Paris nunca dormia. Nem mesmo quando a neblina espessa descia das margens do Sena, envolvendo as vielas estreitas do Marais numa cortina fria e silenciosa. A cidade, que brilhava com suas luzes amareladas, parecia esconder mais do que revelava. Nas sombras, os segredos se moviam com passos lentos, quase imperceptíveis. E era neste palco nebuloso que Dezirê fazia sua entrada, deslizando como uma sombra viva entre os transeuntes. Seu cabelo negro, contrastando com a pele pálida, refletia o brilho das lâmpadas antigas; seus olhos escuros tinham um mistério capaz de prender quem ousasse encará-la de frente.
Dezirê não era quem parecia ser. Por trás daquele disfarce cuidadosamente elaborado, estava Nathalie de Bon juor, uma jovem de 25 anos, herdeira de uma das famílias mais influentes da França, com sangue de realeza correndo nas veias. A cor ruiva de seu cabelo natural e as sardas delicadas em seu rosto suave eram uma assinatura esquecida, uma verdade que ela escondia a sete chaves. A vida para Nathalie nunca fora simples — marcada por expectativas, segredos e uma necessidade quase visceral de controlar sua própria existência.
A noite avançava e as ruas estreitas de Paris pareciam sussurrar histórias antigas, mas era um novo mistério que prendia a atenção da cidade: uma série de assassinatos recentes que deixavam a elite em alerta. O nome de Dezirê circulava silenciosamente nos becos e cafés da capital, associada a segredos obscuros e perigosos. Ninguém sabia exatamente quem ela era, mas sua presença, sempre envolta em elegância e mistério, era impossível de ignorar.
Enquanto caminhava com passos firmes, sentia o olhar atento de quem a observava, mesmo que ninguém ousasse se aproximar. A confiança que emanava vinha de anos treinando a arte da manipulação verbal e do disfarce — habilidades que a jovem usava como armas, protegendo sua verdadeira identidade. Nathalie não tinha intenção de se prender a ninguém, nem de deixar que alguém descobrisse suas vulnerabilidades. Para ela, o perigo era um jogo que valia a pena ser jogado.
Do outro lado da cidade, em um escritório modesto, Charlie revisava os relatórios das últimas investigações. Aos 33 anos, sua reputação era impecável — nunca havia falhado. Seus olhos azuis, tão frios quanto o aço, examinavam cada detalhe com uma precisão quase obsessiva. Mas havia algo mais que movia Charlie naquela noite além do dever: a memória difusa de uma garota de infância, um rosto que ele guardava entre as lembranças mais preciosas. Nathalie. A verdadeira Nathalie, não a misteriosa Dezirê.
Charlie sabia que aquela série de assassinatos não era apenas mais um caso — era o começo de algo maior. E, sem saber, estava prestes a se envolver no jogo complexo que unia Dezirê, o assassino e as sombras da alta sociedade parisiense. Em sua mente, uma promessa silenciosa: proteger aquela mulher que, talvez, nunca pudesse realmente alcançar.
Na escuridão da noite parisiense, Dezirê sentia o peso dos olhares invisíveis, a tensão crescente no ar. Seus passos a levaram até um café discreto, onde as conversas baixas misturavam-se ao aroma intenso do café e do tabaco. Ali, entre fumaça e sombras, ela esperava encontrar pistas, aliados ou talvez perigos escondidos sob a máscara da normalidade.
A presença dela era um enigma que atraía e repelía, uma força que mexia com o equilíbrio frágil daquela cidade. Enquanto seus pensamentos navegavam entre passado e presente, uma lembrança perdida começou a emergir — um momento esquecido da infância, um rosto que surgia entre névoas de tempo, despertando dúvidas e sentimentos guardados. O jogo estava apenas começando, e cada movimento podia ser fatal.
Do outro lado da rua, na penumbra que a luz dos postes não alcançava, um homem observava atentamente. O assassino — invisível para muitos, mas mortal e calculista. Seu olhar, frio e implacável, seguia cada gesto de Dezirê, pois sabia que ela era a chave para seus planos. E, ao mesmo tempo, algo inesperado começou a nascer ali, uma tensão quase palpável entre caça e presa, entre o perigo e uma estranha atração.
Paris vivia sua noite mais inquieta, onde cada sombra escondia segredos e cada passo poderia ser o último. Para Dezirê, Nathalie, Charlie e o misterioso assassino, o destino começava a se entrelaçar numa dança perigosa, sob as luzes trêmulas da cidade-luz.
🔸 Continua no próximo capítulo...
🔸 Siga @apóliya para não perder os próximos capítulos de A VIDA SECRETA DE DEZIRÊ.
— NATHALIE —
O rádio chiava perto da janela, tentando sobreviver à estática da manhã. Piaf cantava algo sobre corações partidos, e o cheiro de café fresco misturava-se com o perfume antigo das cortinas, lavadas com lavanda na primavera passada.
Nathalie sentou-se à penteadeira, os dedos longos deslizando sobre a escova de prata. Os cabelos castanho-escuros estavam soltos, ondulados como as ruas molhadas de Montmartre. A bruma deixava Paris em tom de despedida constante — uma cidade que nunca dizia “adeus”, só “até logo”.
Vestia um robe azul-claro com bordados manuais nas mangas. “Bon matin, ma demoiselle,” sussurrou a criada ao trazer o chá. Nathalie assentiu com um gesto leve. Palavras eram poucas nas manhãs. Ela preferia os silêncios. Desde que a mãe morreu — há tantos anos que já parecia um sonho torto — o mundo inteiro se tornara mais quieto.
Na sala de estar, o relógio de parede marcava 07:46. O pai, sempre pontual, já havia saído para o Palais du Sénat, onde cumpria obrigações cerimoniais. Ainda usava bengala, apesar de não precisar mais. Gostava da postura. Era arquiduque, afinal.
Nathalie não sabia muito sobre a mãe. Uma princesa do sul, daquelas que encantavam salões mas morriam cedo demais. Ficaram alguns retratos, alguns vestidos guardados em caixas com cheiro de mofo e rosas secas. E uma pulseira de ouro, agora em seu pulso fino.
Abriu a varanda. A cidade pulsava. O vendedor de croissants discutia com uma senhora sobre o troco; crianças riam, correndo entre pombos; um soldado passava com pressa, olhando o relógio. Paris real, viva, sem máscaras.
— Votre jupe... está torta, mademoiselle. — avisou Rosélie, tímida, ajeitando o tecido plissado da saia.
— Merci, Rosélie. — disse Nathalie, sorrindo de leve. — Hoje o vento decidiu brincar.
Prendeu o cabelo num coque frouxo. Blusa de gola alta, casaco de lã, sapatos engraxados. Elegância natural, herdada. Princesa por sangue. Sozinha por destino.
Desceu os degraus do casarão com passos leves. O guarda-chuva preto balançava em sua mão esquerda. Na outra, um pequeno caderno. Observava tudo: o mendigo dormindo num banco, a mulher limpando a vitrine, os olhos desconfiados de um policial parado na esquina.
No Marché aux Fleurs, o cheiro de terra molhada e flores invadia o ar. Nathalie amava aquele lugar. Gente simples, vozes reais. Um músico tocava acordeão, desafinado mas feliz. Um jornaleiro gritava manchetes: "Corpo de socialite é encontrado no Sena — polícia investiga desaparecimento anterior."
— Sua rosa branca, mademoiselle? — perguntou o florista, como fazia sempre.
Ela hesitou. Os olhos bateram na manchete. Algo latejou por dentro.
— Hoje... vermelha.
O homem a entregou com delicadeza. A flor parecia mais viva do que o próprio dia.
No caminho de volta, o céu escureceu de leve. Uma mulher, parada na calçada, a encarou. Um olhar estranho. Familiar, talvez. Nathalie desviou os olhos. Sentiu o peito apertar. Aquilo era só Paris… ou era algo mais?
Entrou em casa sem dizer palavra. Subiu direto para o quarto. Sentou-se à escrivaninha, abriu o caderno, e escreveu:
"Às vezes, o mundo inteiro cabe num silêncio que ninguém ouve."
Lá fora, o rádio chia. Piaf se calou. E Paris… continuava fingindo não ver nada.
— NATHALIE / DEZIRÊ —
A noite caiu sobre Paris como um véu pesado. Lá fora, o som das rodas das carruagens e carros misturava-se aos passos apressados de quem fugia do frio. Nathalie observava a rua pela janela, a rosa vermelha já murchando no vaso. Era curioso… algumas coisas pareciam vivas por fora, mas já estavam mortas por dentro.
Sentou-se à penteadeira com gestos calculados. A luz amarelada da luminária projetava sombras em seu rosto. Pegou o batom escuro, encostou nos lábios e hesitou. Aquela não era uma maquiagem qualquer — era um ritual. Um corte entre o que se vê e o que se esconde.
Do guarda-roupa, tirou o vestido preto com decote discreto. O tecido era antigo, da mãe. Ajustado por Rosélie, ainda tinha cheiro de lavanda envelhecida. Calçou sapatos de salto baixo, prendeu o cabelo num coque firme e colocou o colar de pérolas com as mãos pálidas devido ao frio.
No espelho, Nathalie desaparecia aos poucos. Restava outra.
— Dezirê. — murmurou, como se estivesse apresentando uma estranha a si mesma.
Desceu as escadas em silêncio. O pai ainda não havia voltado. Como sempre, Paris o engolia até tarde. No hall, Rosélie apareceu com os olhos arregalados.
— Vous partez, mademoiselle?
— Ce soir… je suis autre chose. — respondeu, já saindo pela porta.
As ruas estavam úmidas, as vitrines ainda acesas. Ela seguia em passos firmes, mas com o coração descompassado. Sabia o que fazia, mas não com quem se tornava. O barulho dos saltos ecoava entre os prédios como um anúncio silencioso: algo mudou.
Chegou ao café da Rue Blanche. Um lugar pequeno, discreto, frequentado por artistas, escritores e figuras da noite. Todos ali pareciam guardar segredos — era o tipo de lugar onde ninguém pergunta o nome. Perfeito.
Entrou como se já fosse parte do cenário. Tirou as luvas devagar, pediu vinho tinto e se sentou perto do piano. O garçom não questionou. Apenas serviu.
— Vous êtes nouvelle ici? — perguntou uma voz grave, sentando-se à mesa ao lado.
Ela ergueu os olhos. Um homem de meia-idade, sobretudo escuro, olhar afiado.
— Talvez. — respondeu. — Ou talvez eu só tenha mudado de pele.
— Et votre nom?
Ela sorriu. Um sorriso que não era de Nathalie. Era cortante.
— Dezirê.
A palavra pairou no ar como fumaça de cigarro. O homem ergueu o copo, curioso. Ela desviou o olhar. O piano começou a tocar algo suave. No canto do salão, um jovem a observava. Tinha olhos atentos demais para alguém desinteressado. Ela percebeu. Gostou da tensão.
Ali, no meio dos desconhecidos, era mais fácil existir.
Mais tarde, ao sair, o vento cortava como navalha. Dezirê passou por uma banca de jornal fechada. Uma manchete rasgada tremulava ao vento: "Assassinato ou suicídio? Polícia silencia caso de herdeira desaparecida."
Ela sorriu. O mundo gritava mistérios, e ela estava pronta pra respondê-los — à sua maneira.
Caminhou devagar, como se marcasse território.
Nathalie já não voltava pra casa naquela noite.
Quando chegou no beco que dava acesso à ruela dos fundos, ouviu passos. Discretos. Rígidos. Parou por instinto. Não era mais Nathalie. Dezirê prestava atenção.
— Vous êtes perdue, madame? — perguntou um homem de sobretudo claro, saindo da sombra.
Ela não respondeu. Apenas ergueu o queixo e encarou. Um segundo. Dois.
— A senhora está longe do Palais-Royal... — ele disse, com um sorriso torto.
— E você está longe demais da verdade. — ela rebateu, e continuou andando.
Atrás de si, o som dos passos cessou. Mas ela sabia: Paris era cheia de olhos. E agora, ela começava a ser como uma gatuna.
Já em casa, tarde da noite, trancou a porta do quarto com firmeza. Retirou os brincos, os sapatos, o colar. Mas o olhar… esse não saiu mais.
Abriu a gaveta do criado-mudo. Um caderno de capa vermelha, antigo, surrado. Nele, escreveu:
"Dezirê nasceu esta noite. Ela não chora. Ela observa."
Debruçou-se sobre o papel, sentindo a vibração da cidade sob seus pés. Ainda podia ouvir a música do piano, como se um pedaço dela tivesse ficado lá, naquele café empoeirado.
Amanhã, Nathalie voltaria. Fingiria ser apenas a filha do arquiduque. Frequência das boas maneiras, sorrisos medidos e jantares longos.
Mas hoje?
Hoje ela era livre.
Horas depois, já deitada, escutou um som vindo do corredor. Um envelope deslizou sob a porta. Papel bege, sem remetente.
Ela sentou-se devagar, o coração voltando a bater como Nathalie — vulnerável, jovem, sem escudo.
Abriu.
Lá dentro, apenas uma foto: o rosto de uma mulher, machucado, olhos abertos.
E uma frase escrita à mão:
“Você não é a única que usa máscaras.”
Dezirê encarou a imagem por longos minutos.
— Então o jogo começou...
Para mais, baixe o APP de MangaToon!