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Protegida Pelo Assassino

Cheiro da Madeira Antiga

Acordei com o cheiro do café coado pela minha abuelita. O som do rádio tocando uma daquelas músicas antigas que só ela conhece, e a luz tímida da manhã atravessando as cortinas floridas do nosso pequeno sobrado em San Luis Potosí. Era a mesma rotina de sempre, mas de alguma forma, aquele dia já parecia diferente. Meu estômago estava apertado, como se algo me esperasse do lado de fora.

Levantei devagar. Minha cabeça doía. Não de um jeito comum, mas como se meu cérebro tentasse lembrar de algo que eu não queria saber. Já era o terceiro dia seguido com aquele incômodo. Talvez fosse só o estresse da faculdade, pensei.

— Ana Laura! O café vai esfriar, mijita! — gritou minha abuelita da cozinha.

— Já vou, abuelita!

Vesti uma calça jeans, uma blusa de gola alta e prendi o cabelo. Sempre me vesti assim, como se esconder minha pele fosse um alívio. Nunca gostei de decotes, saias curtas ou roupas justas. Não que alguém tivesse me imposto isso — era instintivo. Me sentia mais segura coberta.

Sentei à mesa e minha abuelita me serviu uma xícara fumegante.

— Dormiu bem, mijita?

— Mais ou menos… tive uns sonhos estranhos.

Ela me olhou com os olhos apertados. Minha abuela sempre teve essa sensibilidade. Não precisava de palavras pra saber quando algo me incomodava.

— O mesmo sonho de novo?

Balancei a cabeça. Era sempre uma casa enorme. Um corredor escuro. Um cheiro de madeira molhada. E alguém me observando de longe. Eu era pequena no sonho. Devia ter uns cinco, seis anos. Mas nunca conseguia ver o rosto da pessoa. Só sentia o medo. Um medo gelado, imenso, sufocante.

— Talvez você devesse conversar com alguém, mijita.

— Já tô falando com você.

Ela sorriu e apertou minha mão. Era tudo o que eu tinha. Meus pais morreram num acidente de carro quando eu tinha oito anos. Pelo menos é o que diziam. Nunca quis perguntar muito. Sempre aceitei o silêncio como resposta.

Depois do café, peguei minha mochila e segui pro ponto de ônibus. A Universidade de Direito ficava a uns 40 minutos dali. Nada de glamour: ônibus lotado, gente suando, cotoveladas acidentais e, sempre, aquele olhar de alguém que parecia me despir com os olhos. Evitava contato visual. Odiava homens encarando.

A faculdade era minha válvula de escape. Era boa no que fazia. Gostava de estudar, principalmente Direito Penal. Tinha algo reconfortante na ideia de justiça, de ordem, de colocar monstros atrás das grades.

Naquela manhã, cheguei cedo. Fui direto pra biblioteca. Sempre gostava de ficar por lá antes das aulas. Era silencioso, frio, e o cheiro dos livros me trazia uma estranha segurança.

Foi lá que vi Santiago pela primeira vez.

Estava sentado à mesa dos fundos, com um livro de Direito Civil aberto e o olhar perdido. Alto, moreno, usava óculos de armação fina e tinha aquele tipo de beleza de propaganda de perfume caro. Mas não foi isso que me chamou atenção. Foi o modo como ele me olhou — como se já me conhecesse.

— Você é a Ana Laura, certo?

Assenti, surpresa.

— Somos da mesma turma. Mas você nunca olha pra ninguém — disse ele, com um sorriso calmo.

Sorri de canto, sem saber o que responder. Ele puxou a cadeira ao lado.

— Posso?

— Pode.

Conversamos por uns 20 minutos. Ele parecia simpático, educado, inteligente. Falava bem, com um sotaque leve, e usava palavras precisas. Aos poucos, comecei a me sentir à vontade. Algo raro.

Durante as semanas seguintes, fomos nos aproximando. Primeiro como colegas. Depois como amigos. Dividíamos resumos, estudávamos juntos, trocávamos mensagens sobre provas. Era quase impossível não se sentir atraída por aquela atenção. Ele me fazia rir. E por algum motivo, com ele, eu baixava a guarda. Só um pouco.

Certa tarde, ele me convidou para um almoço na casa dele. Disse que a mãe fazia a melhor comida mexicana de San Luis. Recusei de início. Não gostava de ir na casa dos outros. Mas ele insistiu.

— Minha mãe vai adorar você. E meu pai é médico, pediatra. Super gente boa.

A palavra “pediatra” me causou um arrepio. Mas não entendi por quê.

No domingo, fui.

A casa ficava num bairro nobre. Um casarão de três andares, com janelas amplas e jardim impecável. Me senti deslocada já no portão. Mas o sorriso da mãe dele me acolheu.

— Ana Laura, mi cielo! Entra, entra. Sinta-se em casa.

O cheiro da comida era forte. Frango com mole poblano. Santiago parecia à vontade. Me levou até a sala e serviu uma taça de vinho. Eu hesitei. Não costumava beber. Mas aceitei um gole.

Foi quando ele entrou.

Alejandro Gonzales.

Alto. Cabelos grisalhos penteados pra trás. Camisa social branca. Um olhar calmo, quase frio, e uma voz grave, firme, que me paralisou.

— Então você é a amiga da minha joia rara. Santiago fala muito de você.

Ele estendeu a mão. Eu não consegui tocar. Um suor frio escorreu pela minha nuca. Minha respiração ficou rasa. O som da voz dele ecoava na minha cabeça como um trovão antigo, esquecido. O mesmo tom do sonho. O mesmo cheiro da madeira.

— Está tudo bem, Ana? — perguntou Santiago.

— Só... só um pouco de calor.

Durante o almoço, eu mal consegui comer. O olhar de Alejandro me atravessava. Cada vez que ele falava, algo em mim gritava pra sair correndo. Mas eu sorria. Por educação. Por medo. Por hábito.

Na volta pra casa, chorei no ônibus inteiro. Sem saber o motivo. Ou fingindo que não sabia.

Naquela noite, os pesadelos voltaram. Mais nítidos. Eu pequena, sentada num consultório. Um jaleco branco. Uma boneca no colo. E mãos. Mãos me tocando. Uma voz dizendo: “Fique quietinha, vai acabar logo.”

Acordei gritando.

Minha abuelita entrou correndo no quarto, me abraçou.

— Foi só um sonho, mijita. Foi só um sonho.

Mas não era.

Dias depois, fui até Santiago. Tremendo. Respiração falha. Contei tudo. Ou quase tudo. Disse que achava que tinha lembranças... que o pai dele... que talvez...

Ele me olhou em silêncio. Depois riu.

— Ana Laura, você está louca?

— Eu não tô inventando. Eu me lembro. Lembrei do consultório. Do cheiro. Do toque.

O sorriso dele se desfez. Mas não de compaixão.

— Então quer dizer que você quer transar comigo e com meu pai? Era só falar.

Fiquei em choque. Imóvel. Era como se as palavras dele tivessem me arrancado do próprio corpo.

— O quê?

Ele se aproximou. O olhar escuro, faminto. A mão já na minha cintura.

Empurrei. Corri. Saí sem rumo.

A cidade era um borrão. Carros, buzinas, luzes. Atravessava ruas como se o asfalto fosse o único chão que me restava. Ouvi passos atrás de mim. Ele me seguia.

A última coisa que lembro foi o barulho de um motor. Forte. Rápido. O som dos pneus. E então… tudo escureceu.

Homem do carro Preto

O som do motor ainda ecoava em algum canto distante. Meu corpo não respondia. Tudo estava escuro, pesado, como se eu tivesse sido engolida por alguma força invisível. Não havia dor — ainda. Só um silêncio denso e um gosto metálico na boca.

— Está viva… — murmurou uma voz masculina, grave, calma demais para alguém que acabara de ver um corpo no asfalto.

Ele ajoelhou ao meu lado, os faróis do carro iluminando o contorno do meu corpo caído no meio da pista. A calçada ao lado, rachada, testemunhava o impacto. O sangue escorria de um corte na minha testa, misturando-se ao calor do chão. Ele não gritou. Não se desesperou. Apenas observou. Em silêncio.

Era Marcos García. Um nome que ninguém ali conhecia. Um rosto que não constava em registros. Um homem que vivia entre sombras e que, ironicamente, naquele momento, foi o único que enxergou o que estava diante dele.

— Ela não correu de um carro. Ela correu de alguém.

De dentro da jaqueta escura, puxou um pano e limpou a própria mão. O volante ainda estava manchado. Sangue fresco. Não dela. Do homem que ele havia matado minutos antes, atrás de um galpão abandonado a poucos quilômetros dali. Uma execução limpa. Como todas as outras.

Seu carro, uma Bugatti Chiron pintada em Vantablack, parecia mais uma criatura viva do que um veículo. Invisível na noite, monstruosa na presença.

Ele pegou Ana Laura nos braços, com cuidado. Ela estava leve. Frágil demais para aquele mundo. Quando já a colocava no banco de trás, ouviu passos apressados vindo da direção oposta.

— HEY! — gritou uma voz.

Era Santiago. Suado, descomposto, com os olhos arregalados, mas não de medo. Havia raiva. E uma urgência doentia no seu jeito de andar.

— Ela é minha noiva! Me dá ela aqui! Eu vou levá-la pro hospital!

Marcos encarou o rapaz por três segundos. Não mais que isso. Olhou fundo, analisando o tom da voz, o suor frio na testa, a respiração irregular, o leve tremor na mandíbula.

Ele já tinha visto aquilo antes.

Não era pânico. Era perda de controle. Era desespero por ver sua presa sendo levada.

— Tira as mãos dela — disse Marcos, com a voz baixa, mas letal.

Santiago se aproximou mais um passo.

— Ela precisa de ajuda! Eu sou o noivo, entendeu? Ela me conhece! Eu vou cuidar dela!

Marcos deu uma risada seca, sem humor.

— Não com esse olhar, você não vai.

— O quê?

— Eu conheço o seu tipo, garoto. Já vi homens assim no fim da vida, de joelhos, implorando pra não morrer com a garganta cortada. Todos com esse mesmo olhar.

Santiago avançou meio passo.

Marcos tirou uma faca do coldre escondido na cintura e apontou sem hesitar. Nem tremia.

— Mais um centímetro e você não acorda amanhã.

Santiago congelou.

— Você vai se arrepender disso. Eu juro por Deus que vai.

— Então reza pra Ele estar ouvindo, porque hoje você vive por um fio. Agora desaparece.

Santiago recuou, sem coragem de desafiá-lo. Sumiu na escuridão correndo como um rato acuado.

Marcos voltou o olhar para Ana Laura. O sangue na lateral do rosto já começava a secar. Havia hematomas no braço esquerdo. Um roxo leve no pescoço. Ele notou tudo, sem demonstrar emoção. Mas por dentro... algo se acendeu. Algo que ele não reconhecia fazia tempo.

Empatia.

— Merda… — murmurou, abrindo a porta traseira do carro e ajeitando-a nos bancos cobertos com couro preto.

Não podia ir ao hospital. Não daquele jeito. Sujo de sangue, com a arma ainda presa na cintura, os documentos forjados no porta-luvas. Além disso, sabia que um hospital faria perguntas. E ela não podia ser entregue a mais ninguém naquele momento. Estava vulnerável. Fraca. E o predador ainda estava por perto.

Acelerou.

Deixou San Luis Potosí para trás como se fugisse do próprio inferno. As luzes da cidade se apagaram no retrovisor. À frente, só a estrada escura em direção a Real de Catorce, a cidade fantasma onde ele morava. Onde ninguém perguntava nada. Onde o silêncio era lei.

Ana gemia baixinho. Ainda inconsciente. Em meio ao balanço do carro, suas mãos se moviam às vezes, como se buscassem algo. Marcos não olhava para trás, mas ouvia.

Ele ligou o rádio. Estática. Mudou de frequência. Parou numa canção instrumental suave. Algo que não ouvia há anos. Respirou fundo. Algo estava diferente. Aquela garota não era parte do seu mundo.

Mas agora estava nele.

Silêncio entre Monstros

Fiquei três dias naquela casa escondida entre montanhas e ruínas.

Três dias em silêncio, envolta por paredes frias, luz baixa e vozes que só existiam na minha cabeça. O homem que me socorreu — Marcos — falava pouco. Respondia apenas o necessário. Não perguntava nada. Não me tocava além do mínimo.

Ele limpou meus ferimentos com precisão. Me deu comida simples e quente. Um cobertor grosso. E sumia por horas. Era como se eu estivesse sendo cuidada por uma sombra.

Eu ainda sentia dor no corpo. E o gosto amargo do pânico grudado na língua. Não chorei. Não falei. E ele respeitou. Nenhuma tentativa de aproximação, de carinho forçado, de falsa gentileza. Apenas presença. Contida, distante.

No segundo dia, o vi desmontando uma arma na sala. Cada peça colocada sobre um pano escuro, como um ritual. Ele nem se incomodou com meu olhar. E eu... também não.

Algo nele me dava medo, mas não era o mesmo medo que sentia de Santiago. O de Marcos era diferente. Era o medo de quem sabe o que é perigoso — mas também sabe reconhecer um perigo maior nos outros.

Naquela madrugada, antes do terceiro amanhecer, ele entrou na sala com uma mochila surrada. Jogou sobre o sofá, ao meu lado.

— Tem dinheiro suficiente pra pegar transporte, comer, se hospedar. Já pode ir embora.

Assenti, sem questionar. Estava fraca, mas conseguia andar. Ele não me ofereceu carona. Nem abraço. Nem um "se cuida". Apenas silêncio.

Caminhei até a saída da casa e olhei uma última vez para ele.

— Obrigada — murmurei.

Ele não respondeu. Só me encarou por dois segundos. O olhar dele era uma lâmina. Mas, por um instante, vi um tremor ali dentro. Um quase sentimento. Algo que ele engoliu rápido demais.

Eu fui embora.

Voltei pra San Luis Potosí como um vulto. Peguei carona com um caminhoneiro até a rodoviária, depois ônibus, depois uma caminhada longa até chegar em casa. Minha abuela me recebeu com um susto, um abraço, e uma chuva de perguntas que eu não sabia como responder.

— Onde você estava, mijita? Eu achei que você tava morta!

— Eu... me machuquei. Precisei de ajuda. Um estranho me ajudou.

Ela ficou me olhando. Queria dizer mais. Mas calou. Como sempre. Como eu aprendi a calar.

Naquela noite, deitada na minha cama, tudo parecia mais apertado. O colchão mais duro. O quarto mais pequeno. A cidade mais barulhenta.

Mas o que realmente me doía... era o silêncio que ele deixou em mim.

O homem do carro preto.

Não sabia nada dele. Não fazia sentido lembrar dele. Mas eu lembrava. Dos olhos que não me julgaram. Das mãos que não tocaram onde eu não queria. Do jeito como ele me enxergava… como se visse minha dor inteira, mas não quisesse roubá-la de mim.

E isso me assombrava mais do que qualquer pesadelo.

Uma semana depois, voltei à faculdade. As pessoas cochichavam. Diziam que eu tinha sumido por dias. Que talvez eu tivesse surtado. Que Santiago andava estranho.

Eu ignorei todos.

Até que ele apareceu.

No estacionamento da faculdade, num fim de tarde abafado, quando eu achava que já podia respirar em paz.

— Ana Laura!

Minha espinha gelou. Virei devagar.

Ele estava encostado num carro alugado, com roupas novas, barba feita, sorriso falso.

— Posso falar com você?

— Não.

Tentei passar direto, mas ele bloqueou meu caminho com o corpo. Ergueu as mãos, fingindo calma.

— Eu só queria pedir desculpa, tá? Eu perdi o controle aquele dia... eu tava com raiva, confuso… você me acusou do nada… eu não sou aquele cara.

— Mas é, sim — falei com firmeza. — Você disse o que disse com os dentes cerrados. Não foi confusão. Foi você. Mostrando quem é.

— Eu não quis dizer aquilo, Ana…

— Você disse que se eu quisesse transar com você e com seu pai era só ter falado. Quer mesmo me convencer de que não pensou antes de cuspir essa frase?

Ele me olhou com os olhos marejados. Teatral. Um ator péssimo.

— Eu me arrependo… Eu juro…

— Eu não quero o seu arrependimento. Quero distância.

Me afastei. Com o coração batendo rápido, mas não de medo.

Era força.

Era a certeza de que ele nunca mais teria o poder de me quebrar.

E, naquele mesmo instante, por dentro… desejei estar em silêncio de novo.

Num porão de pedra, com cheiro de pólvora.

Num sofá escuro, envolta por um casaco pesado.

Na casa de um homem que não sorria. Mas também não mentia.

Marcos.

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