...Alina...
A voz do diretor cortou o silêncio da sala, enquanto eu ainda encarava o roteiro nas minhas mãos.
— Alina, você vai fazer o papel principal da nova série. E sua parceira será Celeste Ainsworth.
Fechei lentamente o roteiro, sem demonstrar reação. Minhas pernas cruzadas sobre o sofá de couro branco, a taça de vinho ainda pela metade na minha mão. Era uma sala luxuosa, como tudo o que envolvia meu nome. Mas o que realmente me incomodava não era o projeto. Era o nome.
Celeste Ainsworth.
— Ela tem… quantos anos? — perguntei, sem erguer os olhos. Minha voz saiu baixa, calma, mas carregada com a distância de sempre.
O diretor, Thomas — um velho amigo meu, e um dos poucos que ainda tinha coragem de ser sincero comigo — riu.
— Vinte e dois. E antes que diga qualquer coisa, ela é excelente. Voz boa, atua bem, tem carisma. E o público ama ela. O par ideal pra você.
Inalei fundo. Soltei o ar devagar. A mesma desculpa de sempre: “o público ama”. O público amava qualquer coisa que sorrisse com força suficiente.
— Eu não faço par romântico com gente que não sabe nem esconder o que sente. — murmurei, levando a taça à boca. — Isso não é química. É teatro infantil.
Thomas me olhou com aquele típico ar de quem já esperava resistência.
— Justamente por isso vocês vão funcionar. A série é sobre duas universitárias completamente diferentes que se apaixonam aos poucos. E ela já leu o roteiro. Disse que topa. Aliás… — ele abriu um sorriso torto — ...disse que estava animada pra te conhecer.
Revirei os olhos. Ótimo. Uma fã. A última coisa que eu precisava era de alguém que me olhasse como se eu fosse uma deusa inalcançável.
— Quando começamos? — perguntei, fria.
— Leitura de mesa, amanhã. E Alina… — ele me olhou sério por um momento — Tente não ser você mesma com ela logo de cara, sim?
Fiquei em silêncio. Não respondi. Apenas olhei pela janela do décimo quinto andar. As luzes da cidade de Paris refletiam nos vidros enquanto a noite se estendia lá fora. O mundo inteiro me admirava. E mesmo assim, aquela garota de cabelo rosa, com olhos que pareciam de vidro e sorriso grande demais… já estava me dando dor de cabeça.
"Celeste Ainsworth."
Se ela acha que vai arrancar algum sorriso meu… está mais perdida do que eu pensava.
---
Suspirei, impaciente. Eu estava lá há vinte minutos, adiantada — como sempre. Vestia preto da cabeça aos pés. Salto alto, sobretudo acinturado, luvas de couro. Nenhuma expressão no rosto. Nenhuma vontade de estar ali.
Thomas conversava com os produtores do outro lado da sala, quando a porta se abriu.
E ela entrou.
Celeste Ainsworth.
De longe, parecia saída de um comercial de perfume barato. Cabelos rosa claro balançando em ondas perfeitas, um vestido branco curto com detalhes florais, botas de salto baixo, e um sorriso…
Aquele sorriso.
Injustamente brilhante, como se o mundo fosse um lugar adorável de se viver.
— Bom dia! — ela disse, com a voz doce e animada demais para uma sala tão silenciosa. Seus olhos azuis varreram o ambiente até pararem em mim. — Ah… você é a Alina, né?
— Sou. — respondi, sem mover um músculo. Apenas a encarei.
Ela caminhou até mim, estendendo a mão como se fosse uma velha amiga. Eu hesitei por meio segundo, antes de tocar sua pele quente e suave com a ponta dos meus dedos enluvados. Ela não pareceu se incomodar com a frieza.
— É um prazer te conhecer! Eu sou super sua fã desde o filme Noir de Verre. Você estava perfeita.
Não reagi. Nem agradeci. Apenas me virei e puxei a cadeira ao meu lado. O recado estava dado: eu não estava ali para fazer amizades.
Mas ela sentou ao meu lado mesmo assim. E continuou sorrindo.
— Esse projeto vai ser divertido, né? Eu li o roteiro ontem à noite e já fiquei imaginando as cenas da nossa personagem juntas... tipo, aquela da biblioteca? Você leu?
— Leio apenas no dia da leitura. — cortei. Fria. Clara.
Ela deu uma risadinha leve, como se não soubesse o que fazer com o gelo que eu havia jogado entre nós.
— Então vai ser surpresa — disse, tentando manter o tom positivo.
Por que isso me incomodava tanto?
Antes que eu pudesse responder, Thomas chamou todos para sentarem. A equipe técnica, os roteiristas e o diretor da série estavam ao redor da mesa. Celeste sentou ao meu lado, seus braços esbarrando no meu, sem pedir desculpas. Naturalmente invasiva. Naturalmente doce.
Thomas começou a leitura. E quando chegou a hora de Celeste ler sua primeira fala, algo aconteceu.
Ela virou para mim. Me olhou. E disse com a voz mais firme e sincera que eu já tinha ouvido em um set:
> — “Você pode se esconder do mundo inteiro, mas eu vejo você, sabia? Mesmo por trás desse olhar… eu vejo você.”
E, pela primeira vez em muito tempo…
Eu perdi o controle do meu próprio coração.
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A fala dela ainda ecoava dentro da minha mente.
> “Mesmo por trás desse olhar… eu vejo você.”
Era apenas atuação. Um roteiro, uma fala.
Mas, por um instante, não soou como atuação.
Ela tinha me encarado com aqueles olhos azuis como se realmente pudesse me ver — e aquilo me tirou do eixo.
Respirei fundo, recostando na cadeira enquanto os outros liam suas falas. Celeste estava ao meu lado, concentrada, os dedos deslizando pelas páginas do roteiro como se aquilo fosse um livro de conto de fadas. De vez em quando, sorria para alguma fala ou mexia os lábios enquanto lia em silêncio. Era como uma garota em seu mundo perfeito.
Inocente.
Ingênua.
E perigosamente doce.
“Esse tipo de gente é o primeiro a quebrar no meio do caminho”, pensei.
Mas então ela virou o rosto para mim, como se sentisse meus pensamentos.
— Você tá bem? — sussurrou, enquanto outra dupla lia suas falas.
— Estou — respondi, sem olhar. — Isso é trabalho, não é um encontro.
Ela riu de leve. Não se ofendeu.
Claro que não. Gente como ela não se ofende fácil.
— Claro — disse. — Mas se quiser transformar num encontro, eu também não reclamo.
Virei o rosto lentamente em sua direção.
Ela estava sorrindo. De novo. Aquele sorriso.
— Está tentando flertar comigo?
— Talvez. — ela piscou. — Ou talvez eu só goste de provocar você.
Provocar.
Ela sabia o que estava fazendo.
Voltei os olhos para o roteiro. Me concentrei na cena seguinte, onde nossas personagens trocavam uma discussão acalorada antes do primeiro toque de mãos. Irônico. As palavras no papel começavam a parecer mais reais do que eu gostaria de admitir.
E mesmo que fosse só atuação, meu corpo não parecia concordar com minha mente.
Algo nela me deixava inquieta.
E eu não gostava de me sentir inquieta.
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Terminamos a leitura uma hora depois. Todos aplaudiram. O diretor elogiou nossa “química promissora”. Celeste se despediu de todos com abraços, tirou selfies com metade da equipe e ainda teve tempo de virar para mim antes de sair da sala:
— Alina… até amanhã, né? Mal posso esperar pra ensaiar aquela cena do terraço. — Ela sorriu. — A da quase-beijo.
— Espero que consiga fingir bem. — respondi, seca.
Ela deu de ombros.
— Com você do meu lado, nem vai ser tão difícil fingir…
E saiu.
Deixando para trás o cheiro do perfume floral e uma leve inquietação no ar.
Eu permaneci sentada, sozinha, por mais alguns minutos.
Na minha cabeça, repeti a fala dela da leitura.
> “Mesmo por trás desse olhar… eu vejo você.”
Não via.
Ela não via.
Não podia ver.
Porque ninguém nunca viu.
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A noite caiu pesada sobre Paris, como um véu de veludo escuro cobrindo os telhados antigos da cidade. Eu estava de volta à minha mansão — silenciosa, fria, perfeitamente organizada como tudo na minha vida.
Retirei o sobretudo e o joguei sobre a poltrona de couro ao lado da lareira apagada. Subi as escadas lentamente, o som dos meus saltos ecoando pelo mármore, e fui direto para o estúdio do segundo andar. Minhas paredes de vidro refletiam a cidade abaixo, as luzes e sombras dançando sem parar.
Coloquei o roteiro sobre a mesa de vidro e comecei a ler. Episódio 2.
A cena principal: nossas personagens sozinhas num terraço da universidade, trocando provocações que culminavam em um quase-beijo — interrompido por um toque de celular.
Suspirei.
A clássica tensão romântica barata.
Mas… era bem escrita.
Infelizmente.
Fechei o roteiro por um momento. O silêncio da sala era absoluto, exceto pelo som do relógio antigo ao fundo. Eu deveria dormir. Deveria ignorar.
Mas meus dedos foram sozinhos até o notebook.
Digitando algo que eu mesma hesitei em ver.
"Celeste Ainsworth"
Enter.
Milhares de resultados.
Fotos. Shows. Premiações. Entrevistas.
A primeira imagem era de um evento recente em Los Angeles — Celeste com um vestido azul claro, sorriso enorme no rosto, acenando para os fãs. Ao lado dela, um homem. Cantor. Famoso. Namorado? Nenhuma legenda confirmava.
Cliquei no vídeo de uma entrevista.
> “Celeste, como foi ser indicada ao Grammy?”
— “Um sonho! Eu chorei nos bastidores e depois comi três cupcakes de nervoso.”
Cliquei em outra.
> “Você está namorando alguém?”
— “Haha, essa pergunta é sempre a primeira, né? Mas... não, no momento estou solteira.”
Solteira. Ótimo.
Não que isso importasse.
Continuei assistindo.
Em todas as entrevistas, ela era a mesma: alegre, autêntica, transparente.
Não usava máscaras. Não media palavras. Não jogava o jogo.
Era exatamente o oposto de mim.
E talvez… fosse isso que me irritava tanto.
Fechei o notebook com força. Me levantei, fui até a estante e peguei uma taça de vinho. Olhei para o reflexo do meu rosto na janela.
Olhos pretos, sem brilho. Cabelos brancos perfeitamente alinhados. Imóvel.
Ela disse que “via” através do meu olhar.
Que bobagem.
As pessoas só enxergam o que querem ver.
E se ela insistisse em olhar demais… acabaria se cortando.
Mesmo assim...
Lá estava eu, de volta à cadeira.
Abrindo o roteiro.
E relendo a cena do quase-beijo pela terceira vez.
...Celeste ...
Eu estava jogada na cama do hotel com o cabelo todo bagunçado, as pernas pra cima, rindo sozinha enquanto assistia pela décima vez o vídeo do ensaio de hoje. Era só um trechinho — um assistente de produção tinha filmado a gente lendo aquela fala do terraço.
> “Você pode se esconder do mundo inteiro, mas eu vejo você, sabia?”
Na gravação, minha voz saía firme. Natural.
Mas o que me fazia sorrir era a reação da Alina.
Ela desviava o olhar. Por um segundo, só um, os olhos dela tremiam.
Como se… aquilo tivesse passado da atuação.
— A-ha. Te peguei. — murmurei, apertando o pause.
Me virei de lado, abraçando o travesseiro.
Alina Moreau.
Eu a conhecia como o mundo inteiro a conhecia: impecável, distante, poderosa. Uma muralha de gelo vestida de seda.
Mas hoje… ela me ouviu. Mesmo que negue, mesmo que fuja, ela ouviu minha voz de verdade.
E eu não conseguia parar de pensar nela.
Peguei o notebook. Digitei rápido:
"Alina V. Moreau – infância"
"Alina Moreau – entrevista sincera"
"Alina Moreau – vida pessoal"
A maioria das respostas era igual.
"Discreta."
"Reservada."
"Nunca fala de vida pessoal."
"Solteira."
"Fria."
"Enigmática."
— Você é um cofre trancado, né? — falei baixinho, olhando uma foto dela com cabelo preso e vestido preto num festival de Cannes.
Cliquei numa entrevista antiga, em preto e branco.
> “Você acredita no amor, Alina?”
— “Amor é uma invenção útil pra vender flores e filmes.”
Me encolhi no travesseiro, entre um riso e uma careta.
— Ai, garota… quem te machucou?
Continuei lendo. Havia rumores de que ela havia perdido os pais muito jovem. Criada pela tia, treinada em escolas caras. Ganhou um prêmio de atuação aos 16 anos. Morava sozinha desde os 17. Nunca foi vista chorando. Nunca foi vista com ninguém.
Era como se ela tivesse nascido pra brilhar… sozinha.
E, de alguma forma, isso me doía.
Eu não queria que ela continuasse sozinha.
Suspirei e olhei para o teto.
O mundo dizia que ela era impossível.
Mas eu gostava de desafios.
E, no fundo, mesmo que ela não soubesse ainda…
> Eu queria ser a primeira pessoa a fazer Alina Moreau sentir algo de verdade.
---
...Alina...
Acordei antes do despertador.
Não era surpresa.
Eu sempre acordava antes.
A mansão estava silenciosa, banhada por uma luz cinzenta e suave que entrava pelas janelas. Paris ainda parecia adormecida. Mas minha mente já estava desperta. Firme. Imperturbável. Como sempre.
Levantei sem pressa. Cada passo milimetricamente calculado.
Fui até o banheiro, prendi os cabelos brancos em um coque baixo, lavei o rosto com água fria, encarei meu reflexo.
Nada havia mudado.
Ou, pelo menos, era o que eu dizia a mim mesma.
Mas algo em mim se recusava a calar.
Um pensamento. Um nome.
Celeste.
Inspirei fundo. Longo demais para ser apenas respiração.
Vesti uma blusa preta de gola alta, calça de alfaiataria, sobretudo escuro e botas de couro. Meu uniforme pessoal.
Frieza, elegância e controle.
A caminho do set, dentro do carro, abri o roteiro de novo. Página 19.
CENA 06 – TERRAÇO DA UNIVERSIDADE.
As duas estão sozinhas.
Celeste (personagem dela) provoca.
Alina (minha personagem) tenta resistir.
Elas se aproximam. O beijo quase acontece.
Silêncio. Tensão. Um toque interrompe.
Fechei o roteiro.
Já sabia cada linha.
A minha preocupação não era com as falas. Era com o que vinha depois delas.
Cheguei ao set 30 minutos antes. Como sempre.
Fui direto para o camarim, onde a equipe de maquiagem já me esperava. Todos sabiam que eu não gostava de conversa durante a preparação.
Sentei. Fechei os olhos. Respirei.
A única voz que me atravessou sem ser convidada foi a dela.
> “Se quiser transformar num encontro, eu também não reclamo.”
Abri os olhos de repente. Rápido demais. A maquiadora se assustou.
— Tudo bem, senhorita Moreau?
— Sim. Apenas continue.
Não fazia sentido.
Eu já contracenei com atores experientes, beijei colegas em cena sem sequer lembrar o nome deles depois. Por que essa garota — essa criança cor-de-rosa — estava tomando espaço na minha mente?
Talvez… fosse o fato de que ela não me temia.
Ou talvez… fosse o fato de que eu não conseguia ler Celeste Ainsworth.
Isso, sim, era perigoso.
Dez minutos depois, fui chamada para o set. O cenário era lindo. Um terraço ao pôr do sol, com livros espalhados, plantas e uma vista da cidade falsa ao fundo. Tudo perfeitamente romântico, até demais.
Ela já estava lá.
Vestia jeans claros e uma blusa branca fina, cabelos presos num rabo de cavalo alto, fios rosa balançando com o vento. Quando me viu, sorriu.
— Bom dia, Alina.
Ignorei o calor estranho que aquilo causou no meu peito.
— Pronta para trabalhar?
Ela se aproximou um pouco. Estávamos sozinhas no terraço. O diretor e a equipe estavam mais afastados, testando os equipamentos.
— Sempre. — respondeu ela. — Mas… e você? Conseguiu dormir?
Franzi levemente a sobrancelha.
— Você está me perguntando isso por quê?
Ela riu, colocando uma mecha atrás da orelha.
— Só curiosidade. Você tem cara de quem sonha com guerra, não com cenas de romance.
Permaneci em silêncio. Mas parte de mim… quase sorriu.
Quase.
O diretor então bateu palmas.
— Senhoras, vamos começar o primeiro ensaio da cena seis! Sem pressão, só queremos ver o ritmo de vocês.
Celeste virou para mim.
E disse baixinho, antes da claquete bater:
— Pronta para fingir que está apaixonada?
Aproximei-me. Olhei bem dentro dos olhos dela.
— Quem disse que eu preciso fingir?
A claquete bateu.
E a cena começou.
---
O mundo desapareceu por alguns segundos.
Havia só o vento leve. O terraço. E Celeste.
Ela se aproximou, os olhos azuis cravados em mim como se estivesse procurando alguma coisa lá dentro.
Ela não estava interpretando.
Ela estava olhando para mim de verdade.
E isso era muito mais perigoso do que qualquer cena.
> — “Você age como se não precisasse de ninguém.” — disse ela, sua voz firme, doce, sem esforço.
— “E não preciso.” — respondi.
— “Mentira. Todo mundo precisa… até você. Só tá assustada demais pra admitir.”
Dei um passo à frente. Era o que o roteiro mandava.
Mas meus olhos a encaravam de um jeito que não estava escrito.
> — “Você não sabe nada sobre mim.”
— “Sei que seus olhos ficam menos frios quando me olha.” — disse ela, quase num sussurro.
— “Está imaginando coisas.”
— “Então me deixa chegar mais perto... e ver de verdade.”
Silêncio.
Nossos rostos estavam a centímetros de distância.
A cena era feita para parecer que o beijo viria.
Mas a tensão ali… era real.
O mundo inteiro parecia respirar junto com a gente.
Ela olhou meus lábios. Depois meus olhos.
E eu senti — por um instante muito pequeno — vontade de beijá-la de verdade.
Não pela câmera.
Não pela cena.
Mas pelo calor nos olhos dela.
E então — o som de um celular interrompendo a cena.
> “Corta!” — gritou o diretor.
A equipe vibrou. Aplaudiu. Alguns riram.
“Isso sim é química”, alguém murmurou atrás de mim.
Me afastei devagar.
Meu coração estava mais acelerado do que deveria.
E quando virei o rosto para Celeste, ela ainda estava sorrindo.
— Ótimo trabalho. — disse ela.
— Foi só atuação. — menti.
Ela piscou devagar, como se soubesse que eu estava mentindo.
— Sei. Mas mesmo assim... obrigada por me deixar ver você, nem que seja por dois minutos.
E foi embora do set antes que eu respondesse.
Fiquei parada por um momento, respirando fundo.
Dois minutos.
Ela tinha me visto por dois minutos.
E, contra todas as minhas vontades...
Parte de mim queria que tivesse sido mais.
---
A equipe ainda comentava sobre a cena enquanto os técnicos desmontavam parte do cenário.
Fingi desinteresse.
Agarrei o roteiro como se ele fosse importante naquele momento, mas a verdade é que não consegui parar de pensar nos dois segundos antes do corte.
Dois segundos em que ela estava tão perto que eu senti o cheiro doce da pele dela.
Flor de laranjeira, talvez. Ou algum perfume sutil e infantil.
Mas era mais do que isso. Era algo que ficou. Preso na minha pele, nos meus olhos, nos meus pensamentos.
Caminhei em silêncio para fora do set, ignorando os sorrisos que a equipe me lançava. Atravessei os corredores de concreto da produtora como uma sombra elegante, fria, blindada.
Quase consegui escapar.
Mas então, ouvi.
— Alina!
Era ela.
Claro que era.
Me virei devagar. Celeste corria até mim com um copo de chá na mão. Cabelos presos de qualquer jeito, maquiagem levemente borrada do calor dos refletores. Ainda assim, ela parecia… confortável. Feliz.
O oposto exato de mim.
— Trouxe chá de camomila — disse, parando diante de mim. — Achei que podia te ajudar a... relaxar. A cena foi intensa, né?
Olhei para o copo. Depois para ela.
— Não bebo chá.
Ela sorriu, divertida.
— Claro que não. Você tem mais cara de café sem açúcar e desprezo.
Não consegui evitar.
O canto da minha boca… cedeu.
Um sorriso? Não. Só um movimento involuntário. Um erro de cálculo.
Celeste viu. É claro que viu.
— Ei, você quase sorriu. — disse ela, surpresa.
— Você está vendo coisas de novo. — respondi, virando para ir embora.
Mas antes que eu pudesse dar mais de dois passos, a voz dela me alcançou.
— A produção marcou um jantar informal hoje à noite. Só o elenco principal e os diretores. É pra ajudar a gente a se entrosar melhor.
— Não vou. — respondi, sem hesitar.
— Que surpresa. — ela riu. — Mas... seria uma pena.
— Por quê? — perguntei, já sem paciência.
Celeste deu um passo na minha direção. Não intimidante. Não forçado. Mas próximo o suficiente para que eu sentisse, de novo, a leveza incômoda da presença dela.
— Porque... por mais que você tente esconder, Alina… eu sei que você sentiu.
— Sentiu o quê? — perguntei, seca.
Ela sorriu — o sorriso mais calmo e sincero da noite.
— Vontade.
Fiquei em silêncio. Ela não esperava resposta.
Virou-se com o chá nas mãos e caminhou para longe. Seus passos eram leves, quase infantis. Mas suas palavras tinham peso.
Peso suficiente para me deixar ali, imóvel no corredor.
“Vontade.”
Sim. Eu senti.
E agora… não sabia o que fazer com isso.
...Alina...
O restaurante reservado era moderno, discreto, caro. Iluminação baixa, música ambiente suave, garçons invisíveis. Exatamente como eu gostava.
Não deveria ter vindo.
Mas mesmo enquanto pensava isso, lá estava eu. De salto, vestido preto justo, casaco leve e expressão vazia. Uma obra de escultura ambulante. Intocável.
Fui a última a chegar. Claro.
A mesa era longa, com cerca de dez pessoas — o diretor, roteiristas, produtores e... ela.
Celeste.
Sentei no canto oposto ao dela, em silêncio. Não porque eu precisava, mas porque precisava.
Distância era sempre o melhor escudo.
Ela notou minha chegada e sorriu. Um aceno curto, gentil.
Mas não veio até mim. Não dessa vez.
Durante a primeira hora, falaram de tudo: da cena de hoje, das expectativas da série, de outros projetos. Eu mal falei. Observei. Como sempre.
E Celeste?
Ela iluminava tudo. Falava com todos. Ria alto. Tocava nos ombros das pessoas com familiaridade.
E, vez ou outra… me olhava.
Como se estivesse esperando algo de mim.
O vinho chegou. Eu bebi. Um pouco mais do que deveria.
Talvez por isso, quando o diretor sugeriu que nos misturássemos para conversar melhor, eu não recusei quando ela veio até mim com um sorriso provocador e um copo na mão.
— Uau. Você em um jantar com pessoas. Um evento raro. Posso fazer um desejo?
— Já fez vários. — respondi. — Tá na hora de parar antes que se frustre.
Ela riu. Aquela risada. Alta. Verdadeira.
— Você sempre foi assim com todo mundo?
— Não.
— Então só comigo.
— Provavelmente.
Ela mordeu o lábio inferior, pensativa.
— Gosto disso.
Arqueei a sobrancelha.
— De ser tratada com frieza?
— De saber que você só se incomoda comigo.
— Não me incomoda. — menti.
— Mente mal. — ela sorriu. — Seus olhos gritam.
Revirei os olhos, me virando para olhar a taça. Mas ela se aproximou um pouco mais. Havia pessoas rindo ao fundo, copos brindando, o perfume do vinho misturado ao perfume dela.
> Flor de laranjeira. De novo.
— Você se protege tanto, Alina... que dá vontade de entrar só pra ver o que tem aí dentro. — disse ela, num tom baixo, quase íntimo. — E eu juro que, se você deixar, não vou bagunçar nada.
Por um segundo… eu quis.
Quis abrir a porta.
Quis deixá-la entrar.
Quis beijar ela ali mesmo.
Mas…
— Não quero ninguém aqui dentro. — disse. — E principalmente não você.
Ela me olhou. Longo. E sorriu — como quem ouve um “sim” disfarçado de “não”.
— Isso é uma pena. Eu seria gentil.
Virou-se e saiu para conversar com outra pessoa.
Fiquei ali, com o vinho na mão… e com o gosto de algo que eu ainda não tinha provado, mas já sentia falta.
---
Levantei antes da sobremesa.
Não havia motivo para ficar. As risadas já estavam altas demais, e as palavras da Celeste ainda ecoavam nos meus ouvidos.
“Se você deixar, não vou bagunçar nada.”
Tão ingênua. Tão doce.
Como se o caos já não tivesse começado só com a presença dela.
Peguei meu casaco, avisei o diretor com um gesto leve e saí. O vento da noite bateu em meu rosto como uma resposta direta ao calor daquele salão.
Respirei fundo.
Estava quase chegando no carro quando ouvi passos apressados atrás de mim.
— Alina! Espera…!
Fechei os olhos.
Claro. Ela não deixaria barato.
— Eu disse que não gosto de ser seguida. — murmurei, virando devagar.
Celeste estava ali, com o casaco mal fechado, cabelos levemente bagunçados pelo vento, ofegante por ter corrido atrás de mim.
— Eu sei. Mas mesmo assim, eu vim.
— Por quê?
Ela hesitou um instante. Depois se aproximou.
— Porque eu não quero que essa noite termine assim. Você… se fechando. Fingindo que nada aconteceu.
— Nada aconteceu. — cortei.
— Alina… eu te encostei hoje. Olhei nos seus olhos. Senti você tremer.
— Eu não tremo. — afirmei. Fria. Como sempre.
Ela sorriu. Mas não com deboche. Era um sorriso pequeno, quase triste.
— E mesmo agora… com essa sua frieza toda… eu ainda estou aqui.
Silêncio.
Por que ela não desistia?
Por que continuava batendo em uma porta que eu nunca deixei aberta?
— Você devia parar. — disse. — Eu não sou o tipo de pessoa que alguém como você quer por perto.
— Como você sabe?
— Porque eu sei o que tem aqui dentro. — toquei o próprio peito. — E não é bonito.
Celeste deu mais um passo. Estava agora bem perto. Perto demais.
— Eu também tenho bagunça dentro de mim, Alina. Só escolho sorrir pra não sufocar.
— Mas eu… não sorrio.
— Ainda. — ela disse. — Mas vai. Eu sei que vai.
Ela estendeu a mão. Não para tocar. Só... ofereceu.
Uma conexão.
Um gesto simples, delicado.
Eu podia recusar.
Podia virar as costas, como fiz tantas vezes antes.
Mas, por algum motivo que nem eu soube explicar...
Eu segurei.
A mão dela era quente.
Viva.
Real.
E mesmo que tenha durado só cinco segundos… aquele toque me desmontou mais do que qualquer fala.
Celeste sorriu, apertando levemente minha mão antes de soltar.
— Boa noite, Alina.
— Boa noite, Celeste. — murmurei, quase num sussurro.
Ela se virou e voltou andando devagar.
Fiquei ali parada. Sentindo a mão ainda quente.
Sentindo algo que… não doía.
Talvez, pela primeira vez em muito tempo.
---
O sol atravessava as enormes janelas da minha mansão.
Estava tudo em silêncio. Do jeito que eu sempre gostei.
Mas, naquele dia, a calma me incomodava.
Segurava o roteiro na mão.
Relia a mesma página pela terceira vez.
> Cena 08 – Primeiro Beijo
Local: Quarto do dormitório
Personagens: Élise e Camille
Descrição:
Após confessarem o que sentem, Camille toma coragem e beija Élise.
É um beijo doce, hesitante, de descoberta.
Confessar. Coragem. Descoberta.
Tive vontade de rir.
Quem escreveu isso nunca me conheceu.
A campainha do celular vibrou com a notificação:
> Carro de produção a caminho. Saída em 15 minutos.
Fechei o roteiro e fui até o espelho.
O cabelo branco escorria pelos ombros, perfeitamente alinhado. A maquiagem estava sutil, mas afiada.
Meu rosto era o mesmo de sempre: impassível. Intimidador. Intocável.
Mas, por dentro?
Havia uma bagunça que nem eu conseguia nomear.
---
No set, tudo parecia igual.
Luzes. Cabos. Vozes. Cheiros de maquiagem e café requentado.
Até ela entrar.
Celeste.
Cabelos rosa claro soltos, olhos azuis brilhando mesmo às sete da manhã.
Ela usava o figurino da personagem: moletom largo, calça jeans clara e o mesmo sorriso gentil de sempre.
— Bom dia, Alina. — disse ela, sorrindo como se a noite passada não tivesse bagunçado meu mundo inteiro.
Assenti, seca.
— Dormiu bem?
— Dormi. — menti.
Ela riu. Não respondeu. Mas seu olhar ficou em mim por tempo demais. Como se ela soubesse.
O diretor chamou:
— Vamos, senhoritas. Câmera posicionada. Luz ajustada. Essa é grande.
Celeste se aproximou antes de entrarmos no quarto de gravação.
— Nervosa? — ela sussurrou.
— Eu nunca fico nervosa. — respondi.
— Então é só comigo que sua mão treme? — ela provocou, com um sorrisinho atrevido.
Antes que eu pudesse responder, a câmera girou e a claquete bateu.
> “Cena 08, take 1… AÇÃO!”
A personagem dela se sentava na cama. A minha, ficava parada à porta.
O texto dizia:
> — “Por que você tá fugindo de mim?”
— “Porque você faz meu mundo girar e eu odeio perder o controle.”
— “Então deixa eu girar com você.”
Ela se levantou. Deu três passos até mim. Parou tão perto que eu podia sentir a respiração dela.
Minhas falas saíram baixas. Mais sinceras do que deviam.
E então… ela tocou meu rosto.
Com uma leveza que não estava no roteiro.
Com um cuidado que não cabia em palavras.
E me beijou.
Foi um beijo real.
Não de cinema.
Um beijo suave, quase tímido, mas cheio de intenção.
Ela não estava interpretando.
E eu também não.
Quando o diretor gritou “Corta!”, o mundo voltou.
Mas nós ainda estávamos ali, tão perto que dava pra ouvir nossos corações.
Ela sorriu.
Eu desviei o olhar.
Mas algo estava claro naquele set inteiro:
Aquela cena… não era só uma cena.
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