pela cara a noite foi boa
Levanto a mão do rosto e olho de canto pra ele, o olhar de quem tá prestes a pular no pescoço do primeiro e matar
Juan
Eita, tão ruim assim é? Calma, tenho comida e refri — ergue a sacola parda sorrindo
Me ajeito no sofá, enquanto ele tira o conteúdo da sacola e vai colocando na mesinha de centro, se sentando na poltrona de frente pra mim do outro lado.
Ninguém
Quando tu saiu ontem por que não me levou junto?
Juan
Para né, até parece. Eu tentei. Mas pra variar, tu quis ficar mais e eu já tava de saco cheio de ter que te ver reclamando e se botando pra baixo
Juan
Pois é. Mas já foi, come aí, trouxe o preferido, wooper vegetariano, o remédio de todas as suas ressacas
Ninguém
Péssimo mas pior que sempre é bom mesmo. Vazou sozinho ontem?
Juan
Ah, sim, não tava afim de nada. Só passei lá porque sabia que tu ia tá ali
Ninguém
Hm. Entendi. Sorte sua
*morde o hambúrguer*
Juan
Não entendo porque tu faz isso cara. Na boa, supera isso de uma vez e segue o baile
*comendo*
Ninguém
Vai se fuder Juan, eu tô fazendo isso
*pega o refri e toma*
Juan
Assim? Mano tu tá um lixo. Nem trabalhar direito tá conseguindo, não foi no treino. Deu cara
Ninguém
Foda-se. Tempo leva tempo… eu tô quebrado, to juntando a merda dos meus pedaços de novo… mas… daqui a pouco… passa…
Juan
Culpa sua. Eu te avisei
Ninguém
Quer que eu te chute daqui pra fora?
*encaro*
Juan
Parei
*levantando as mãos*
Terminamos de comer o restante quase em total silêncio, só quebrando por algumas perguntas triviais com coisas do trabalho
Ninguém
Na bancada da cozinha
*aponta com a cabeça*
Ele levanta vai até a bancada pegando o maço saindo pra sacada, levanto indo logo atrás. Pego o maço da sua mão, levo um cigarro a boca e acendo. Tragando enquanto olhava pro movimento na rua, perdido em qualquer pensamento
Juan
Podia ser a gente, mas tu não deixa
*aponta pra um casal de velhos atravessando a rua*
Ninguém
Sem chance
*rio sem graça da hipótese sem fundamento*
Ele ri também. Juan foi uma das primeiras pessoas com quem saí depois que me mudei, a gente se conheceu em algum aplicativo e marcamos um encontro. Desastre total. Romanticamente, nada deu certo, nem aconteceu. Mas desde então ele não saiu da minha vida e acabamos nos tornando bons amigos. Até demais eu diria, ele não respeita nenhum limite que eu imponha e faz o que tem na cabeça. Mesmo eu não falando muito da minha vida pessoal, o desgraça é bom observador e sempre consegue me ler. Um dos únicos com passe livre na minha casa e com quem saio. Trago uma vez mais, soltando a fumaça devagar…
Juan
Cola na Gabi hoje né?
Ninguém
Puta merda, nem lembrava mais
Juan
Não me surpreende. Tem um tempo pra se recuperar até lá, é só a noite
Juan
Ninguém mandou queimar a largada ontem
Gabi, amiga do escritório em comum com o Juan, festa na casa dela hoje a noite. Bebidas. Pessoas. Barulho. Vontade: zero. Mas por obrigação moral a nossa amizade, sei que vou acabar indo
Juan
Vou chegar nessa. Nos vemos depois
*apaga o cigarro no cinzeiro e afaga meu cabelo*
Ninguém
*concordo com a cabeça tragando mais uma vez*
Juan sai, o barulho da porta se fechando. Silêncio… continuo na sacada, sentando no banquinho apoiando as costas na parede ao lado da mesa. Dou a última tragada do cigarro o observando entre os dedos…
Xingo. O coração acelera. O peito aperta. Cerro os punhos. Respiro fundo. Os pensamentos, eles não cansam de me apunhalar um a um… um riso sem graça escapa, triste, por mim mesmo e do que não pode ser esquecido tão facilmente.
A gente apaga o que pode ver, traça novas rotas de fuga e refaz o trajeto. Mas o que já aconteceu, o que já foi marcado, tocado, não pode ser esquecido.
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