O despertador não havia tocado, mas Aurora já estava desperta. Há semanas, ela vinha acordando antes do som, com o coração leve e o sorriso fácil, como se sua vida tivesse, finalmente, entrado nos trilhos certos. Sentia-se em paz. Plena. Quase feliz.
A luz suave da manhã filtrava-se pelas cortinas esvoaçantes, pintando desenhos dourados no chão de madeira clara. A brisa fresca da capital entrava pela janela entreaberta, trazendo consigo o cheiro de café recém-passado misturado ao pão na chapa. O perfume familiar que preenchia a casa que ela e Levi haviam montado com tanto carinho.
Ela respirou fundo.
Do andar de baixo, o som da cafeteira, dos talheres se movendo e da água caindo no copo formavam uma trilha sonora doméstica que a fazia sentir que tinha, finalmente, uma vida de verdade. Não uma existência temporária, como a que teve na casa dos pais adotivos. Mas uma vida com propósito. Com raízes. Com amor.
Levi. Seu noivo. Seu porto seguro.
Aurora se espreguiçou lentamente, puxando o cobertor macio sobre o colo por alguns segundos antes de se levantar. O sol tocava a aliança em seu dedo, fazendo-a brilhar com intensidade. E, mesmo já acostumada com o anel, ela ainda sorria toda vez que o via. Era como se cada manhã fosse uma pequena confirmação de que ela estava vivendo algo que jamais imaginou merecer.
No andar de baixo, ele já estava de volta da corrida. O cabelo úmido da ducha rápida, uma camiseta preta colada ao corpo ainda ligeiramente suado. Estava na cozinha, como sempre, preparando o café do jeito que ela gostava.
— Bom dia, minha futura esposa — disse Levi, com aquele sorriso que costumava desmontá-la.
— Bom dia, meu quase marido — respondeu Aurora, rindo ao descer os últimos degraus.
Ele a puxou pela cintura no impulso, colando seus corpos. Era um gesto automático entre eles, como se os dois pertencessem um ao outro sem esforço. Aurora deixou-se ficar ali por alguns segundos, encostando a cabeça no peito dele. Ouvir o coração dele batendo ainda a acalmava.
— Preparei o café como você gosta — ele disse, beijando a testa dela. — Forte, com pão na chapa e... suco de laranja sem açúcar. Mesmo você me obrigando a beber essa coisa amarga.
— É saudável! E você já se acostumou — respondeu ela, sentando-se à mesa.
— Eu me acostumei com você. Isso, sim.
Ele piscou e a fez sorrir de novo.
A mesa estava posta com uma delicadeza que só quem ama se dá ao trabalho de fazer. Guardanapos dobrados, flores simples no centro — lavandas, as preferidas dela — e um potinho com geleia de morango que Levi havia buscado na feira, só porque ela comentou por alto que gostava daquela marca artesanal.
Enquanto comiam, conversaram sobre os últimos preparativos do casamento. O buffet, os convites, a música da cerimônia. Aurora anotava detalhes em seu caderninho bege, enquanto Levi desenhava possíveis destinos para a lua de mel.
— Toscana seria um sonho, mas... e se fôssemos para Santorini? Ou talvez para o interior da França? Alugar uma casinha de pedra, só nós dois, vinho e lareira?
Aurora riu, encantada com o entusiasmo dele.
— Do jeito que você fala, vamos precisar de três luas de mel.
Levi segurou a mão dela sobre a mesa, os olhos cravados nos dela.
— Eu te prometo, Aurora. Vou te dar tudo que você nunca teve. Tudo que você merecia e não te deram. Você vai ser a mulher mais feliz desse mundo. Eu juro.
Ela o olhou com um brilho emocionado. Ainda não conseguia acreditar que alguém a amava daquela forma. Depois de uma vida sendo ignorada pelos pais adotivos, tratada como um peso, uma obrigação, ela havia encontrado um amor que a colocava em primeiro lugar.
Ela acreditava.
E, por acreditar, não viu o leve tremor no olhar dele. O vacilo na voz. A sombra que atravessou o rosto de Levi por um instante.
Levi sempre soube dizer as palavras certas. E Aurora estava tão mergulhada na ideia de ser amada que não notou o silêncio que veio depois da jura. Um silêncio pesado. Um silêncio que, em breve, se tornaria grito.
Mais tarde, naquela mesma manhã, ela encontrou o vestido de noiva pendurado atrás da porta do quarto. O véu estava ao lado, cuidadosamente dobrado.
Ela passou os dedos pelas rendas delicadas, imaginando o caminho até o altar. O sorriso dele ao vê-la entrar. Os aplausos. Os olhos marejados.
Na mente dela, o futuro era leve e branco.
Era quarta-feira, e Aurora decidira surpreender Levi no trabalho com um almoço leve — uma das marmitas que ele adorava, feita por ela mesma. Nada muito elaborado, apenas o cuidado em cada detalhe. Pão de fermentação natural, salada fresca, frango grelhado com molho cítrico, e a sobremesa favorita dele: brigadeiro gourmet com raspas de limão.
Ela sabia que ele estava sob pressão com a nova campanha da empresa, então pequenas gentilezas como essa eram sua maneira de apoiá-lo. Mostrar que, além de noiva, era companheira. Parceira.
Passou antes na gráfica onde estavam os convites do casamento. Ao vê-los prontos, sentiu o coração acelerar. A tipografia dourada sobre o papel branco-fosco, os nomes entrelaçados, a data marcada com firmeza. O nome dela e de Levi, impressos como promessa.
Ela mal podia esperar para entregar aquele convite aos poucos amigos que ainda restavam — mesmo depois de tanto tempo afastada. Mesmo com as cicatrizes que Levi jurava ajudá-la a curar.
Chegando à empresa, avisou discretamente à recepção. Aurora sempre foi discreta com as aparições por lá. Nunca quis parecer invasiva, mesmo sendo noiva do diretor de criação mais cobiçado da agência.
Foi então que ouviu, sem querer, um dos funcionários ao telefone:
— Sim, doutora, o Levi ficou bem abalado, sim... Ele nem dormiu ontem. Ninguém esperava que ela voltasse assim... Sim, a Yasmin… foi um choque.
Aurora parou. Por um instante, sentiu o mundo girar em silêncio. Yasmin? O nome ecoou dentro dela como um fantasma que jamais conheceu — mas que já ouvira demais.
Ela sabia quem era Yasmin. A ex. A mulher que desapareceu da vida de Levi no momento mais frágil. A que ele quase nunca mencionava, apenas com olhares duros e voz tensa. Aquela que, segundo ele, o ensinou a nunca mais depender de ninguém. A única que o havia deixado quebrado.
Aurora piscou, tentando recuperar o ar. A mão apertou com força a alça da bolsa térmica. Sentiu o suor escorrer pelas costas, mesmo no ambiente climatizado.
Tentou ignorar. Talvez fosse apenas uma coincidência. Ou alguém com o mesmo nome. Ou alguma história mal contada que não a dizia respeito. Talvez…
— Aurora? — Levi apareceu subitamente ao fim do corredor, ainda com a pasta na mão e a expressão exausta. — O que você tá fazendo aqui?
Ela forçou um sorriso, disfarçando o tremor leve nos dedos.
— Quis te fazer uma surpresa… Trouxe seu almoço.
Levi hesitou. Um segundo apenas. Mas para ela foi como um silêncio de horas. Ele engoliu em seco, aproximando-se rápido e pegando a marmita da mão dela como se quisesse esconder algo.
— Obrigado, meu amor. Você é incrível, sério. Só… só me pegou no meio de uma loucura aqui. A gente conversa em casa, tá?
Ela assentiu, mas os olhos buscavam respostas que ele não ofereceu.
Não houve beijo. Nem toque. Apenas um sorriso cansado e um agradecimento automático. Ele parecia distante. E, pela primeira vez em muito tempo, Aurora sentiu o calor do amor queimar de forma diferente.
Naquela noite, Levi demorou mais do que o normal para chegar em casa. Disse que teve uma reunião de última hora. Estava tenso, com olheiras profundas e o olhar perdido.
— Tá tudo bem? — ela perguntou, sentando-se ao lado dele no sofá.
Levi passou as mãos pelos cabelos, respirando fundo.
— Eu só… Recebi uma notícia hoje. Uma coisa do passado. Nada demais. Mas mexeu comigo.
Ela esperou que ele dissesse mais. Que a incluísse. Que dividisse a dor. Mas ele não fez.
— Se quiser conversar, eu tô aqui — ela disse suavemente.
Ele assentiu. E ficou em silêncio.
Aurora não insistiu. Mas algo dentro dela, silenciosamente, se partiu.
E naquela noite, enquanto Levi dormia ao seu lado, ela ficou acordada por horas, olhando para o teto, sentindo que uma presença invisível havia invadido sua casa. Seu relacionamento. Sua paz.
O silêncio começou aos poucos.
Primeiro, foi uma resposta mais curta.
Depois, um toque que não veio.
Em seguida, um beijo esquecido na saída para o trabalho.
Até que, sem perceber, Aurora passou a dormir ao lado de um homem que parecia cada vez mais distante.
Levi já não fazia questão de jantar em casa. As reuniões se tornaram frequentes, as desculpas, vagas. E o telefone dele, que sempre ficava largado na mesa ou no sofá, agora estava sempre no bolso ou virado para baixo. Sempre em modo silencioso.
Aurora tentou não ver maldade. Tentou acreditar no cansaço. Na pressão do trabalho. No estresse com os fornecedores do casamento. Mas no fundo, algo dentro dela sabia. Algo gritava, ainda que em silêncio.
Era como se a presença dela passasse a incomodar. Como se o amor tivesse sido engolido por algo invisível — e cruel.
Foi em uma quarta-feira à noite que tudo começou a se tornar mais claro. Aurora chegou em casa mais cedo, com a intenção de preparar um jantar especial. Pensou em criar uma noite tranquila, a dois. A comida preferida dele, vinho tinto, música suave ao fundo. Vestiu o vestido azul de alças finas, aquele que ele costumava elogiar com um olhar faminto. Prendeu o cabelo em um coque despretensioso e acendeu as velas da mesa. Tudo como nos velhos tempos.
Mas ele não apareceu.
O relógio passou das oito. Depois das nove. Às dez, Aurora ligou. A ligação caiu na caixa postal. Enviou mensagem. Sem resposta.
Ela esperou sentada à mesa, sozinha, olhando para o prato frio e o vinho que não fora aberto. A vela foi consumida lentamente, como o último resquício de esperança.
Às onze da noite, Levi finalmente entrou pela porta, com os olhos baixos e os passos hesitantes.
— Aurora... Eu... — começou ele, mas parou ao ver a mesa posta, a vela já apagada, a comida intocada.
Ela não disse nada.
Ele suspirou, largando as chaves e a mochila em cima do sofá.
— Me desculpa. Tive que sair. Um… um imprevisto.
— Com Yasmin?
O nome saiu baixo, mas firme. Não era uma pergunta. Era uma constatação. Ela já sabia. Não precisava que ele confirmasse.
Levi hesitou. Sentou-se na poltrona, como se o corpo pesasse mais do que devia.
— Ela voltou… e está doente, Aurora. Muito doente.
Ela o encarou, sem mover um músculo.
— E isso justifica desaparecer? Me ignorar? Voltar pra casa como se nada estivesse acontecendo?
— Eu não estou te ignorando. Eu só… não sei como lidar com isso. Ela me procurou chorando. Disse que está em fase terminal. Câncer. Disse que só queria ter paz… E que se arrepende de tudo. Ela só quer se despedir do mundo em paz.
Aurora manteve a voz calma, mas os olhos estavam marejados.
— E por isso você desaparece? Por isso você me deixa sozinha esperando? Por isso você não toca mais em mim?
Levi abaixou a cabeça.
— Ela está morrendo, Aurora. Eu não posso simplesmente virar as costas. Ela… ela foi uma parte importante da minha vida.
— E eu sou o quê? Uma nota de rodapé?
— Claro que não! Mas você precisa entender. Eu não a amo mais, eu só sinto pena. Compaixão. Eu jamais trocaria você por ela. Eu estou com você.
Mas nenhuma palavra que ele dizia encontrava verdade nos olhos.
Aurora o observou por um longo momento. O homem à sua frente não era mais o mesmo. O Levi que prometeu o mundo agora era um estranho que carregava culpa demais para ver o que estava perdendo.
E isso era só o começo.
Nos dias seguintes, Levi passou a sair com frequência. Ele dizia que era para acompanhar Yasmin nas consultas, ajudá-la com exames, estar presente porque ela não tinha ninguém.
Aurora, inicialmente, tentou compreender. Ela sabia o que era não ter ninguém. Sabia como doía ser deixada de lado. Mas o que Levi fazia ia além de um gesto de compaixão.
Ele começou a levar flores para Yasmin — as mesmas lavandas que antes dava para Aurora.
Levou comidas que Aurora preparava, agora cozinhadas por ele.
E, finalmente, passou a usar as ideias que os dois haviam planejado juntos para o próprio casamento… com Yasmin.
Tudo veio à tona quando Aurora viu, por acaso, o celular de Levi destravado sobre o sofá. Ela não era do tipo que mexia, nunca foi. Mas naquela noite, algo a puxou. Algo que precisava de respostas.
E ali estavam elas.
Mensagens de carinho. Fotos de locais de casamento. Provas de bolo. Decoração.
Tudo. Absolutamente tudo o que fora sonhado com ela... agora compartilhado com Yasmin.
A garganta de Aurora se fechou. Ela não conseguia respirar. Aquilo não era mais compaixão. Era traição.
Era perverso.
Naquela noite, ela não chorou. Não gritou. Apenas deitou ao lado dele, como quem dorme com um estranho. Como quem se despede em silêncio.
O dia seguinte foi a gota.
Levi a esperava na sala, de braços cruzados.
— Yasmin está se sentindo muito mal. Disse que está com medo de morrer cheia de mágoas. Ela… ela quer pedir desculpas a você. Mas para isso, você precisa… ir até lá.
Aurora o encarou, perplexa.
— Você quer que eu vá até ela?
— Sim. Ela quer pedir perdão. Mas… quer que você peça perdão também. Por tê-la ofendido nas mensagens que mandou quando ela voltou.
Aurora sentiu a pressão no peito.
— Eu nunca mandei mensagem nenhuma, Levi. Nunca.
— Yasmin disse que foi você. E eu acredito nela.
Ali, Aurora entendeu. Ele já não a via. Já não a ouvia. Ele não a reconhecia mais.
— Você quer que eu me ajoelhe diante da mulher que destruiu tudo o que eu tinha com você?
Levi respirou fundo, como quem dá uma última chance:
— Eu só estou tentando dar paz a alguém que está morrendo. Seja humana, Aurora. Só isso.
Ela o olhou, e por um instante, tudo o que um dia sentiu se partiu em mil pedaços.
— E quem vai dar paz a mim?
Ele não respondeu.
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