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Onde Meu Coração Descansa

Exausta até o osso

Clara apertou o botão do elevador pela terceira vez, como se isso pudesse fazê-lo chegar mais rápido. Eram quase oito da noite e, mesmo depois de um dia inteiro em reuniões, planilhas, ligações e discussões sem fim, ela ainda precisava se arrumar para o jantar com Gustavo. O namorado — ou ex, ela ainda não sabia ao certo — tinha feito questão de marcar em um restaurante chique que ela nem gostava. “Temos que conversar”, ele tinha dito, como se isso já não bastasse para tirar sua paz.

O elevador finalmente chegou. No reflexo das portas de aço, ela viu seus olhos fundos e o cabelo levemente desfeito pela correria do dia. A maquiagem ainda resistia bravamente, mas não disfarçava o cansaço que morava fundo em sua expressão. Cada parte do seu corpo doía de estar vivendo uma vida que já não parecia sua.

O apartamento cheirava a vela aromática, o que, por um segundo, quase a acalmou. Mas então o celular vibrou com mais um e-mail urgente. Ela nem leu. Jogou o aparelho no sofá e foi direto para o quarto, tirando o blazer, depois os sapatos, depois respirando fundo como quem tenta não chorar. Ela estava exausta, parecia que só vivia pra trabalhar, não tinha vida nem felicidade, ela não lembra a última vez que se sentiu feliz e relaxada. É só trabalho e mais trabalho.

— Só mais hoje, Clara. Amanhã melhora. — Ela disse pra si mesma, pela milésima vez naquele mês.

Vestido leve, salto discreto, cabelo solto — nem parecia que, por dentro, ela só queria dormir por uma semana. No restaurante, Gustavo já estava esperando, como sempre impecável, mas com um ar impaciente. O garçom trouxe o vinho, eles pediram sem pensar muito, e o silêncio ficou entre eles por um tempo desconfortável demais.

— A gente precisa ser honesto, né? — ele disse, mexendo no guardanapo de linho com os dedos. — Eu gosto de você, Clara. Mas acho que a gente se perdeu. Você vive cansada, distante. Parece que não tá mais aqui.

Ela ouviu tudo com o coração já resignado. Não doía, porque doía há semanas. Talvez ela já soubesse. Talvez tenha até sentido alívio.

— Eu entendo — foi tudo o que respondeu, com a dignidade que ainda lhe restava naquela noite.

Quando chegou em casa, tirou os brincos e sentou no chão da sala. Olhou ao redor, aquele apartamento moderno, silencioso, vazio. Lembrou-se, de repente, do cheiro de café coado na casa da vó, da rede na varanda balançando com o vento da tarde, do som dos grilos ao entardecer.

Sem pensar muito, abriu o notebook. Minutos depois, estava redigindo o e-mail de demissão com mãos trêmulas, mas decididas. Não sabia ainda o que faria depois, mas sabia para onde queria ir.

A casa da vó Marta. A única herança que ela realmente queria. Um pequeno refúgio no interior onde passou todos os verões da infância. Onde o tempo passava mais devagar e o coração batia de outro jeito.

Era para lá que ela ia. Para onde o seu coração descansava.

O cheiro de casa

O carro desacelerou ao final da estrada de terra, levantando uma poeira dourada que dançava no ar da tarde. Clara desligou o motor e permaneceu ali por alguns segundos, olhando para a frente. A casa da avó estava do mesmo jeito — ou quase. O portão de madeira envelhecida pendia torto de um lado, e o jardim, antes tão podado, agora era uma festa de mato e flores que cresciam sem regras. Mas era ela. A casa.

Suspirou fundo, e quando abriu a porta do carro, sentiu o calor da tarde colar na pele como um abraço morno. O barulho da cidade, que ainda zumbia nos ouvidos, foi substituído pelo canto dos pássaros e o leve assobio do vento entre as árvores. Um grilo chiou em algum lugar, e Clara, por um segundo, sorriu. Tinha esquecido como aquele som era bonito.

Com esforço, empurrou o portão e entrou, sentindo a madeira ranger sob seus dedos. Cada passo no caminho de pedras irregulares era uma memória voltando. Ali, ela correu descalça. Ali, caiu de bicicleta. Ali, a avó sentava no fim da tarde, tricotando e contando histórias da juventude. O coração apertou, mas era um aperto bom, quase um reencontro.

A chave, enferrujada, ainda funcionava na fechadura. Ao abrir a porta, o cheiro veio — o cheiro de casa velha, misturado com lavanda e madeira antiga. Clara ficou parada na soleira, os olhos marejados. Era o cheiro da infância. Do colo da avó. Do bolo de fubá no forno e das janelas abertas com cortinas esvoaçantes. O cheiro de casa. De lar.

— Oi, vó... — sussurrou baixinho, sem esperar resposta. Mas no fundo, sentia que ela ainda estava ali de algum jeito.

A casa estava empoeirada, mas intacta. Pegou um pano, amarrou o cabelo num coque bagunçado e começou a limpar. Varreu cômodo por cômodo, abrindo as janelas, deixando a luz entrar. Pôs água pra ferver, mesmo sem saber ainda o que ia fazer com ela. Apenas pelo ritual. Pela sensação de casa viva de novo.

Horas depois, sentou-se no alpendre, com uma caneca de chá simples, e viu o sol se pôr atrás do campo de girassóis ao longe. Eles se viravam na direção contrária agora, prontos para descansar. Clara também. Os ombros doíam, mas a alma, curiosamente, não. Ali, ela não precisava parecer forte. Ali, ela apenas era.

Foi quando ouviu o som de um cavalo ao longe. E um latido. Olhou por entre as frestas da cerca e viu, do outro lado do campo, um rapaz montado, vindo pelo caminho. O chapéu escondia parte do rosto, mas ela viu a barba bem cuidada e o jeito leve como ele conduzia o cavalo. Um cachorro corria ao lado. Pareciam parte da paisagem.

Ele passou sem vê-la, mas ela ficou olhando. Aquela figura parecia arrancada de um livro antigo. Tinha uma suavidade nos movimentos, como se o tempo corresse diferente para ele. Quando sumiu atrás da curva, Clara se deu conta de que estava sorrindo.

Mais tarde, já com o céu bordado de estrelas, acendeu as luzes da varanda. Pegou um caderno antigo da avó, folheou, leu uma receita rabiscada, uma oração escrita à mão, e então encontrou um papel dobrado, como uma cartinha. Era para ela. Pequena, simples, mas com a letra carinhosa da avó:

"Um dia você vai entender que alguns lugares sabem exatamente onde te curar. E eu quis que você soubesse que essa casa é sua, sempre será. Para os dias bons, e para os difíceis também. Com amor, Vó Maria."

Clara apertou o papel contra o peito. Pela primeira vez em muito tempo, não se sentia perdida.

Na manhã seguinte, ainda sonolenta, desceu para varrer o quintal.

Enquanto Clara ainda estava no quintal, ajoelhada perto dos pés de lavanda que sua avó cultivava com tanto carinho, ouviu um som familiar — o rangido da cerca de madeira ao lado. Ela ergueu o rosto, o coração acelerando por um instante, mas era apenas Dona Alzira, uma vizinha antiga e sempre muito falante.

— Ué... Clara? Clarinha?— a mulher se aproximou com os olhos semicerrados, como se ainda confirmasse se era mesmo quem pensava. — Menina, é você mesmo?

Clara sorriu, meio sem graça, limpando a mão na barra do vestido e se levantando.

— Sou eu sim, Dona Alzira. Voltei por uns tempos...

— Ave Maria, eu reconheceria esse cabelo grande de longe! Você é a cara da sua mãe quando tinha sua idade!

A vizinha a puxou para um abraço inesperado, e Clara se viu tomada por aquele cheiro de sabão em barra e quintal molhado — o tipo de memória que a gente não sabe que guarda, até ser puxada de volta.

— Vicente ainda mora com o irmão ali na frente. Aqueles dois vivem por aqui... mas você vai ver, o tempo foi gentil com eles — disse a mulher, com um risinho.

Clara riu de leve. Sentiu as bochechas aquecerem.

Dona Alzira se despediu, prometendo passar outro dia para um café, e Clara voltou a olhar para a varanda. O silêncio voltou a tomar conta, junto com a brisa morna da tarde. Tudo parecia... gentil. Familiar. E, por mais estranho que parecesse, necessário.

Ali, naquela varanda de madeira com cheiro de tempo, Clara teve certeza de uma coisa: mesmo que não soubesse o que estava procurando, aquele era o lugar certo para recomeçar.

Café Aurora

O vento da manhã soprava manso, carregando o cheiro adocicado das flores da praça central. Clara caminhava devagar, como quem redescobre a própria cidade. O calçamento de pedras irregulares, as casas coloridas com varandas de madeira, tudo parecia menor do que em sua memória — mas, curiosamente, mais bonito também. Talvez fosse o olhar de quem voltou com mais perguntas do que certezas.

Ela cruzou a rua e ali estava ele: o Café Aurora.

O toldo bege desbotado balançava suave, e a fachada de madeira trazia o nome pintado à mão com letras elegantes. Era o mesmo café de sempre — o mesmo onde ela tomava chocolate quente nas férias, onde dividia fatias de bolo de fubá com amigas entre uma ida ao rio e outra.

O sininho tocou quando ela empurrou a porta de entrada. E tudo voltou.

O aroma de café passado na hora, o som discreto da colher batendo na xícara, o balcão antigo de madeira escura onde ficavam os potes de biscoito amanteigado… Era como entrar dentro de uma lembrança. E logo ali, atrás do balcão, estava ela: Anelise.

— Meu Deus... Clara?!

Anelise largou a xícara que estava secando com o pano e contornou o balcão num impulso só. As duas se abraçaram forte, como se os anos que as separaram não fossem nada além de poeira no tempo.

— Você voltou mesmo! — Anelise disse, sorrindo largo. — Seu rosto tá igualzinho. Só o cabelo que cresceu ainda mais!

— E você tá com cara de quem virou adulta antes de mim...

— Pois é, herdei essa joça aqui — brincou, olhando ao redor. — Meus pais cansaram, resolveram se aposentar de vez. Agora sou eu quem cuida de tudo — o café, os bolos, até a vitrola.

— Tá tudo igual... igualzinho. Só que mais bonito, Clara disse, olhando para o ambiente com olhos marejados.

Sentaram-se em uma mesinha próxima à janela, e Anelise trouxe duas xícaras do café especial da casa e um pratinho com broa de milho quentinha, como nos velhos tempos.

Ficaram ali por quase meia hora, conversando, rindo, relembrando histórias de escola, dos natais passados juntas, dos tropeços de bicicleta e das tardes de chuva em que se abrigavam no próprio café. Era uma conversa simples, mas carregada de um tipo de carinho que o tempo não consegue corroer.

Foi então que o sininho da porta tocou novamente.

Clara virou o rosto por reflexo. E ali estava Vicente.

Entrou com a calma de quem conhece cada canto do lugar, usando uma camisa jeans surrada e as mangas dobradas até os cotovelos. Tinha o sol nos ombros e um jeito tranquilo que preenchia o espaço. Clara o reconheceu antes mesmo que ele dissesse qualquer coisa. E ele também a viu.

— Oi, Anelise. Vim buscar aquele pão de centeio que encomendei pra mamãe.

— Tá aqui já, Vicente. Espera só um minutinho. — Anelise se afastou, mas antes lançou um olhar cúmplice para os dois. — Ah, olha quem tá aqui. Você lembra da Clara, né?

Vicente olhou diretamente nos olhos dela. Um segundo inteiro se esticou no ar. E depois veio o sorriso.

— Lógico que lembro. — Sua voz era grave, mas suave. — Clara. Você sumiu do mapa, hein?

Ela riu, tentando disfarçar o leve calor nas bochechas.

— Pois é. Fugi por uns bons anos... mas parece que o mapa resolveu me trazer de volta.

— Ainda bem. A gente sente falta de quem fez parte das raízes, mesmo quando não percebe.

Clara assentiu. Os olhos dele tinham aquela coisa difícil de explicar — um sossego que acolhia, mas também instigava.

— Veio só de passagem?

— Não sei ainda quanto tempo vou ficar. — Ela mexeu na xícara já quase vazia. — Talvez um pouco. Talvez mais. Estou tentando escutar o que o lugar tem pra me dizer.

Vicente sorriu de leve, pegando o pacote com o pão.

— Então escuta com calma. Aqui tudo fala devagar mesmo.

Os olhos se encontraram mais uma vez. Clara sentiu como se algo dentro dela tivesse dado um passo adiante, mesmo que os pés estivessem firmes no chão.

— Foi bom te ver, Clara.

— Foi bom te ver também, Vicente.

Ele acenou com a cabeça e saiu, deixando a porta balançar atrás de si com o tilintar discreto do sininho.

Anelise voltou e se sentou com um sorrisinho no canto da boca.

— O Vicente... — disse ela, quase cantarolando.

Clara mordeu a broa devagar, tentando parecer indiferente.

— O Vicente tá diferente...

— Todo mundo muda. Mas tem coisa que continua igual.

E então, as duas sorriram, como quem sabe que certas histórias começam sem alarde — como uma xícara de café numa manhã comum.

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