O avião pousou com um leve solavanco, e eu senti o coração apertar. Paris. Cidade dos sonhos, da luz, do amor. Para mim, no entanto, era apenas um esconderijo. Um lugar onde eu precisava desaparecer. Deixar para trás o Brasil, a violência, o medo. Fugir dele. Fugir do passado que insistia em me assombrar.
Com a mala leve e o coração pesado, saí do aeroporto direto para o pequeno apartamento que dividia com Lupita. A amiga que me acolhera quando cheguei, que me emprestara um sorriso e um quarto apertado para eu chamar de lar. O espaço era minúsculo, as paredes finas, o piso rangendo sob nossos pés cansados, mas era o meu porto seguro por enquanto.
Lupita me recebeu com um abraço apertado e aquele jeito espontâneo que parecia dizer: “Vai dar certo.” Seu rosto iluminado me deu um pouco de esperança, mas não apagou o medo que ainda morava em mim.
— Você é mais forte do que imagina, Elisa. Paris é grande demais para ele te encontrar — ela falou, segurando minhas mãos entre as suas.
O medo era um visitante constante. Invisível, mas presente em cada sombra, em cada passo apressado que eu dava pela rua. A qualquer momento, podia sentir o olhar dele — o ex que me fez fugir do Brasil. As marcas que ele deixou em mim eram mais que físicas; eram medos, noites mal dormidas, suspiros presos.
Para sustentar minha nova vida, consegui um emprego num bar modesto perto do bairro onde morávamos. O trabalho era duro, a rotina exaustiva. Entre copos, risadas e olhares curiosos, eu tentava me esconder, manter a cabeça baixa. O cheiro forte de bebida, o barulho da música alta, o movimento incessante — tudo isso parecia um redemoinho que tentava me engolir, mas também uma distração necessária para não pensar demais.
Cada vez que alguém olhava demais para mim, sentia o pânico subir como um fogo que queimava por dentro. E eu sabia que não podia vacilar. Não podia deixar que ele me encontrasse.
À noite, quando a cidade finalmente se aquietava, eu ligava para o Brasil. A voz dos meus pais — Maria e Carlos — me trazia uma mistura de conforto e culpa. Eles não sabiam da minha fuga, do motivo real de eu estar tão longe. Eu escondia o verdadeiro horror, tentando manter a ilusão de uma vida tranquila e segura.
— Está tudo bem aqui, mãe — eu dizia, forçando a calma na voz — O curso é ótimo estou aprendendo muito.
Eles não precisavam saber da verdade, do medo que eu carregava no peito, da insegurança constante. Tinha medo de que, se soubessem, tentassem me encontrar, ou pior, que ele soubesse onde eu estava.
Foi numa tarde chuvosa, enquanto tomava um café numa cafeteria para fugir do frio e pensar no futuro, que encontrei um jornal esquecido numa mesa ao lado. As páginas amareladas tinham anúncios de todo tipo, mas um chamou minha atenção: uma vaga para babá, com um salário muito acima do que eu ganhava no bar. Cuidar de uma criança — algo que eu nunca tinha imaginado fazer, mas que podia ser a minha salvação.
Aquela possibilidade acendeu uma chama dentro de mim. Talvez, finalmente, eu pudesse mudar minha história. Dar um passo real para longe do passado, da dor, do medo.
Liguei para o número no anúncio com as mãos trêmulas, coração acelerado. Era uma chance que eu não podia deixar passar.
Quando desliguei, senti um misto de ansiedade e esperança, uma promessa silenciosa de que minha vida, enfim, poderia ter um novo começo.
ELISA SILVA
O despertador soou às cinco da manhã, como um ritual implacável que eu nunca conseguia ignorar. Paris ainda dormia sob um céu escuro, e as ruas vazias pareciam respirar silêncio, como se o mundo estivesse esperando para despertar. Eu, no entanto, não podia me dar ao luxo de descansar. Havia muito a fazer.
Levantei-me devagar, caminhando até a cozinha moderna do meu apartamento, onde o aroma do café recém-passado começava a preencher o ar. O silêncio da manhã era interrompido apenas pelo som do meu coração acelerado, pulsando com a responsabilidade que eu carregava.
Minha vida era dividida entre os corredores do império empresarial da minha família e o quarto silencioso onde minha filha ainda dormia. Desde que minha esposa se foi, tudo mudou. A dor, a solidão, a necessidade de ser forte, para ela, para mim mesmo.
Enquanto revisava os relatórios financeiros no tablet, o telefone tocou, cortando meu foco. A voz da minha secretária, sempre profissional, me trouxe uma notícia que eu já esperava:
— Senhor Sébastien, só para lembrar que amanhã está marcada a entrevista com a candidata a babá para a senhorita Malia.
Fechei os olhos por um instante e soltei um suspiro pesado.
— Outra babá? — perguntei, a voz carregada de cansaço. — Sinceramente, não aguento mais essas entrevistas. Parece que toda babá que aparece está mais interessada em mim do que no emprego. Talvez seja porque sou um solteiro cobiçado. O mundo inteiro quer um pedaço disso — disse, meio brincando, meio sério.
Ela riu, um som leve que contrastava com o peso da minha rotina.
—Só mais essa senhor .
Coloquei o telefone de lado e olhei pela janela. A cidade começava a ganhar vida, as luzes dos postes dando lugar ao brilho natural do amanhecer. Paris era linda, cheia de promessas e sombras. E eu vivia entre essas sombras, tentando proteger o que me restava.
Cuidar da Malia era minha prioridade absoluta. A perda da minha esposa me deixou com um vazio que eu tentava preencher com disciplina e amor rigoroso. Minha filha era meu mundo, minha razão de viver. Eu queria o melhor para ela, e isso significava encontrar alguém que pudesse ajudá-la enquanto eu enfrentava o peso dos negócios e da solidão.
Mas confiar não era fácil. Minha família era tradicional, exigente e esperava que eu mantivesse tudo sob controle. Eu não podia permitir deslizes. Cada decisão era medida, cada gesto calculado.
Enquanto preparava o café da manhã para mim e minha filha, os pensamentos se amontoavam. Lembrei das reuniões, dos contratos, das negociações que me aguardavam. Mas o pensamento que mais me ocupava era a chegada dessa babá. Quem seria essa mulher? Conseguiria ela entender o que minha filha precisava? Ou seria mais uma distração, mais um problema?
Paris guardava segredos, como eu guardava os meus. E, pela primeira vez em muito tempo, havia uma esperança tímida de que algo inesperado pudesse acontecer.
Ainda assim, mantinha os olhos bem abertos. No meu mundo, confiança era uma moeda rara. E eu não estava disposto a perder nada do que tinha, especialmente não minha filha.
O relógio marcou sete e meia quando ouvi os passos leves de Malia no corredor. Ela apareceu com aqueles olhos grandes e azuis, ainda sonolenta, mas iluminando o meu dia com sua presença.
— Bom dia, papai — disse ela, com a voz ainda rouca de sono.
Sorri, sentindo o calor que só ela sabia trazer.
— Bom dia, meu amor. Preparada para mais um dia?
Ela assentiu, abrindo um sorriso tímido. Para ela, eu era um gigante protetor, o homem que enfrentava o mundo para mantê-la segura.
E eu faria isso, custasse o que custasse.
Sébastien Lacroix
Acordei antes mesmo do sol nascer. Ainda havia um resquício de escuridão pelas frestas da janela, mas meu coração já estava acelerado, como se soubesse que o dia seria longo. O colchão fino no chão não ajudava no descanso, e o frio que invadia o quartinho fazia meu corpo estremecer. Mas não era só o clima de Paris. Era o medo.
Rolei para o lado devagar, tentando não acordar Lupita, que dormia profundamente com uma das pernas pra fora da coberta. O cabelo castanho bagunçado espalhado no travesseiro, a respiração tranquila. Quis por um instante trocar de lugar com ela, nem que fosse só por uma manhã.
Fui até o banheiro compartilhado no fim do corredor e me olhei no espelho. Meus olhos azuis pareciam mais claros com o rosto pálido. As olheiras denunciavam as noites mal dormidas, e o cansaço era um lembrete constante do que deixei para trás. Mas amanhã... amanhã poderia ser o começo de algo novo.
Voltei pro quarto com passos leves. Sentei na beirada do colchão e fiquei olhando pro celular, como se ele fosse me trazer uma resposta. Uma garantia. A única coisa que eu tinha era a confirmação da entrevista para amanhã, às dez da manhã.
Lupita se mexeu e resmungou baixinho:
— Tá acordada desde cedo de novo, né?
— Não consegui dormir direito — respondi.
Ela se sentou, coçando os olhos. — Por causa da entrevista?
Assenti. — É um bom salário, Lu. Muito bom. Daria pra gente sair desse quartinho e até mandar alguma coisa pra minha mãe no Brasil.
— Mas é na casa de um cara, né? E você nem sabe direito quem é...
Suspirei. — Liguei. Falei com a secretária dele. Parece tudo muito profissional.
Lupita me lançou um olhar cético. — Elisa, você ainda tá fugindo. E esse povo rico... sei lá. Pode ser armadilha, pode ser perigoso.
— E se for a chance da minha vida? Eu não aguento mais viver com medo, sem saber se ele vai aparecer aqui. Eu fico olhando pros cantos da rua toda vez que volto do bar.
Ela se calou por um segundo, como se sentisse o peso das minhas palavras. Então levantou, pegou a chaleira e começou a preparar um café.
— Vai dar certo, sim. Só... se cuida, tá? Promete?
— Prometo — sussurrei.
Enquanto ela mexia nas xícaras, meus pensamentos voltaram ao Brasil. Aos meus pais que ainda não sabiam que eu tinha fugido. Eu dizia que estava estudando fora, que precisava de um tempo. Mas a verdade era muito mais amarga. Eu precisava era sobreviver. E aqui, mesmo nesse lugar apertado, eu sentia um pouco de liberdade. Sentia que podia respirar.
Lupita sentou ao meu lado com duas canecas de café fumegante.
— Você vai escolher uma roupa bonita, mas discreta. Vai chegar lá e mostrar que é profissional. Vai conseguir esse emprego, ouvir minha voz?
Sorri, mais aliviada. — Ouço você como se fosse minha mãe.
Ela riu. — Então me obedece e não faz besteira.
Tomamos o café em silêncio por alguns minutos. Depois ela saiu para o trabalho e eu fiquei sozinha. Lavei a caneca, arrumei a cama e separei a roupa para o dia seguinte: uma calça preta sem muito destaque, blusa de manga comprida azul clara e o único par de botas decente que eu tinha. Prendi o cabelo em um coque frouxo e me olhei no espelho. "Você vai conseguir", murmurei. "Você precisa conseguir."
Passei o dia quase inteiro tentando me distrair, mas tudo me levava de volta à entrevista. O nome dele era Sébastien. A secretária disse que ele era discreto, empresário, pai solteiro, com uma filha pequena. Não dei muita atenção aos detalhes, só fingi ser segura no telefone e anotei o endereço. No fundo, eu sabia: era a chance de mudar de vida.
À noite, quando Lupita voltou, jantamos pão com sopa instantânea. Ela me perguntou de novo se eu queria que ela fosse comigo, mas eu neguei.
— Se eu não encarar isso sozinha, nunca vou sair do lugar.
Ela assentiu com um sorriso carinhoso. — Você é forte, Elisa. Mesmo que não veja isso.
Depois que ela dormiu, fiquei olhando para o teto. O medo ainda morava em mim. O medo de ser encontrada. De tudo desmoronar. Mas também... ali, no fundo, uma faísca de esperança crescia.
E por menor que fosse, era isso que me mantinha de pé.
LUPITA SANT
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