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Além do Ouro

O começo

Em uma vila esquecida pelo tempo, vivia Ícaro, um menino órfão de 10 anos, magro, esperto e com olhos que guardavam sonhos grandes demais para seu mundo pequeno. Ele cresceu num orfanato velho e cinzento, onde cada dia era igual ao outro: escasso e sem promessas.

A construção do orfanato lembrava uma prisão escolar: paredes rachadas, tinta descascando, camas de ferro enferrujadas e lençóis que já tinham perdido a cor e o cheiro de qualquer infância. O diretor, Sr. Gael, era um homem seco, de voz rouca e passos pesados. Pouco falava, e quando o fazia, era para mandar calar, limpar ou correr. As cuidadoras, apesar de tentarem ser gentis, estavam sempre sobrecarregadas e cansadas demais para dar atenção de verdade.

Ícaro aprendeu cedo que chorar não mudava nada. A comida era pouca, o carinho era raro, e os brinquedos eram pedaços de madeira ou bolas furadas que as crianças compartilhavam em turnos. Mas ele tinha algo que poucos tinham ali: imaginação. Quando todos dormiam, Ícaro se escondia embaixo do cobertor com uma lanterna quebrada e rabiscava sonhos num caderno rasgado. Ele desenhava castelos, aviões, carros de luxo, roupas de gala, casas com piscina e lareiras. Sonhava com um mundo onde ele não fosse apenas mais um número entre tantos órfãos.

Não sabia quem eram seus pais. Cresceu ouvindo boatos de que foi deixado na porta do orfanato enrolado num cobertor azul com um broche em forma de asa. Nunca acreditou que seus pais fossem pobres. Em sua mente, foram forçados a deixá-lo. Talvez fossem príncipes. Talvez estivessem mortos. A única certeza que Ícaro tinha era que ele não queria viver ali pra sempre.

Apesar da vida dura, ele era muito inteligente. Aprendeu a ler observando as cuidadoras contarem histórias pros menores. Decorava cada palavra. Lia jornais velhos que encontrava na rua ou que usavam como papel de embrulho. Aprendeu a contar vendo os adultos mexerem nos registros e fingia ajudar só pra entender mais do mundo real. Os outros meninos gostavam dele. Não por ser bonzinho, mas por ser esperto. Sabia consertar brinquedos quebrados, roubar comida da cozinha sem ser pego e inventar jogos com as coisas mais simples.

Mas mesmo sendo querido, havia algo solitário em Ícaro. Ele observava demais. Falava pouco sobre si. Tinha uma inquietação no olhar, como se estivesse sempre pensando em escapar. As cuidadoras diziam que ele tinha uma mente de velho num corpo de criança. E talvez fosse verdade. Ícaro já era alguém que carregava o peso do mundo nas costas, mesmo sem nunca ter saído daquele lugar.

Certa noite, enquanto todos dormiam, Ícaro subiu até o telhado — um lugar onde poucos iam, pois era perigoso. Ele ficava ali olhando as luzes distantes da cidade grande no horizonte. Às vezes via helicópteros passando, e aviões cortando o céu. Ficava imaginando pra onde estavam indo, quem estava dentro deles, e como seria a vida do lado de lá do muro. Naquela noite, ele fez uma promessa silenciosa: "Eu vou sair daqui. E vou ter tudo que esses ricos têm. Cada centavo. Cada carro. Cada mansão. Eu vou ter mais."

Essa ambição não era por raiva. Era por fome. Uma fome que não vinha da barriga, mas do peito. Uma vontade insaciável de mudar de vida, de ser alguém. Ícaro não queria ser mais um pobre coitado que o mundo esquece. Ele queria ser lembrado. Queria poder olhar pra trás um dia e dizer: "Eu venci."

E mal sabia ele que o universo já estava tramando a primeira peça desse quebra-cabeça. A primeira visita de uma certa família rica estava prestes a acontecer.

O Encontro tudo mudou numa manhã chuvosa.

Era um daqueles dias em que o céu parecia chorar por todos que viviam esquecidos. A chuva batia forte nas janelas do orfanato, e as crianças estavam todas reunidas no refeitório, tentando se aquecer com copos mornos de chá ralo. De repente, o som de pneus na lama chamou atenção. Um carro preto, reluzente, com vidros escurecidos, parou em frente ao portão de ferro.

As cuidadoras se agitaram, arrumando os uniformes das crianças mais apresentáveis e mandando as outras se esconderem nos quartos. Visitas importantes exigiam fachada. E aquela era muito especial. A família Valmont, conhecida na cidade pelos grandes empreendimentos imobiliários e pelas aparições constantes em colunas sociais, vinha fazer uma "ação social". Mas Ícaro sabia que essas visitas eram mais sobre imagem do que empatia.

Mesmo assim, ele ficou curioso. Se escondeu atrás de uma pilastra próxima à entrada. De lá, viu quando desceu do carro o Sr. Arthur Valmont — um homem alto, cabelo grisalho impecável e olhar firme. Ao lado dele, a Sra. Helena Valmont, elegante, com um vestido bege e um colar de pérolas. Mas o que mais chamou atenção de Ícaro foi a menina que veio atrás dos dois: Elisa.

Elisa devia ter uns 12 anos, pouco mais velha que ele. Tinha cabelo castanho claro, preso em um rabo de cavalo simples, e olhos grandes, curiosos. Enquanto os pais falavam com o diretor do orfanato, ela se afastou e começou a olhar ao redor, claramente entediada com o protocolo. Foi nesse momento que seus olhos cruzaram com os de Ícaro. Ele, meio escondido, não desviou o olhar. Pelo contrário: encarou firme, como se estivesse tentando ler a alma dela.

Elisa franziu o cenho, depois sorriu levemente e acenou com a mão. Ícaro não respondeu. Só ficou parado, curioso. Ninguém nunca tinha olhado pra ele daquele jeito. Não com pena, nem com nojo. Ela o olhou como se ele fosse... interessante.

Mais tarde, durante o lanche servido pela visita, Elisa se aproximou de Ícaro. Enquanto todos se empanturravam com os biscoitos caros e sucos de caixinha que raramente viam, ela puxou conversa:

— Você é o mais velho daqui? — Não. Mas sou o mais esperto. — respondeu Ícaro, sem sorrir. Ela riu. — Modesto, hein? — Só realista.

E assim começou uma conversa inesperada. Eles falaram de livros, de filmes (que Ícaro só conhecia pelos cartazes que via nas bancas), de cidades grandes. Elisa ficou impressionada com o vocabulário dele e com o jeito direto. Ícaro, por sua vez, ficou fascinado com as histórias de viagens, com a forma como ela descrevia Paris como se fosse a pracinha da esquina.

Quando os Valmont foram embora, Elisa olhou para trás e acenou novamente. Dessa vez, Ícaro retribuiu com um aceno discreto. Algo ali tinha sido plantado. Uma semente. Um começo.

Aquela noite, Ícaro não dormiu. Sentado na cama, olhava para o teto, repetindo mentalmente o sobrenome "Valmont" como se fosse uma senha mágica. Ele não sabia como, nem quando, mas sentia que seu destino estava ligado a aquela família.

E ele faria o que fosse preciso para fazer parte daquele mundo.

O Convite

O casal ficou impressionado com a inteligência e educação de Ícaro. Após várias visitas, decidiram levá-lo para morar com eles como um "projeto de ajuda social". Ícaro viu ali sua chance. Não queria só um lar. Queria ser um Valmont.

As visitas da família Valmont ao orfanato se tornaram frequentes. Oficialmente, diziam que era parte de uma campanha de adoção assistida, onde famílias influentes acompanhavam o desenvolvimento de crianças sem lar. Mas, na prática, ficava evidente que os Valmont tinham criado uma conexão real com Ícaro — ou, pelo menos, era o que parecia.

Ícaro, por sua vez, não deixava escapar nenhuma oportunidade de se destacar. A cada nova visita, ele mostrava mais: lia em voz alta trechos de livros, fazia perguntas inteligentes sobre negócios, e até chegou a recitar de memória um poema de Machado de Assis. Ele não estava apenas tentando agradar. Ele estava se vendendo como o produto perfeito. E estava funcionando.

Num domingo ensolarado, a Sra. Helena Valmont pediu para conversar a sós com o diretor do orfanato. A conversa durou quase uma hora. Quando ela saiu da sala, os olhos estavam marejados, e o Sr. Gael, visivelmente desconcertado. Pouco tempo depois, Ícaro foi chamado. Quando entrou na sala, a mulher se ajoelhou na frente dele e disse:

— Ícaro, gostaríamos que você passasse um tempo com a gente. Em casa. Pra ver como se adapta. Sem compromisso, tá bem? Mas acreditamos que você merece uma chance diferente.

Ele não respondeu de imediato. Sua mente fervilhava. Era isso. O começo. Seu plano ganhava forma. Mas por fora, ele apenas assentiu com a cabeça e disse:

— Eu vou fazer valer essa chance.

No dia seguinte, Ícaro arrumou suas poucas roupas numa mochila emprestada. Enquanto os outros meninos observavam com uma mistura de inveja e admiração, ele subiu no carro preto dos Valmont, agora não como um espectador escondido atrás de uma pilastra, mas como passageiro. O motorista sorriu educadamente. Helena e Arthur trocavam olhares esperançosos. E Elisa, no banco de trás, abriu espaço ao lado dela.

— Bem-vindo ao time — disse, com um sorriso. Ícaro não respondeu. Apenas olhou pela janela e viu o orfanato encolher no retrovisor.

Chegar na mansão dos Valmont foi como pousar em outro planeta. O portão automático se abriu lentamente, revelando jardins simétricos, uma fonte com estátuas de mármore e uma fachada de pedra branca que parecia saída de um filme. Ícaro tentava disfarçar o espanto, mas por dentro, era como se seus olhos estivessem devorando cada detalhe: os quadros nas paredes, o piso que brilhava, o cheiro de madeira polida e flores frescas.

— Esse será seu quarto — disse Helena, mostrando uma suíte que parecia maior que todo o dormitório do orfanato.

Ele entrou devagar, tocando o lençol branco, os livros novos sobre a escrivaninha, o armário cheio de roupas sob medida. Não era apenas conforto. Era poder. E agora ele fazia parte disso.

Naquela primeira noite, os Valmont organizaram um jantar em família para celebrar a chegada de Ícaro. Ele foi servido por garçons, provou comidas que não sabia nem pronunciar e ouviu histórias de negócios, viagens e investimentos. Prestava atenção em tudo. Sabia que cada conversa era uma aula. Cada palavra, uma pista.

Arthur Valmont, mais reservado, observava o menino com cautela. Helena, sempre sorridente, tentava quebrar o gelo. E Elisa... bem, Elisa parecia genuinamente feliz com a presença dele. Brincava, fazia perguntas e ria das respostas secas de Ícaro, que ainda mantinha uma certa distância.

Mais tarde, enquanto caminhavam pelo jardim da mansão, Elisa perguntou:

— O que você quer ser quando crescer?

Ícaro respondeu sem hesitar:

— Dono de tudo isso aqui.

Ela achou que era uma piada e riu. Mas Ícaro não riu. Nem piscou.

A menina então olhou de lado, meio desconcertada, e mudou de assunto. Mas aquela frase ficou na cabeça dela.

Na semana seguinte, Ícaro começou a frequentar a escola particular dos Valmont. Tudo era novo: os colegas mimados, os professores exigentes, os horários rigorosos. Mas ele não reclamava. Observava. Absorvia. Anotava. Estava ali por um motivo. E não ia perder o foco.

Para a sociedade, ele era o menino pobre que teve sorte. Para os Valmont, era um experimento social promissor. Para Ícaro, era só o primeiro degrau de uma escada que ele pretendia escalar até o topo.

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