Verão de Cinzas
Aquela noite ainda queimava nos cantos da memória de Evelyn Drew.
Era como uma cicatriz: invisível à distância, mas latejando sempre que o vento soprava de volta os segredos de Monteville.
Um ano havia passado desde o desaparecimento de Savannah Moreau. Um verão inteiro engolido pela névoa de uma cidade que fingia seguir em frente — mas que, no fundo, permanecia suspensa naquele exato momento em que ela sumiu.
Evelyn agora estava sentada na parte traseira da velha casa dos Penhascos, o lugar onde Savannah foi vista pela última vez. As janelas estavam fechadas com tábuas, as paredes cobertas de hera e pó. Mas ainda era o ponto de encontro deles. Dos cinco. Ou melhor... dos quatro que restaram.
Ela ouvia as vozes vindo da frente. Eles estavam ali. Todos. Como tinham prometido, um ano antes: “Mesmo dia. Mesmo lugar. Mesmo grupo.” Como se isso pudesse trazer Savannah de volta.
Evelyn respirou fundo, alisando os fios castanhos escuros presos num coque meio torto. Estava diferente: mais madura, mais fria talvez. Mas os olhos ainda tinham aquela mesma luz inquieta que enxergava além do óbvio.
— Você vai encarar ou vai fugir de novo? — perguntou uma voz atrás dela.
Ela virou.
Jules Carter, com seu sorriso torto e uma garrafa de refrigerante barato nas mãos. O cabelo loiro bagunçado, a camiseta preta manchada de tinta — provavelmente por preguiça de lavar a roupa direito. Tinha o mesmo sarcasmo nos olhos, mas menos brilho.
— Achei que você não viria — disse Evelyn.
— E perder o show de trauma coletivo? Nem morto — respondeu ele, com aquele tom que só ele conseguia usar mesmo quando falava da coisa mais sombria. Depois abaixou a voz. — Tá diferente. Fria.
— E você tá igual. Fingindo que nada aconteceu.
Eles ficaram em silêncio por um segundo. O vento do penhasco era gelado. Evelyn encarou o mar escuro à distância. Jules bebeu um gole do refrigerante como se estivesse tomando veneno.
Logo depois, os passos no chão de madeira denunciaram a chegada de Mila Hart.
— Posso entrar ou vão continuar se matando no escuro? — disse ela, com o típico tom leve, mas firme. Usava um vestido branco simples e um cardigã amarelo. Parecia deslocada, como se tivesse saído de uma foto antiga.
— Fica à vontade, flor do campo — disse Jules, sem perder o deboche.
— É bom te ver também, palhaço.
Evelyn sorriu, mas logo desviou o olhar. Mila trazia o mesmo brilho no olhar que a antiga Savannah tinha. Aquilo doía.
Cassie Blake chegou logo em seguida, batendo a porta ao entrar.
— Vocês ainda acham que foi uma boa ideia voltar aqui? — perguntou, cruzando os braços. Usava jeans rasgados, uma blusa preta com estampa de cobra e o olhar de quem não confiava em ninguém.
— Ninguém obrigou você — disse Jules.
— Só vim porque se alguém morresse aqui, eu queria estar viva pra dizer “eu avisei”.
— Tá bom, Nostradamus — respondeu ele.
Evelyn respirou fundo. Antes que a discussão escalasse, a porta rangeu mais uma vez.
Rafael “Rafe” Navarro entrou silencioso, com o capuz sobre os cabelos escuros e o olhar escondido sob o brilho dos óculos. Ele não disse nada. Apenas se encostou na parede, olhando para todos como se estivesse calculando cada movimento.
— Estamos todos aqui — disse Evelyn, finalmente. — Um ano depois. Do mesmo jeito.
— Não exatamente — murmurou Mila, abaixando o olhar.
O silêncio caiu como um véu.
Ninguém precisava dizer. Savannah não estava ali. Ela nunca mais esteve.
—
— Querem relembrar o que aconteceu? — Evelyn perguntou, encarando cada um deles. — Uma última vez?
— A gente já fez isso — disse Cassie. — Mil vezes. E nenhuma trouxe ela de volta.
— Talvez porque ninguém tenha contado tudo — respondeu Evelyn, olhando diretamente para Rafe.
Ele não reagiu.
Jules limpou a garganta, desconfortável.
— Você acha que alguém aqui sabe o que realmente aconteceu?
— Eu acho que alguém viu mais do que contou.
—
Antes que qualquer um respondesse, o celular de Mila vibrou.
Ela tirou devagar do bolso, franzindo a testa. Os olhos se arregalaram enquanto lia.
— O que foi? — perguntou Cassie, preocupada.
Mila mostrou a tela. Era uma mensagem.
“Nada fica enterrado para sempre. Especialmente você, Mila. – R.”
—
O silêncio ficou mais denso do que o ar. Evelyn pegou o próprio celular. Todos fizeram o mesmo. E ali estavam: mensagens idênticas, com variações sombrias — assinadas por R.
Jules:
“Você riu enquanto ela chorava. E agora? Vai rir de novo? – R.”
Cassie:
“Você disse que a odiava. Mas será que era só isso mesmo? – R.”
Rafe:
“Você prometeu não contar. Mas eu sei o que você guardou. – R.”
—
Evelyn recebeu uma diferente.
Uma que congelou seu peito por dentro:
“Você era a líder, Eve. Mas foi a única que não viu o fim se aproximando. – R.”
Ela fechou o celular. Respirou fundo. Olhou para os amigos — agora assustados, tensos, cheios de perguntas.
E então, ela falou:
— O jogo começou. De novo. E dessa vez... alguém quer nos fazer pagar.
—
Verão de Cinzas
"Você era a líder, Eve. Mas foi a única que não viu o fim se aproximando. – R."
As palavras ainda queimavam na tela do celular de Evelyn como se tivessem sido escritas em fogo. A sala antiga dos Penhascos estava envolta em silêncio, pesado como neblina. Nenhum deles conseguia fingir que aquilo era só mais uma coincidência.
A mensagem havia sido enviada para todos. E vinha assinada com uma única letra: R.
Sentados num velho sofá afundado, eles encaravam a escuridão da sala, como se esperassem que Savannah entrasse a qualquer momento pela porta da frente. Mas ela não viria. Não naquela noite. E talvez nunca mais.
— Isso tem que ser uma brincadeira — Cassie disse por fim, quebrando o silêncio. — Algum maluco que descobriu nossos números e resolveu brincar de psicopata.
— Mas por quê? — Mila perguntou. Sua voz saiu trêmula, e ela apertava o próprio celular como se ele fosse escorregar de suas mãos. — Quem mais saberia dessas coisas?
— Ninguém — disse Evelyn, firme. — A não ser que…
Ela parou. Seus olhos vagaram até Rafael Navarro, o único ali que não reagira. Sentado na ponta do sofá, de capuz e mãos cruzadas, ele encarava o chão, os olhos escondidos pelas sombras do gorro.
— Vai dizer que não tá surpreso? — perguntou Jules, se inclinando para frente. — Você recebeu a mensagem também?
Rafe olhou para ele devagar.
— Recebi.
— E não vai dizer nada?
— O que vocês querem que eu diga?
— Talvez que você não é o tal “R.”, seria um bom começo! — explodiu Cassie, levantando-se.
— Por que eu seria “R.”?
— Você vive escondendo o que faz no computador! Vive mexendo em coisas que ninguém entende!
Rafe ergueu uma sobrancelha.
— E você vive gritando como se isso te deixasse mais certa.
— Gente, calma! — Evelyn interveio, firme. — Isso não é hora pra guerra civil.
Cassie bufou e sentou de volta, cruzando os braços. Rafe voltou a olhar para o chão, como se estivesse tão desconectado quanto sempre.
Jules se levantou, andou até a parede. Olhou para o símbolo manchado de vermelho — o R escrito de forma grotesca, como se alguém tivesse passado os dedos sujos de sangue ou tinta espessa. Ele se aproximou e passou o dedo por cima.
— É tinta. Ainda fresca.
— Então foi hoje — sussurrou Mila.
— Ou alguém sabia que voltaríamos hoje — disse Evelyn, engolindo seco.
Cassie se inclinou.
— Quem teria acesso ao grupo? Quem sabia do nosso pacto?
Ninguém respondeu.
Jules se virou.
— Talvez devêssemos sair daqui. Isso tudo tá dando errado.
— E deixar a pessoa vencer? — retrucou Evelyn. — Foi isso que fizemos ano passado. Fingimos que tava tudo bem. Fugimos. Deixamos Savannah virar estatística. Não de novo.
Mila se encolheu. Seus olhos encheram de lágrimas.
— Eu não fugi. Eu chorei por ela todos os dias.
— Eu também — disse Jules, num tom mais suave.
— Então vamos fazer algo agora — Evelyn insistiu. — Precisamos rever tudo. Juntos. Detalhe por detalhe. Aquela noite. O que cada um viu. O que sentiu. O que não contou.
Cassie bufou.
— Você fala como se fosse uma detetive.
— E se for isso que eu quiser ser?
Um silêncio constrangedor pairou por um momento.
— Começa então — disse Jules. — Já que é a líder. Conta o que você viu naquela noite.
—
🌫️ FLASHBACK — Um ano antes
Evelyn estava do lado de fora da casa dos Penhascos, encostada no parapeito do deck, observando a festa. Luzes de fada balançavam ao vento. Músicas ecoavam. Gritos e risadas se misturavam com o som distante das ondas. E no centro de tudo... Savannah Moreau.
Ela era perfeita. Vestido azul, cabelos soltos, olhos brilhando com algo que Evelyn não conseguia decifrar. Algo entre euforia e tristeza.
— Ela vai estourar a qualquer momento — disse Jules, surgindo ao seu lado.
— Ela tá fingindo. Como sempre.
— Talvez a gente devesse fingir junto.
Evelyn suspirou.
— Eu sinto que vai acontecer alguma coisa.
Jules a olhou. Pela primeira vez naquela noite, ele pareceu sério.
— Tipo o quê?
Ela demorou para responder.
— Tipo o fim.
—
🕰️ De volta ao presente
Evelyn encarava o vazio, como se ainda estivesse naquele deck, olhando Savannah dançar.
— Eu senti. Senti que ela ia desaparecer. Que algo ia dar errado. Mas não fiz nada.
— Você não podia saber — disse Mila, gentil.
— Mas eu sabia — Evelyn respondeu, sem encará-la. — Eu só não queria aceitar.
Jules coçou a nuca.
— Tudo bem… minha vez, né?
Ele andou até a lareira apagada, se encostou no canto. Parecia prestes a contar uma piada — mas dessa vez, não havia piada.
— Eu briguei com a Savannah naquela noite.
Todos se viraram.
— Você o quê? — Cassie perguntou.
— Ela me viu com… alguém. Ficou com raiva. Disse que eu era um traidor.
Evelyn franziu a testa.
— Com quem ela te viu?
Jules hesitou.
— Isso não importa agora.
— Claro que importa! — disse Cassie.
Mila ficou branca.
— Foi comigo.
O silêncio voltou a cair como um trovão.
— Eu... eu e Jules estávamos ficando — confessou Mila, quase em um sussurro. — Era segredo. Ninguém sabia. Só ela descobriu. E ficou arrasada.
— Porque ela era apaixonada por você — disse Evelyn, encarando Jules.
Jules ficou paralisado.
— Como é que é?
— Você não sabia? Ela me contou meses antes da festa.
Cassie se levantou.
— Isso tá virando uma novela. Todo mundo apaixonado, todo mundo traído.
— E você? — perguntou Evelyn, encarando Cassie.
— Eu o quê?
— Você brigou com ela também naquela noite. Foi vista saindo da casa gritando.
Cassie apertou os olhos.
— Sim. Porque ela invadiu meu quarto e leu meu diário.
— O que ela descobriu?
Cassie hesitou. Mordeu os lábios. Depois respondeu, com amargura:
— Que eu... eu amava alguém do grupo. E não era ela.
Rafe finalmente se levantou. Os olhos ainda baixos, mas agora com um brilho contido.
— Vocês perceberam?
— O quê? — Mila perguntou.
— As mensagens. O “R.”. Elas são personalizadas. Individualmente. É alguém com acesso a mais do que só rumores. Alguém entre nós.
Todos se entreolharam.
— Isso é uma acusação? — perguntou Cassie, de pé.
— É uma constatação — ele respondeu.
Evelyn deu um passo à frente. Os olhos firmes.
— Então vamos jogar o jogo. Do jeito certo, dessa vez. Vamos voltar atrás. Rastrear tudo. Entrevistar. Vasculhar. Desenterrar. Porque se o “R.” quer brincar… vai ter que encarar a verdade.
Ela encarou a parede.
A letra vermelha ainda escorria.
E pela primeira vez em um ano, alguém decidiu fazer alguma coisa.
A casa dos Penhascos parecia respirar ao redor deles. Cada tábua do chão rangia como se fosse um aviso. Cada sombra nas paredes parecia observar.
Evelyn permanecia de pé diante da letra “R” pintada na parede. O vermelho já começava a escorrer, engrossando como sangue seco. Ela não piscava. Não tremia. Mas por dentro, era como se cada batida do coração ecoasse no peito com o peso de um trovão.
— Então o que fazemos agora? — Jules perguntou, cruzando os braços. — Saímos e fingimos que nada aconteceu? Porque essa fórmula deu super certo da última vez.
— A Evelyn tem razão — disse Rafe, ainda de pé. — Alguém está jogando com a gente. Mas o que essa pessoa quer... é que a gente se desestabilize. Divida. Brigue.
— Bom, parabéns pra ele então — retrucou Cassie, amarga. — Porque isso aqui já virou uma zona.
— Cass — disse Mila com cuidado — ninguém aqui está contra você.
— Não? — Ela se virou para Evelyn. — Então me diz por que você me olhou daquele jeito quando o Rafe falou que o culpado pode estar entre a gente.
— Porque eu desconfio de todos. Até de mim mesma — respondeu Evelyn, com uma franqueza gelada. — E se você não fizer o mesmo, pode ser a próxima a desaparecer.
A frase ecoou.
Ninguém respondeu. Só o som das ondas quebrando ao longe.
—
Meia hora depois, o grupo se dividiu para vasculhar a casa. Evelyn não gostava da ideia de se separar, mas algo em seu instinto dizia que ali dentro ainda existia alguma coisa. Um fragmento. Um erro. Uma pista.
Ela subiu as escadas devagar, os degraus gemendo sob seus pés. Tudo estava do mesmo jeito de um ano atrás. A poeira acumulada, os quadros tortos, os móveis cobertos por lençóis envelhecidos. Mas havia algo diferente naquela noite: a sensação de que alguém já estivera ali antes deles.
Ao passar pela porta do antigo escritório, Evelyn sentiu um calafrio. A janela estava entreaberta. A cortina balançava. E havia uma folha no chão. Sozinha. Fora de lugar.
Ela se abaixou e pegou.
Era uma foto.
Uma foto de Savannah.
O coração de Evelyn disparou. A imagem mostrava Savannah sorrindo em frente à escola, usando a jaqueta vermelha que ela sempre amava. Mas havia algo estranho no verso da foto.
Uma frase escrita à mão, em tinta preta:
> "Ela sabia demais. Mas agora, alguém sabe ainda mais."
— R.
Evelyn engoliu seco. Então ele esteve ali. R. esteve na casa. Talvez ainda estivesse.
Ela guardou a foto no bolso e correu escada abaixo.
—
Na sala, todos estavam reunidos novamente. Jules estava vasculhando uma pilha de livros antigos. Mila limpava uma moldura caída. Cassie mexia no telefone. Rafe, como sempre, observava em silêncio.
Evelyn entrou ofegante.
— Encontrei isso.
Ela estendeu a foto.
Cassie se aproximou.
— Isso tava onde?
— No escritório do andar de cima.
— Eu revirei aquele escritório antes da festa do ano passado — disse Jules. — Isso não tava lá.
— Então alguém deixou pra gente.
— E assinou com R. — murmurou Rafe.
Mila passou os dedos sobre a frase.
— “Ela sabia demais.” Quem ela? Savannah?
— Ou… outra pessoa? — sugeriu Jules. — Alguém antes dela?
Cassie balançou a cabeça.
— Isso tá indo longe demais. Eu me recuso a viver um filme de terror adolescente.
— Muito tarde pra isso — murmurou Evelyn.
Ela se aproximou da lareira. Observou os restos da festa de um ano atrás ainda espalhados pela casa: garrafas vazias, um tênis esquecido atrás do sofá, papéis amassados… memórias congeladas. E entre os papéis, algo chamou sua atenção.
Um envelope branco.
Ela o pegou com cuidado. Não tinha remetente, nem destinatário. Apenas uma letra escrita à mão na frente:
“Para Evelyn.”
— O quê… — sussurrou ela.
— Que isso? — perguntou Mila.
Evelyn abriu devagar. Dentro, havia uma única folha.
Sua caligrafia era reconhecível.
Era uma carta.
> “Eve, se você está lendo isso, é porque eu não consegui fugir.
Eu sei que você sempre foi mais esperta. Mas por favor, não tente fazer tudo sozinha.
Há coisas que você não sabe.
Coisas que ninguém sabe.
Ele está mais perto do que você imagina.”
— S.
— É da Savannah — Evelyn disse, com a voz embargada.
— Como assim? — perguntou Rafe. — Ela te escreveu uma carta?
— Eu… eu não recebi isso. Nunca vi isso. Alguém escondeu.
Cassie se aproximou.
— “Ele está mais perto do que você imagina.” — ela leu em voz alta. — Quem é ele?
— Alguém que a Savannah conhecia. E que a ameaçava — disse Rafe. — E que provavelmente ainda está aqui.
— Esperando a próxima chance — murmurou Mila, quase sem voz.
—
Naquela noite, o grupo deixou a casa em silêncio.
Evelyn guardou a carta no bolso do casaco. A foto, na mochila. Mas na mente dela, nada estava no lugar. Tudo estava prestes a ruir. Porque agora ela sabia com certeza:
> Savannah tentou avisar.
E eles não ouviram a tempo.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!