NovelToon NovelToon

Ecos do Silêncio: A Jornada de Fátima

O Primeiro Sussurro

Capítulo 1

O Primeiro Sussurro

O relógio marcava pouco depois das seis da manhã quando Fátima desceu do ônibus, sentindo o frio úmido do interior penetrar o tecido de sua blusa leve. A rodoviária era pequena, quase silenciosa, com apenas o murmúrio de uma senhora varrendo a entrada e o cheiro de café recém-passado escapando de um balcão de fórmica. Na bagagem, poucas roupas, um caderno de anotações já gasto e um diploma ainda por emoldurar. No peito, um misto de ansiedade e esperança.

A cidade que a recebia era uma daquelas onde as pessoas ainda se cumprimentavam nas ruas, onde as fachadas antigas pareciam guardar segredos, e o tempo, por vezes, parecia correr mais devagar. Fátima não conhecia ninguém ali. Tinha aceitado o convite para assumir o cargo de psicóloga da rede pública, sem saber ao certo o que a esperava. O salário era modesto, mas a promessa de autonomia e o desejo de fazer a diferença pesaram mais do que qualquer cálculo financeiro.

Ela caminhou pelas ruas ainda vazias, buscando o endereço do pequeno apartamento que alugara às pressas. O sol começava a se insinuar entre as nuvens baixas, dourando as telhas e as árvores retorcidas das calçadas. Respirou fundo, sentindo o cheiro de terra molhada e pão saindo do forno de uma padaria próxima. Era um novo começo — e, ainda que carregasse dúvidas, também era um recomeço para sua própria história.

A instalação no apartamento foi rápida: uma cama de solteiro, uma estante improvisada com caixas de papelão, uma chaleira elétrica, livros e o caderno de anotações, que sempre a acompanhava como um porto seguro. Fátima fez questão de sentar-se por alguns minutos diante da janela, observando o movimento lento da rua, anotando impressões, pequenas promessas e temores para si mesma. O silêncio da cidade, embora estranho, parecia convidá-la a escutar com mais atenção.

No primeiro dia de trabalho, foi recebida por dona Hilda, a diretora da Escola Carolina de Andrade, uma mulher franzina de cabelos brancos presos em um coque impecável.

— Seja bem-vinda, Fátima. A cidade precisa de gente disposta a ouvir — disse, apertando sua mão com força surpreendente para a idade.

A escola era antiga, com paredes de tijolos aparentes e corredores ecoando passos e risadas contidas. Fátima foi apresentada à equipe: professores cansados, zeladores sorridentes, uma coordenadora tímida e algumas crianças curiosas, que a encaravam com a típica desconfiança de quem já viu muitos adultos entrarem e saírem sem deixar marcas.

Sua sala era simples: uma mesa de madeira lascada, duas cadeiras, uma estante vazia e uma janela com vista para o pátio. Sobre a mesa, uma lista de nomes: alunos encaminhados para atendimento psicológico, todos por razões genéricas — “problemas de comportamento”, “queda no rendimento”, “tristeza”, “agressividade”. Fátima sabia, por experiência, que detrás dessas palavras viviam histórias muito mais complexas.

No fim da manhã, enquanto organizava papéis e tentava personalizar minimamente o ambiente, ouviu uma batida tímida na porta. Era dona Hilda outra vez, desta vez acompanhada de uma menina de aproximadamente nove anos, cabelos escuros e lisos, olhos fundos, postura rígida.

— Esta é a Lúcia — disse a diretora, com delicadeza. — Poderia conversar com ela? Parece que não quer mais brincar com as outras crianças. Não fala quase nada há semanas.

Fátima sorriu para Lúcia, convidando-a a sentar. A menina entrou silenciosamente, abraçando a si mesma, como quem tenta se proteger do mundo.

— Oi, Lúcia. Eu sou a Fátima — disse, em tom suave. — Gosto muito de desenhar. E você?

Lúcia apenas assentiu, desviando o olhar. Fátima continuou, pegando um lápis de cor e um papel.

— Se quiser, pode desenhar qualquer coisa. Ou só ficar aqui comigo. Não precisa falar se não quiser.

A menina pegou o lápis, hesitante, e começou a rabiscar linhas tímidas. Fátima esperou em silêncio, respeitando o tempo da criança. Sabia, pela própria experiência, que os primeiros sussurros às vezes eram mudos — e que o acolhimento nascia na ausência de pressa.

Os minutos passaram devagar. Lúcia desenhou uma casa pequena, duas figuras distantes e, ao lado, um animal indefinido. Depois, largou o lápis e ficou olhando para o chão.

— Gosto do seu desenho — disse Fátima, gentilmente. — Parece um lugar tranquilo.

Lúcia não respondeu, mas seus ombros relaxaram um pouco.

Quando a menina saiu, Fátima anotou em seu caderno: “Primeiro contato. Silêncio denso, mas não hostil. Desenho sugere solidão e distância. Observar e acolher. Não forçar.”

Naquele momento, entendeu que sua missão ali seria muito maior do que aplicar técnicas ou preencher relatórios. Era preciso criar um espaço onde o silêncio pudesse ser respeitado — e, aos poucos, convidado a se transformar em palavra, em gesto, em pedido de socorro.

Ao final do expediente, Fátima caminhou pelo pátio, observando as crianças que brincavam, algumas isoladas, outras em grupos barulhentos. Notou um menino sentado sozinho no balanço, olhando fixamente para o chão. Aproximou-se, sentou-se ao lado, sem dizer nada. Ficaram assim, em silêncio, por alguns minutos. Até que o menino, sem olhar para ela, murmurou:

— Meu irmão foi embora. Ninguém fala dele.

O sussurro era quase imperceptível, mas para Fátima foi como um grito.

— Você quer me contar sobre ele? — perguntou, sem pressa.

O menino balançou a cabeça negativamente, mas não se levantou. Ficaram juntos, partilhando o silêncio, até o sino anunciar o fim do recreio.

Naquela noite, em seu apartamento, Fátima revisitou as anotações do dia. Dois sussurros, dois silêncios profundos, duas histórias que pediam escuta. Sentiu o peso e a honra da tarefa que se descortinava — e, ao mesmo tempo, uma pontinha de medo.

“Talvez ninguém esteja pronto para ouvir tudo”, escreveu em seu caderno. “Mas alguém precisa começar.”

Antes de dormir, olhou pela janela para a cidade adormecida. Respirou fundo, como quem se prepara para um mergulho longo e escuro. Sabia que, dali em diante, cada sussurro ouvido seria uma semente — e que sua missão seria, acima de tudo, cuidar para que essas sementes encontrassem solo fértil para florescer.

Naquele silêncio preenchido de possibilidades, Fátima compreendeu: era ali, entre o medo e a esperança, que sua verdadeira jornada começava.

A Chegada à Cidade Nova

Capítulo 2

A Chegada à Cidade Nova

Desembarcar em uma cidade desconhecida é como acordar de um sonho e perceber que a realidade tem outros cheiros, outros sons, outros ritmos. Para Fátima, a chegada à cidade nova foi marcada por uma mistura de encantamento e estranhamento, como se cada esquina escondesse uma história esperando para ser desvendada.

Na primeira manhã, depois do breve encontro com dona Hilda e da acolhida reservada de Lúcia, Fátima decidiu caminhar sem pressa pelas ruas do centro. Seu olhar buscava, mais do que pontos turísticos, os sinais da vida cotidiana: o senhor com o chapéu de palha varrendo a calçada, o grupo de adolescentes rindo alto na praça, a senhora de avental pendurando roupas no quintal. Tudo era novo, mas carregava uma familiaridade difusa, como se a cidade respirasse memórias de outros lugares por onde ela já passara.

O apartamento simples, localizado sobre uma farmácia, logo ganhou pequenos toques de aconchego. Fátima pendurou uma cortina azul claro na janela, organizou seus livros de psicologia e literatura na estante improvisada e, com delicadeza, colocou um vaso de violetas sobre a mesa de jantar. Aqueles gestos, repetidos tantas vezes em outros recomeços, davam-lhe uma sensação de identidade em meio ao desconhecido.

Naquele início, a solidão era sua principal companhia. As noites eram silenciosas, pontuadas apenas pelo som distante de um rádio ligado em alguma casa vizinha ou pelo latido esporádico de um cachorro. Fátima aproveitava esses momentos para reler suas anotações, planejar atividades para os atendimentos na escola e, sobretudo, para se escutar. Tinha aprendido, ao longo dos anos, que só quem se permite ouvir a própria alma pode, de fato, acolher a dor alheia.

O segundo dia de trabalho trouxe novos desafios. Logo cedo, dona Hilda a recebeu com um sorriso cansado e um convite para um café na sala da direção.

— Sei que o início é difícil — confessou, mexendo o açúcar distraidamente. — As crianças daqui carregam mais do que mochilas pesadas. Muitas vêm de famílias marcadas por perdas, separações, dificuldades financeiras. Nem sempre vão confiar em você de imediato.

Fátima escutou atentamente, sentindo o peso das palavras e a responsabilidade que lhe era confiada.

— Quero ajudar, dona Hilda. Mas sei que preciso de tempo para conquistar a confiança deles.

— Tempo — repetiu a diretora, pensativa. — Às vezes, é tudo o que não temos.

Enquanto sorvia o café quente, Fátima notou as paredes da sala da diretora. Fotografias antigas de festas juninas, formaturas, professores que já se aposentaram. Havia uma sensação de continuidade, de pertencimento, que ela admirava e, ao mesmo tempo, desejava conquistar. Percebeu que cada rosto naquelas fotos era também uma história, um ciclo de dores e alegrias, e que ela estava prestes a se tornar parte desse tecido vivo da cidade.

Depois do café, Fátima foi apresentada formalmente aos professores. Entre eles, conheceu o professor Álvaro, responsável pela turma do quinto ano. Ele era um homem de meia-idade, olhar atento e fala pausada.

— Seja bem-vinda, Fátima — disse, apertando-lhe a mão com firmeza. — Vai perceber que, por aqui, cada aluno é um universo. E cada universo tem seus próprios mistérios.

A frase ficou ecoando na mente de Fátima ao longo do dia. Durante o recreio, ela observou as crianças e adolescentes reunidos em pequenos grupos, alguns brincando, outros apenas olhando de longe, como Lúcia fizera no dia anterior. Notou também um grupo de meninas sentadas no fundo do pátio, cochichando entre si e lançando olhares furtivos para um menino franzino que parecia alheio ao mundo.

Aos poucos, os professores começaram a compartilhar impressões e preocupações em conversas rápidas nos corredores.

— O Anderson, da turma da manhã, tem chegado sempre atrasado — comentou uma professora, baixando a voz. — A mãe dele está doente.

— A Mariana parece diferente desde que o pai foi embora — confidenciou outra. — Não fala mais com ninguém.

Fátima ouviu cada relato com atenção, anotando detalhes em seu caderno para investigar depois. Sabia que, muitas vezes, os sinais de sofrimento estavam nas pequenas mudanças de comportamento, nos olhares fugazes, nos silêncios prolongados.

Ao retornar à sua sala, encontrou sobre a mesa um envelope sem remetente. Dentro, um bilhete escrito com letra miúda e trêmula:

"Doutora, me disseram que a senhora escuta sem julgar. Preciso falar de um segredo, mas tenho medo. Promete que não vai contar para ninguém?"

Fátima sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Reconhecia ali o primeiro convite silencioso para adentrar o universo íntimo de alguém. Pegou seu caderno e anotou: "A escuta começa antes da palavra. Às vezes, o pedido de ajuda vem na forma de um bilhete, de um olhar, de um silêncio."

Ao sair da escola, decidiu explorar a vizinhança. Caminhou até a praça central, onde crianças jogavam bola enquanto idosos conversavam nos bancos de pedra. Parou em frente à igreja matriz, admirando a arquitetura simples e o sino que badalava a cada hora cheia. Ao lado da igreja, uma pequena livraria chamou sua atenção. Entrou, cumprimentada por um senhor de barba branca e sorriso acolhedor.

— Boa tarde, minha filha. Nova na cidade?

— Sim, acabei de chegar. Trabalho na escola como psicóloga.

— Que bom! Aqui precisamos de gente que escute. As pessoas sentem falta de escuta, sabe? — disse ele, com um brilho nos olhos.

Fátima sorriu, sentindo-se acolhida. Folheou alguns livros, comprou um caderno novo e saiu prometendo voltar. A sensação de pertencimento, mesmo que discreta, começava a germinar.

O fim da tarde trouxe uma leve garoa, e Fátima apressou o passo de volta ao apartamento. No caminho, cruzou com uma jovem mãe empurrando um carrinho de bebê e duas adolescentes discutindo sobre o dever de casa. Tudo parecia comum, mas Fátima sabia que, por trás da rotina, havia histórias esperando para serem ouvidas.

Ao chegar em casa, preparou um chá de camomila e sentou-se junto à janela, contemplando o vai e vem da rua. Pensou em sua família, distante, e no quanto sua presença ali era também uma tentativa de se encontrar. Lembrou-se de sua própria infância, das vezes em que desejou ser ouvida sem medo, sem julgamento, e percebeu o quanto aquela experiência a preparara, ainda que de forma dolorida, para o papel que agora assumia.

Naquela noite, enquanto preparava o jantar — uma sopa simples de legumes —, lembrou-se do cheiro da cozinha de sua avó, das conversas sussurradas ao redor da mesa, das pequenas confidências trocadas entre colheradas. Era ali, no cotidiano, que as dores se tornavam suportáveis, que os segredos ganhavam nome e, às vezes, encontravam cura. Fátima desejou poder recriar, para seus futuros pacientes, esse espaço de acolhimento que tanto lhe fizera falta.

Mais tarde, ao reler o bilhete anônimo, sentiu o peso da confiança depositada ali. Decidiu responder, escrevendo um pequeno recado para ser deixado em sua sala:

"Quem quiser conversar, pode procurar a doutora Fátima. Aqui, segredo é respeitado, e ninguém é obrigado a falar. Às vezes, só estar junto já ajuda."

No dia seguinte, ao chegar à escola, Fátima foi surpreendida pela visita de um menino chamado Caio, de olhos grandes e sorriso tímido. Ele não disse muito, apenas pediu para desenhar enquanto ela organizava os papéis. Fátima percebeu que, para algumas crianças, o simples gesto de estar presente já era suficiente para iniciar um processo de confiança.

— O que você gosta de fazer, Caio?

— Gosto de inventar histórias — respondeu ele, quase sussurrando.

Fátima sorriu, incentivando-o a contar uma de suas invenções. Caio falou de um super-herói invisível, que ajudava as pessoas sem que elas percebessem. Ouvindo-o, Fátima compreendeu que, muitas vezes, o sofrimento infantil se disfarça de fantasia, e que era preciso sensibilidade para ler os sinais por trás das palavras.

No intervalo, Fátima ficou observando o pátio. Viu a menina Lúcia de longe, sentada sob uma árvore, folheando um livro velho. Tentou se aproximar, mas percebeu que a criança ainda precisava de tempo. Respeitou seu espaço, decidindo que, no momento certo, Lúcia se abriria.

O professor Álvaro se aproximou, trazendo um café para ela.

— Já percebeu que aqui as crianças têm olhos de adultos? — comentou, olhando para o pátio. — Às vezes, penso que cresceram antes da hora.

Fátima assentiu, sentindo a verdade na observação do colega.

— Mas também vejo esperança — completou ela. — Crianças são resilientes. Só precisam de alguém que as ajude a lembrar disso.

Naquela semana, Fátima visitou também a unidade de saúde do bairro, onde foi apresentada à enfermeira Célia e ao médico Dr. Ricardo. Ali, ouviu relatos de casos marcantes: adolescentes engravidando cedo, crianças vítimas de violência doméstica, idosos solitários. Sentiu-se, por vezes, sobrecarregada com a quantidade de sofrimento, mas também encontrou força na parceria e na vontade coletiva de transformar a realidade.

À noite, em seu apartamento, Fátima passou a escrever pequenas crônicas sobre o cotidiano da cidade. Era seu modo de processar as emoções, de transformar o peso do dia em aprendizado. Nessas linhas, relatava tanto os desafios quanto os pequenos milagres: o abraço inesperado de uma criança, o sorriso de gratidão de uma mãe, o olhar de esperança de um colega. Percebeu que, apesar da dureza, havia ali uma beleza discreta, uma rede de afetos que tornava tudo mais leve.

O domingo chegou trazendo a primeira visita ao mercado municipal. Entre barracas de frutas, legumes e pães frescos, Fátima ouviu conversas animadas, risos e até discussões acaloradas. Comprou flores, frutas e um pedaço de queijo, sentindo-se mais integrada à vida da cidade. Ao retornar para casa, trocou algumas palavras com a vizinha do andar de baixo, dona Olga, que a convidou para um café no próximo fim de semana. Fátima aceitou, sentindo que, pouco a pouco, ganhava raízes naquele novo solo.

Em meio à rotina, o bilhete anônimo continuava a ocupar seus pensamentos. Quem seria seu autor? Qual segredo pesava tanto a ponto de impedir a fala? Decidiu intensificar sua presença nos corredores, sorrir para quem cruzava seu caminho, oferecer escuta sem pressa. Sabia que, cedo ou tarde, a confiança surgiria — e, com ela, viria também a responsabilidade de acolher e proteger.

Antes de dormir, Fátima olhou pela janela, contemplando as luzes tênues da cidade adormecida. O silêncio era, para ela, ao mesmo tempo desafio e promessa. Escreveu em seu caderno:

"Aqui, cada dia é um convite à escuta. Vou aprender a ouvir a cidade, seus sussurros, seus gritos, seus silêncios. E, assim, quem sabe, ajudar a transformar histórias de dor em histórias de esperança."

Assim, entre o desconhecido e o desejo de fazer a diferença, a chegada à cidade nova se tornava o primeiro capítulo de uma longa jornada de coragem, escuta e transformação — não só para Fátima, mas para todos os que cruzassem seu caminho.

Ecos da Infância

Capítulo 3

Ecos da Infância

O cheiro de giz misturado ao das folhas úmidas do pátio evocava memórias antigas em Fátima. Era como se, ao atravessar os corredores da Escola Carolina de Andrade, ela cruzasse um portal para o passado — não só o das crianças que ali estudavam, mas o seu próprio. O eco de vozes infantis, as conversas sussurradas nas esquinas dos corredores, os risos e choros contidos, tudo a fazia recordar de sua infância, marcada por silêncios, olhares atentos e perguntas sem resposta.

Na terceira semana na cidade, Fátima já era figura conhecida. Os professores a cumprimentavam com crescente cordialidade, as crianças passavam a observá-la com curiosidade menos contida, e até dona Olga, a vizinha do andar de baixo, já lhe oferecera um bolo de fubá, dizendo: “Aqui, todo mundo precisa de um pouco de doçura, doutora.”

Mas, para além do cotidiano, era nos atendimentos individuais que Fátima sentia a pulsação real do seu trabalho. O consultório improvisado na escola era seu porto seguro e também seu campo de batalha. Ali, cada criança trazia consigo uma pequena caixa de ecos: lembranças, traumas, medos, sonhos interrompidos.

Naquela segunda-feira, Lúcia voltou à sala da psicóloga. Sentou-se na cadeira de sempre, o olhar fixo nas mãos, que brincavam nervosamente com a barra da blusa. Fátima ofereceu-lhe lápis de cor e papel, como da primeira vez.

— Hoje, se quiser, pode me contar sobre o seu desenho — sugeriu, com voz calma.

Lúcia hesitou, mas depois de alguns minutos de silêncio, começou a falar, quase num sussurro:

— Essa casa é a da minha avó. Eu morava lá antes de vir pra cá. Eu gostava de brincar com o cachorro, o Tico.

Fátima percebeu a saudade nas palavras da menina.

— Você sente falta da sua avó?

Lúcia assentiu, os olhos marejando.

— Aqui… eu não tenho muitos amigos. E o Tico ficou com ela.

A psicóloga escutou sem interromper. Sabia que, para uma criança, mudar de ambiente pode ser uma experiência de perda tão profunda quanto um luto.

— Às vezes, quando a gente sente falta de alguém, dói, né? — comentou Fátima, validando o sentimento de Lúcia.

A menina concordou. Ficaram alguns minutos em silêncio, compartilhando o peso da saudade. Fátima lembrou-se de si mesma, menina, sentada à beira da cama, esperando o retorno do pai de uma viagem longa, sentindo aquela ausência crescer dentro do peito. Escreveu mentalmente: “A saudade é uma forma de amor que não encontra caminho.”

Depois da sessão, Fátima registrou em seu caderno: “Avó como figura de segurança, cachorro como amigo simbólico. Isolamento escolar. Observar sinais de tristeza prolongada. Possível encaminhamento para atividades integrativas.”

No dia seguinte, Fátima recebeu Anderson, o menino que frequentemente chegava atrasado. Sentado à sua frente, ele não tirava os olhos do chão.

— Como você está hoje, Anderson?

— Tô cansado — respondeu, com voz baixa.

A psicóloga percebeu as olheiras profundas, as roupas um pouco sujas, o cabelo desalinhado.

— Dormiu tarde?

— Minha mãe tava passando mal. Eu que cuidei do meu irmão.

Fátima sentiu um aperto no peito. O peso da infância roubada.

— Você gosta de cuidar do seu irmão?

— Gosto. Mas às vezes queria brincar também.

Fátima viu, na fala de Anderson, o conflito entre responsabilidade e desejo de ser criança. Anotou para si: “Infância interrompida. Buscar rede de apoio para a família. Conversar com equipe da escola sobre flexibilização de tarefas.”

Naqueles primeiros meses, Fátima percebeu que, para muitas crianças, a infância era uma travessia cheia de obstáculos. O brincar, o sonhar, o imaginar — elementos essenciais do desenvolvimento infantil — eram frequentemente substituídos por preocupações adultas: cuidar de irmãos menores, ajudar nas tarefas de casa, lidar com separações, doenças, ausências. Em cada relato, Fátima reconhecia ecos da própria infância, marcada por mães exaustas, pais distantes e o esforço silencioso de ser forte.

Para lidar com tantos pedidos de ajuda, Fátima criou pequenos grupos de acolhimento. Uma vez por semana, reunia crianças que pareciam mais fechadas para jogos cooperativos, rodas de conversa e atividades lúdicas. Descobriu, com o tempo, que o simples fato de brincar junto criava laços, abrindo espaço para que sentimentos emergissem de forma espontânea.

Em um desses grupos, Mariana, uma menina de oito anos, surpreendeu Fátima ao dizer:

— Quando eu era pequena, queria ser passarinho. Agora acho que sou pedra.

A frase ecoou na mente da psicóloga.

— Por que pedra, Mariana?

— Porque pedra não sente. Não chora. Não quebra.

A resposta da menina revelou a dureza de sua experiência. Fátima sentiu vontade de abraçá-la, mas respeitou o espaço.

— Às vezes, a gente vira pedra pra não sofrer. Mas até as pedras sentem, sabia?

Mariana olhou para ela, pensativa.

— Eu queria sentir menos.

Naquele dia, Fátima escreveu em seu diário: “A infância é feita de sonhos, mas também de defesas. Muitas crianças aprendem cedo a se proteger do mundo. Meu papel é ajudá-las a lembrar que sentir não é fraqueza. É o que nos faz humanos.”

No fim do mês, Fátima organizou uma oficina de contação de histórias, convidando os alunos a inventarem finais felizes para os contos tradicionais. Algumas crianças riram, outras choraram, e muitas pediram para participar de novo. Ao ver o brilho nos olhos dos pequenos, Fátima sentiu que, apesar das dores, havia esperança.

A cada atendimento, a psicóloga se via atravessada por suas próprias lembranças. Era impossível não se enxergar nas dores e nas alegrias das crianças. Por vezes, sentia-se exausta, como se carregasse o peso de muitas infâncias interrompidas. Em outras, sentia-se fortalecida, inspirada pelo poder da resiliência.

Ao final de uma tarde intensa, Fátima caminhou até o parque da cidade, sentou-se sob uma árvore e fechou os olhos. Deixou-se embalar pelos sons ao redor: o vento nas folhas, o canto distante de um sabiá, as risadas soltas de crianças que brincavam no balanço. Lembrou-se de sua avó, de mãos quentes e histórias sussurradas antes de dormir. Sorriu, permitindo-se um instante de ternura.

Ali, entre as raízes da árvore e o céu tingido de laranja, Fátima compreendeu que sua missão não era apagar as dores das infâncias que cruzavam seu caminho, mas ajudar a transformá-las em aprendizado, em força, em semente de futuro. E que, ao escutar cada eco, também resgatava pedaços de si mesma — e, assim, caminhava para se tornar uma adulta mais inteira, mais humana.

Na volta para casa, sentiu-se leve, como se carregasse consigo não só as dores, mas também as esperanças de todas as crianças que aprendera a escutar. E, ao escrever em seu caderno antes de dormir, registrou:

“Escutar uma criança é escutar o futuro. E, quem sabe, curar também um pouco do passado.”

Para mais, baixe o APP de MangaToon!

novel PDF download
NovelToon
Um passo para um novo mundo!
Para mais, baixe o APP de MangaToon!