Capítulo 1 – A Carta e o Chamado
Ashbourne Hall despertava sob o sussurrar da brisa primaveril. Do lado de fora da janela do escritório, os campos verdejantes se estendiam até onde a vista alcançava, salpicados de flores silvestres e banhados pela luz suave do amanhecer. Charles Ashcombe, porém, não prestava atenção à beleza familiar que tanto amava. Ele encarava uma carta.
— Então é isso — murmurou para si, dobrando cuidadosamente o papel com o brasão do Parlamento.
Seu pai, o duque William Ashcombe, havia entrado minutos antes, deixado a correspondência sobre a mesa e partido sem dizer uma palavra. O gesto, por si só, dizia tudo.
Charles ergueu os olhos para a planta baixa de uma vila que estava desenhando. Era um projeto antigo, iniciado como exercício, mas agora parecia ganhar vida.
A carta dizia:
> “Senhor Charles Ashcombe,
O Parlamento, ciente de sua experiência em planejamento urbano e restauração estrutural, solicita sua presença em Elmridge, condado de Northfield, para liderar a reconstrução da vila após o incêndio que destruiu parte de sua infraestrutura.
Trata-se de uma missão de grande importância social. Sua resposta deve ser imediata.”
Charles se recostou na cadeira. “De grande importância social.” Era assim que os nobres descreviam tragédias de pessoas pobres: com palavras elegantes e distantes.
Ele fechou os olhos por um momento. Lembrava-se de quando criança, andando ao lado da mãe pelos vilarejos menores, vendo as crianças correndo descalças, ouvindo as histórias de mulheres que costuravam à luz de velas, homens que trabalhavam com ferramentas quebradas. Eleanor Ashcombe sempre dizia:
— Nunca te esqueças: o sangue azul não serve de tinta para planos. São os olhos atentos e o coração justo que devem guiar tua prancheta.
Charles abriu os olhos. Pegou a carta novamente, dobrou-a e a guardou no bolso interno do colete. A decisão estava tomada.
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Três dias depois, Charles embarcava em uma pequena carruagem em direção a Elmridge. Levava apenas uma maleta com roupas, seu estojo de desenho, uma trena de latão, e um exemplar de Os Princípios da Arquitetura Moderna. O restante viria depois.
A viagem era longa e solitária, o tipo que permitia ao pensamento vaguear. Ele recordava as reuniões sociais das quais fugia, os convites de casamentos vantajosos recusados, e os comentários sussurrados pelos corredores de Londres:
— O filho do duque, um arquiteto? Imagine que desperdício…
Mas ele não se importava. Nunca se importara.
Quando o cocheiro anunciou que estavam se aproximando da vila, Charles endireitou-se no assento e afastou a cortina. O que viu arrancou-lhe um suspiro pesaroso.
Elmridge parecia um fantasma de si mesma.
Casas queimadas, estruturas parcialmente desabadas, ruínas de madeira empilhadas como ossos carbonizados. No centro da vila, a praça principal abrigava uma pequena tenda improvisada onde algumas pessoas se reuniam. Havia crianças com roupas de doações, mulheres com lenços escuros e rostos marcados de cansaço.
Charles desceu da carruagem e caminhou lentamente, absorvendo cada detalhe, cada cicatriz visível do lugar.
— O senhor é o arquiteto? — perguntou uma voz feminina às suas costas.
Ele se virou. E então a viu.
Uma jovem mulher, de postura firme e olhar incisivo, estava diante dele com as mãos cruzadas nas costas. Vestia um traje modesto, mas limpo, e usava os cabelos castanhos presos num coque simples. Seus olhos, de um verde profundo, pareciam estudar tudo — até mesmo as intenções dele.
— Charles Ashcombe, a serviço da vila de Elmridge — respondeu, fazendo uma leve reverência.
— Amélia Lambert — ela respondeu, com um aceno breve de cabeça. — Diretora da escola da vila. Ou… o que restou dela.
Charles arqueou uma sobrancelha, surpreso.
— A escola sobreviveu ao incêndio?
— Parte dela. Eu me certifiquei disso.
— Sozinha?
— Com a ajuda das crianças maiores. E algumas ferramentas esquecidas no depósito da igreja.
Charles sorriu de leve. Havia algo desafiador naquela mulher — e não no mau sentido. Era o tipo de firmeza que só nasce da dor e da convicção.
— Me disseram que encontraria um vereador local, algum administrador…
— Ele fugiu na segunda noite do incêndio. Dizem que se refugiou na propriedade de um primo. Desde então, tenho feito o que posso.
— E o clero?
— Um padre vem uma vez por semana. Mas só reza. Não reconstrói paredes.
Charles assentiu lentamente.
— Então é você quem sustenta Elmridge.
Ela o encarou.
— Não. São as pessoas. Eu só continuo pedindo que não desistam.
Ele guardou essa frase.
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Amélia o guiou até a antiga escola, onde uma parte do telhado havia desabado, mas três salas ainda estavam de pé. Ela apontou com clareza as áreas críticas, listou as famílias que haviam perdido tudo, mencionou nomes, idades, problemas de saúde, talentos esquecidos. Sua fala era direta, sem floreios, como quem não tinha tempo a perder com adulações.
Charles tirou do estojo uma pequena prancheta e começou a rabiscar esboços.
— Planeja começar pelo que? — perguntou Amélia.
— Pelo centro da vila. Reconstruir a praça, estabelecer um ponto de água limpa, reerguer o celeiro e garantir moradias provisórias.
— E a escola?
Ele a olhou de relance.
— Será o primeiro edifício oficial a ser restaurado. A educação vem antes dos muros.
Por um breve segundo, o olhar de Amélia suavizou-se. Ela não disse nada, mas assentiu levemente.
— Os meninos podem ajudar com a remoção de entulho. As meninas também, se o senhor não tiver objeções.
— Nenhuma. Toda ajuda é bem-vinda. Inclusive a sua.
Ela ergueu uma sobrancelha, surpresa.
— Eu?
— Você parece saber mais sobre Elmridge do que qualquer mapa ou documento. E… é boa com madeira. Vi as escoras improvisadas.
Amélia sorriu pela primeira vez.
— Obrigada. Raramente sou ouvida por homens com títulos.
— Eu sou arquiteto, não título.
— Veremos.
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Ao fim do dia, Charles instalou-se numa das poucas casas intactas, cedida por uma viúva que agora morava com a filha em outro vilarejo. Amélia havia providenciado tudo, até mesmo uma refeição simples de batatas, pão e chá.
Enquanto comia à luz de um lampião, Charles registrava anotações num caderno de couro:
> “Amélia Lambert. Firme. Organizada. Obstinada.
Esta vila sobrevive por ela.
Mas há algo mais. Um silêncio nas entrelinhas. Um segredo que paira.
E o modo como me olha… como se estivesse medindo não minha altura, mas meu caráter.”
Guardou o caderno e olhou pela janela. Amanhã começariam a limpeza dos destroços. Ele sabia que não seria fácil. Mas também sabia que algo ali — naquela terra, naquela vila e talvez… naquela mulher — o chamava com mais força do que qualquer projeto anterior.
E como todo arquiteto que respeita a base antes de erguer as torres, Charles compreendeu que para reconstruir Elmridge, ele teria que, primeiro, compreender suas fundações.
E as dela também.
Capítulo 2 – O Primeiro Dia de Trabalho
A manhã seguinte trouxe consigo uma neblina suave que se espalhava pelas colinas e pelas ruínas de Elmridge, tornando a vila ainda mais silenciosa e imponente. Charles Ashcombe, com as mãos firmes na prancheta e uma medida na outra, observava os trabalhadores que começavam a se reunir na praça central. Alguns eram homens com semblantes endurecidos pelo tempo, outros, crianças mais velhas, que se arrastavam sob o peso de um dia de trabalho.
Amélia Lambert estava na frente, orientando com destreza as tarefas do dia. Ela não usava luvas, e seus dedos estavam manchados de terra e madeira. Seus olhos estavam atentos a cada movimento, e a voz não passava de um comando baixo, mas firme.
— Os mais novos ficarão com as escoras da praça — dizia ela, com calma. — O resto, com a reconstrução das casas.
Charles, que a observava de longe, notou a confiança que ela tinha sobre aqueles a quem liderava. Havia algo nos seus olhos que nunca vira em outras mulheres: não apenas uma autoridade, mas uma generosidade silenciosa que parecia envolver todos ao seu redor.
Ele se aproximou lentamente, sentindo os olhares dos trabalhadores sobre ele. Alguns com apreensão, outros com curiosidade. Finalmente, Amélia percebeu sua presença e lhe dirigiu um olhar.
— O senhor está pronto para começar, senhor Ashcombe?
— Mais do que pronto. Tenho o projeto delineado. Vou precisar que as casas mais próximas da praça sejam limpas primeiro. Vamos começar pelo centro, em seguida, avançamos para as moradias mais afastadas.
Amélia assentiu, mas antes que ela pudesse responder, um menino pequeno, com as bochechas sujas de poeira, correu até eles com um pedaço de madeira em mãos.
— Senhor Ashcombe, senhor Ashcombe! Tem algo na praça que o senhor precisa ver.
Charles olhou para o menino, ainda confuso, mas seguiu-o. Amélia, com um olhar que parecia ter lido sua dúvida, seguiu logo atrás.
A praça central de Elmridge não tinha mais a imponência que um dia tivera. As ruínas de pedras e madeira queimadas formavam uma paisagem desoladora, mas no meio disso tudo, algo chamou a atenção de Charles. Um pedaço de mármore, erguido entre os escombros, havia sido meticulosamente limpo.
— Um monumento? — Charles perguntou, inclinando-se para examinar a pedra.
— Não. Era um pedestal. No tempo de meus pais, ele carregava uma estátua da Senhora da Misericórdia — explicou Amélia, seu tom suave contrastando com a dureza do cenário.
— E o que aconteceu com ela?
Amélia hesitou por um instante. O vento suave balançava os cabelos dela, e seus olhos se perderam por um momento, como se ela tivesse recuado no tempo.
— O incêndio destruiu tudo. Mas a estátua representava o espírito da vila. A Misericórdia, como diziam, não era apenas uma mulher em pedra, mas o coração da nossa gente.
Charles olhou para o pedestal com um novo entendimento. Ele imaginou o que aquela estátua teria representado, a figura que, em tempos mais felizes, teria erguido a comunidade ao redor de si. Um símbolo de união, agora perdido nas cinzas.
— Eu irei reconstruí-la. Podemos reerguer o pedestal, e, quem sabe, até uma nova estátua — disse ele, com uma confiança que se firmava à medida que entendia o valor emocional do lugar.
Amélia o observou com os olhos estreitos, como se o estivesse testando, sondando suas intenções.
— Está disposto a investir tanto nisso? Uma estátua que, a princípio, pode ser vista como uma perda de tempo para alguns?
— Acredito que a arquitetura deve servir à memória das pessoas. A estátua representava mais do que pedra e mármore; ela representava o espírito de uma comunidade. Eu não consigo imaginar uma reconstrução sem ela. Quem vive em um lugar precisa sentir que algo mais que tijolos os sustenta.
Ela ficou em silêncio, aparentemente pensativa, antes de finalmente dizer:
— Concordo. Talvez o senhor tenha razão. Vou reunir o conselho para discutir isso. Pode parecer uma pequena coisa para o senhor, mas para nós, representa muito.
Charles assentiu, observando enquanto o menino se afastava com as mãos vazias, agora com o peso da tarefa concluída.
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Os dias seguintes foram marcados por um ritmo constante e cansativo de trabalho. Charles e Amélia começaram a trabalhar juntos mais estreitamente, decidindo quais ruas reconstruir primeiro, onde seriam erguidas as novas casas, e quais materiais poderiam ser reaproveitados dos escombros. A vila ainda estava distante daquilo que um dia fora, mas a cada passo dado, sentia-se uma promessa no ar. A reconstrução começava a acontecer de maneira mais sólida, mas havia algo mais acontecendo entre eles — algo que se estendia além das discussões sobre madeira e tijolos.
Ao final do quinto dia de trabalho, Charles já havia reunido um esboço completo para a nova praça. O projeto estava em seus olhos, em sua mente, mas também no coração. Ele sabia que o verdadeiro desafio estava por vir, mas, ao olhar para a praça que estava tomando forma, ele sentia que ali, em Elmridge, estava plantando algo mais do que um simples edifício ou estrutura. Ele estava semeando uma nova esperança.
— O senhor tem planos para mais algo, além da reconstrução da praça? — Amélia perguntou ao lado dele, enquanto observavam os homens erguendo os primeiros pilares do novo mercado da vila.
Charles a olhou de soslaio, seus olhos encontrando os dela com um sorriso discreto.
— Sim. Quero construir algo que possa ser útil a todos. Uma nova biblioteca, um centro para as artes e ciências. Uma biblioteca aberta para todos.
Amélia ergueu uma sobrancelha.
— Uma biblioteca?
— Sim. A educação deve estar disponível para todos, não apenas para quem pode pagar por ela.
Ela parecia surpresa, mas também impressionada.
— E o senhor acha que o povo de Elmridge se interessaria por algo assim? Muitos de nós mal sabem ler.
Charles olhou para o céu, onde o sol começava a se pôr, tingindo o horizonte de laranja.
— Eu acredito que, se for dado a eles o valor da educação, aprenderão a amar o saber. Mais do que isso, aprenderão a se empoderar. Isso pode ser a verdadeira reconstrução de Elmridge.
Amélia permaneceu em silêncio por um longo momento. Algo em suas palavras parecia ter tocado um ponto profundo nela, algo que ela não estava disposta a admitir ainda.
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Naquela noite, depois de mais um dia longo de trabalho, Charles e Amélia estavam na tenda improvisada, cercados por mapas e planos, quando ele fez uma pausa. Ela estava observando os papéis com a mesma dedicação imperturbável de sempre, mas seus olhos pareciam perdidos em outro lugar. Quando ele falou, sua voz soou baixa, mas firme.
— O senhor acha que a reconstrução de Elmridge vai mudar tudo? — perguntou ela, quase sem olhar para ele.
— Não. Acho que a reconstrução vai mostrar a todos o que sempre foi possível. Basta acreditar naquilo que pode ser.
Amélia o encarou por um instante. Algo no tom dele, naquela certeza, a fez pensar.
— Talvez o senhor tenha razão. Talvez seja isso que Elmridge precise. Não apenas reconstrução, mas renovação.
O silêncio se fez entre os dois. Charles sabia que a jornada de Elmridge estava apenas começando. Mas algo dizia a ele que a verdadeira transformação estava apenas começando a se revelar — e que ele e Amélia estavam no coração dessa mudança.
Capítulo 3 – Sob as Cinzas
O céu de Elmridge amanheceu carregado naquela manhã, tingido de tons cinzentos que anunciavam uma chuva iminente. Charles Ashcombe, com as botas já sujas de terra e os cabelos desalinhados pelo vento, atravessava a vila com passos determinados. O esboço da nova praça havia sido aprovado pela maioria dos moradores, e os trabalhos avançavam. Mas a verdadeira razão de seu andar apressado era outra: ele procurava Amélia.
Ela não estava na escola, nem na tenda de suprimentos. Por fim, a encontrou próxima ao antigo moinho, sozinha, com um livro fechado no colo e um olhar perdido nas nuvens.
— Está escondida do mundo, senhorita Lambert?
Ela ergueu os olhos devagar, e a expressão dela pareceu abrandar ao vê-lo.
— Estou apenas… respirando.
— Um direito justo. Mas confesso que não consigo respirar direito sem ouvir sua voz organizando todas as frentes de trabalho da vila.
Amélia sorriu com a leveza que só aparecia quando ela se permitia.
— Hoje achei que a vila poderia passar uma manhã sem minha vigilância.
Charles sentou-se ao lado dela, sobre a mesma pedra onde ela estava.
— Quando saí de Ashbourne, pensei que encontraria cinzas e caos. Encontrei cinzas, sim, mas também encontrei… você.
Ela baixou o olhar.
— Eu não costumo ser parte do que os nobres esperam encontrar.
— Ainda bem. Você não é comum, Amélia.
Houve um silêncio que não era desconfortável, mas carregado de algo tênue e novo. As folhas farfalhavam acima deles, e os pássaros, indiferentes à tensão humana, continuavam seu canto.
— O senhor realmente pretende construir uma biblioteca aqui? — ela perguntou, como se tentasse fugir daquele momento.
— Pretendo. E, se me permitir, gostaria que você a administrasse.
Ela o olhou, surpresa.
— Eu?
— Você já dirige uma escola com as próprias mãos, ensina crianças, coordena adultos… E conhece esta vila melhor do que qualquer um.
Amélia pareceu hesitar. Havia algo no brilho dos olhos dela que oscilava entre orgulho e temor.
— Agradeço a confiança, mas… talvez seja cedo para decisões como essa.
— Ou talvez seja tarde demais para adiar o que já sabemos — ele disse, num tom mais suave. — O que você teme, Amélia?
Ela ficou em silêncio por um instante, depois se levantou devagar.
— Não é o que eu temo, senhor Ashcombe. É o que os outros fariam se soubessem quem eu sou.
Ele também se levantou, mas não insistiu. A frase pairou no ar como um sussurro de tempestade prestes a estourar.
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Mais tarde naquele dia, Charles seguiu para a escola com o intuito de revisar a estrutura do teto, que seria reforçado com novas vigas. Ao entrar, notou que algumas crianças permaneciam nas salas, desenhando com pedaços de carvão e papel reaproveitado.
— Senhor Charles! — gritou uma menina, correndo até ele com um esboço nas mãos. — Fiz uma casa com chaminé, igual as que o senhor mostrou!
Ele se abaixou para olhar.
— É maravilhosa, Rose. Você será uma grande arquiteta um dia.
— Minha mãe diz que meninas não constroem casas.
— Sua mãe nunca conheceu minha mãe — ele disse, sorrindo.
Enquanto observava os desenhos, Charles ouviu passos atrás de si. Ao virar-se, deu de cara com um homem alto, de expressão austera, com a barba por fazer e os olhos atentos demais.
— Lorde Ashcombe, presumo? — disse o homem, com voz rouca.
— Charles Ashcombe, sim. E o senhor é…?
— Peter Lambert. Tio de Amélia.
Charles endireitou os ombros. O tom do homem era direto, quase agressivo. E havia algo em seus olhos que o incomodava.
— Veio visitar a escola?
— Vim lembrar-lhe que nem tudo que brilha em Elmridge é ouro. Minha sobrinha tem… passado complicado.
— Todos têm, senhor Lambert.
— Mas poucos com um pai visconde e uma mãe criada.
Charles o encarou. A informação o pegou de surpresa, mas não o abalou.
— Amélia não é responsável pelas escolhas do pai. Ou pelas ausências dele.
— Talvez. Mas cuidado ao misturar títulos com sangue bastardo. A nobreza não perdoa escândalos, por mais nobres que sejam as intenções.
E com isso, o homem saiu, deixando no ar um rastro de advertência amarga.
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Naquela noite, Charles refletia diante do esboço da nova praça. A imagem de Amélia voltava repetidamente em sua mente, entrelaçada agora com os dizeres de Peter Lambert. Filha ilegítima de um visconde. Isso explicava muita coisa: o orgulho, a reserva, o medo de ser “descoberta”.
Ele lembrou-se do olhar dela ao falar da escola, da praça, da Misericórdia. Aquela mulher não buscava redenção — ela era, em si, uma força que se recusava a ser apagada por convenções.
Alguém bateu à porta.
Era Amélia.
— Posso entrar?
— Sempre.
Ela entrou com passos calmos, mas hesitantes. Carregava uma caixa de madeira nas mãos.
— Trouxe isto. São os registros da escola. Antigos planos, listas, ideias… Achei que poderiam ajudar.
Charles aceitou a caixa e, ao pousá-la sobre a mesa, percebeu que o topo escondia um envelope diferente dos outros. Amélia, percebendo sua curiosidade, falou antes que ele perguntasse.
— É uma carta. Do meu pai. A única que recebi.
— Posso?
Ela assentiu.
Charles a leu em silêncio.
> “Amélia,
Meu nome nunca poderá ser seu escudo, mas espero que a verdade não pese sobre seus ombros.
Você nasceu do erro, mas não é erro algum.
Um dia, talvez, o mundo seja gentil com mulheres como você.
Até lá, seja maior do que esperam.
— E.”
Ele olhou para Amélia, que mantinha os olhos baixos.
— Eu não quero piedade, Charles. Só quero construir algo que me permita existir sem precisar me explicar.
— Não tenho piedade de você, Amélia. Tenho admiração. E… algo mais que ainda não sei nomear.
Ela ergueu os olhos.
— Então não diga nada agora. Deixe que Elmridge seja reconstruída antes que nós mesmos nos desconstruamos.
Ele sorriu, tocando de leve a lateral da caixa.
— Justo.
Ela se virou para sair, mas hesitou à porta.
— Amanhã visitaremos as casas do setor oeste. Dizem que há alicerces que resistiram ao incêndio. Gosto de pensar que as estruturas certas sempre resistem.
— Estarei pronto ao amanhecer.
E ela se foi, deixando um silêncio carregado de promessas.
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Na manhã seguinte, quando Charles chegou à área oeste da vila, encontrou Amélia já lá, com as mangas arregaçadas e os cabelos presos com um lenço claro. Junto a ela, alguns homens escavavam os escombros e expunham o que restava das fundações.
— Veja isto — disse ela, apontando para uma base de pedra. — Era a casa da senhora Mildred. Foi uma das primeiras construídas na vila, há mais de oitenta anos.
Charles se agachou e analisou os blocos.
— O material ainda está sólido. Podemos reaproveitar boa parte para a nova estrutura.
— Então ela continuará aqui, de algum modo.
Ele a olhou.
— Sim. O que é sólido permanece. Mesmo que renasça diferente.
E, pela primeira vez, Amélia não desviou o olhar.
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