Ele acordou com o sol batendo no rosto, um retângulo de luz que riscava o chão do quarto como uma régua perfeita. "Três passos até a janela. Sete até a porta. Doze até o banheiro." Os números rodopiavam em sua mente, organizando o caos do mundo em sequências que faziam sentido. Ele gostava disso. Precisava disso.
— Noah— a voz da mãe cortou o ar como uma faca, sem a suavidade que ele via nos outros pais. — Desce já, o café vai ficar frio!
Ele encolheu os ombros, pressionando as mãos contra as orelhas por um segundo. Muito alto. Sempre muito alto. Respirou fundo, contando até cinco, e desceu as escadas, evitando os degraus que rangiam. Sabia cada um deles.
Na cozinha, o cheiro de pão queimado enchia o ar. A mãe estava de costas, os ombros tensos. Ele se sentou, alinhando o garfo exatamente paralelo à faca. Assim está certo. Assim é seguro.
— Por que você não pode ser normal? — a mãe soltou o prato na mesa com um baque, fazendo os talheres tremerem. Ele recuou. — Todo dia a mesma coisa, Ele! Você tem que tentar, pelo menos!
Ele olhou para as mãos, para as veias azuladas sob a pele. "Normal". Uma palavra que não significava nada, mas que doía como tudo.
— Eu… eu tento — sua voz era baixa, quase engolida pelo tic-tac do relógio. Tic. Tac. Tic. Tac. Ritmo perfeito.
— Não tenta! — ela esfregou o rosto, exausta. — Você nem me olha nos olhos. Vive nesse seu mundinho, como se eu não existisse!
Ele apertou os punhos, sentindo as unhas cavando na pele. Não é um mundinho. É meu cérebro. É como eu funciono. Mas as palavras nunca saíam direito. Em vez disso, ele balançou levemente para frente e para trás, o movimento acalmando os ruídos dentro dele.
A mãe suspirou, longa e profunda.
— Um dia você vai ter que encarar a vida, Ele. Eu não vou estar aqui pra sempre.
Ele olhou para ela, rápido, só um segundo. Nos olhos dela, ele viu algo que já conhecia: decepção. Ela queria um filho diferente.
Mas Ele tinha uma vida boa. Na escola, a professora deixava ele desenhar mapas de constelações no caderno quando as aulas ficavam muito barulhentas. Seu colega, Pedro, sempre guardava um pacote de bolacha sem glúten pra ele, porque sabia que ele não gostava do toque das outras. Aos sábados, ele ia para o parque e contava quantos passos levava até o lago. Duzentos e quatorze.
Só faltava ela entender.
— Eu… eu gosto de você, mãe — ele murmurou, as palavras saindo tortas, mas verdadeiras.
Ela parou, a xícara no ar. Por um instante, ele achou que talvez, talvez, ela fosse sorrir. Mas ela apenas bebeu o café e virou as costas.
Ele terminou o pão em silêncio, mastigando cada pedaço exatamente vinte vezes. Um. Dois. Três…
Era assim. Ele não era quebrado. Só era diferente. E talvez, um dia, ela enxergasse que isso não era algo para consertar, mas para entender.
Até lá, ele tinha seus números, suas rotinas, seu céu particular de constelações ordenadas.
E isso, por enquanto, era suficiente.
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Capítulo 2: Raízes no Concreto
O ônibus balançava, cheio de vozes misturadas, perfumes fortes e o ronco do motor. Ele encostou a testa no vidro, sentindo a vibração contra a pele. Trinta e duas sacudidas até a próxima parada. Respirou fundo, tentando afogar o cheiro de cigarro que grudava nas roupas desde que saíra de casa. A mãe fumara mais uma vez na cozinha, os olhos vermelhos fixos nele, como se ele fosse mais uma conta a ser paga.
— "Você acha que faculdade é de graça? Até o gás daquele fogão eu tô devendo, e você aí, brincando de estudar."
Ele fechou os olhos. Não era brincadeira. Na verdade, as aulas eram o único lugar onde as coisas faziam sentido.
Universidade Federal de Ciências Agrárias
O campus era verde. Verde de verdade. Não aquele verde sujo das paredes mofadas de casa, mas um verde vivo, que respirava. Ele passou os dedos sobre as folhas de uma Tradescantia zebrina que crescia perto do departamento de botânica. A planta trepava pelo muro, insistente, mesmo com o cimento tentando sufocá-la.
— Ei, Noah — Pedro, seu único "quase-amigo", veio correndo, segurando uma muda com raízes expostas. — Olha o que consegui no laboratório! Philodendron bipinnatifidum, tá meio mirrado, mas acho que você salva.
Ele pegou a planta com cuidado, examinando as folhas amareladas.
— Falta... luz indireta. E o substrato tá compactado — murmurou, já imaginando o vaso perfeito, a mistura de turfa e perlita que iria ajudá-la.
— Pra você é fácil — Pedro riu, cutucando seu ombro. Ele resistiu ao impulso de se afastar. Toque permitido: um segundo, no ombro direito. — Mas falando sério... você tá bem? Tua mãe...
— Não quero falar dela — interrompeu, mais rápido do que o habitual. A Philodendron tremia um pouco em suas mãos. Ou eram suas mãos que tremiam?
Pedro ficou quieto. Sabia. Todo mundo no bairro sabia das dívidas, dos homens de terno que batiam à porta à noite, da voz áspera da mãe gritando com Ele por coisas que ele nunca controlou
A luz do poste entrava pelas frestas da janela quebrada. Ele ajeitou a muda no parapeito, longe do cinzeiro cheio. A mãe estava no sofá, a TV alta demais, um copo de vodka na mão.
— Cadê o dinheiro do estágio? — ela perguntou, sem olhar.
Ele engoliu seco.
— É... é só dia 5.
— Mentira. Você guarda pra essas porcarias — ela apontou para as plantas alinhadas na prateleira: suculentas, samambaias, uma orquídea que ele resgatara do lixo. — Enquanto isso, eu me fodo pra pagar as contas!
Ele sentiu o peito apertar. Ela não entendia. As plantas não eram "porcarias". Eram vidas que ele conseguia cuidar. Vidas que não gritavam, não olhavam com nojo, não chamavam ele de "retardado".
— Mãe... — a voz saiu em um fio. — Eu... posso ajudar a arrumar um emprego. Tem um projeto de jardinagem...
— Jardinagem? — ela deu uma risada ácida, levantando-se. O cheiro de álcool e nicotina invadiu o espaço dele. — Você não enxerga, né? O mundo não é um jardim, Ele! É um lixo. E a gente tá afundado nele!
Ela pegou o vaso mais próximo — uma Pilea peperomioides que ele cultivara por meses — e jogou no chão. Terra voou. Raízes arrancadas.
Ele não gritou. Não chorou. Apenas ajoelhou-se, começando a recolher os pedaços com mãos trêmulas. Talvez ainda desse pra salvar...
— Até isso você faz de modo esquisito — a mãe cuspiu, jogando o casaco. — Amanhã, os caras do Sr. Costa vêm aqui. Você fica calado e deixa eu resolver.
Sr. Costa. O nome pesou como uma pedra. O agiota. Aquele que deixara marcas roxas no braço dela na última visita.
Ele olhou para a planta destruída, depois para a mãe, que já virava as costas.
— Eu... vou consertar — sussurrou, sem saber se falava da Pilea ou de tudo mais.
Mas algumas coisas não crescem de novo.
Noah estava agachado no canto do quarto, reorganizando suas brinquedos de planetas sobre a prateleira improvisada. A júpiter que a mãe havia quebrado estava agora em um novo vaso, suas folhas murchas ainda tentando se firmar. Talvez sobrevivesse. Ele contou cade um para ver se estava no lugar
Então, a porta da frente foi arrombada.
O baque ecoou pela casa como um tiro, e Ele levou as mãos aos ouvidos instantaneamente, os dedos pressionando com força. Barulho alto. Ruído inesperado. Dor. Ele encolheu-se, balançando para frente e para trás, os músculos tensos.
— Você tá achando que dá pra sumir, é? — uma voz cortou o ar, grossa e cheia de algo que Ele não entendia, mas que seu corpo reconhecia como perigo.
Ele levantou os olhos devagar.
Na sala, três homens ocupavam o espaço como uma tempestade. Dois deles eram grandes, braços tatuados, olhos escaneando tudo com desprezo. O terceiro... era diferente. Mais baixo, mas com uma presença que fazia o ar parar. Cabelo grisalho, sobretudo preto, e um olhar que não piscava. O Sr. Costa.
A mãe dele estava encostada na parede, o rosto pálido, os dedos segurando um cigarro que já se apagara.
— Sr. Costa, eu— eu juro que vou pagar, só preciso de mais uma semana—
— Já foram três semanas. — O Sr. Costa nem levantou a voz, mas cada palavra era como uma faca. — Você acha que eu sou banco?
Um dos homens deu um passo à frente, pegando o vaso de Senecio rowleyanus (a "planta-colar-de-pérolas" que Ele cultivava há meses) e esmagando-o no chão com um sorriso torto.
— Olha, chefe, o retardado tem um jardim—
Ele não pensou. Apenas se moveu.
Antes que percebesse, estava ajoelhado no chão, tentando recolher os fragmentos verdes, as contas perfeitas de sua planta agora esmagadas como tudo naquela casa. Suas mãos tremiam. Não. Não. Não.
O homem riu e ergueu o pé, como se fosse esmagar seus dedos.
— Pára.
A voz do Sr. Costa cortou como um chicote. O homem congelou.
Ele ainda estava agachado, os braços agora envolvendo a cabeça, os ouvidos tapados. Muito barulho. Muito. Muito.
Um silêncio pesado caiu.
Então, passos. Lentos. O cheiro de couro e tabaco encheu suas narinas quando o Sr. Costa se abaixou ao seu lado, sem tocar nele.
— ...Levanta. — A voz ainda era firme, mas diferente. Sem a ferocidade de antes.
Ele levantou os olhos, mas não os olhos do homem. Fixou-se na gravata, num padrão geométrico perfeito. Linhas paralelas. Seguras.
— Você é autista. — Não era uma pergunta.
Ele não respondeu. A mãe gemia algo sobre "ele não tem nada a ver com isso", mas o Sr. Costa ignorou.
— Vem. — O homem se levantou, estendendo a mão, mas sem se aproximar demais. — Você vai comigo.
A mãe gritou.
— O QUE? Não, ele não—
— Você não tem escolha. — O Sr. Costa nem olhou para ela. — Ou ele vem, ou eu queimo essa casa com vocês dois dentro.
Ele não entendia. Não entendia o que estava acontecendo, por que aquele homem olhava para ele com algo que não era raiva, por que sua mãe agora chorava sem lágrimas. Mas quando o Sr. Costa virou as costas e caminhou para a porta, Ele seguiu.
Porque, naquele momento, qualquer lugar era melhor do que ali.
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Carro do Sr. Costa
O interior era limpo, cheiroso, sem cigarros ou álcool. Ele sentou-se no banco de trás, as mãos pousadas no colo, os olhos fixos na árvore que passava pela janela. Frevo-de-jardim. Roxo. Seis pétalas.
O Sr. Costa observava-o pelo retrovisor.
— Como você se chama?
— ... Noah
— Noah — O homem repetiu, como se testando. — Você gosta de planetas Noah
Ele olhou para as mãos, onde ainda havia terra das raízes destruídas.
— ...Sim.
O Sr. Costa acenou com a cabeça, como se aquela única palavra fosse suficiente.
O carro parou em frente a uma casa grande, de paredes de pedra e jardins impecáveis. Noah — Ele, seu nome era Noah, mas ninguém usava há anos — contou mentalmente os degraus da escada frontal. Doze. Simétricos.
O Sr. Costa abriu a porta sem tocar nele, mantendo uma distância cuidadosa, como se soubesse que aquele garoto precisava de espaço para respirar.
— Entra.
Noah pisou no hall de entrada, seus tênis surrados contrastando com o mármore polido. O cheiro era diferente aqui. Limão. Canela. Nada de cigarro.
— Você deve estar se perguntando por que está aqui. — O Sr. Costa tirou o sobretudo, pendurando-o em um cabide perfeito. — Sua mãe me deve muito dinheiro. Dinheiro que ela não tem.
Noah apertou os dedos, sentindo as articulações rangendo. Contar. Precisava contar algo.
— ...Eu tenho faculdade hoje. — A voz saiu mais baixa do que ele queria.
O Sr. Costa parou. Virou-se devagar.
— Faculdade?
— Agronomia. — Noah olhou para o chão, traçando as veias do mármore com os olhos. Mapas. Eram como mapas. — Tenho aula às 14h. Não quero faltar.
Silêncio.
Noah esperou o tiro. O grito. A mão batendo nele por ousar pedir algo.
Mas o que veio foi um suspiro.
— Porra, garoto. — O Sr. Costa esfregou o rosto. — Você me faz sentir velho.
E então, algo inesperado:
— Vamos ver seu quarto primeiro. Depois eu te levo pra essa porra de faculdade.
Segundo andar. Corredor à direita. Terceira porta.
O Sr. Costa abriu.
— Aqui.
Noah parou na entrada.
Era... normal. Demais. Uma cama. Uma escrivaninha. Uma estante vazia. Nada que gritasse, nada que doía nos olhos. Seguro.
Mas então ele viu.
A janela.
Grande, voltada para o céu, com um pequeno parapeito onde caberiam — caberiam perfeitamente — vasos.
— Você gosta de planetas, né? — O Sr. Costa apontou para a estante. — Dá pra botar uns livros aí. Ou... sei lá, miniaturas de Saturno.
Noah olhou para ele, confuso. Como ele sabia?
— ...Eu vi seu caderno no carro. — O homem encostou na porta, os ombros menos rígidos agora. — Tá cheio de desenhos de constelações. E você ficou olhando pra Lua o caminho todo.
Noah não sabia o que dizer. Então, disse a verdade.
— ...Obrigado.
O Sr. Costa riu, um som rouco que não era nem um pouco engraçado.
— Não me agradeça ainda, garoto. — Ele virou para sair, parando na porta. — Você não vai voltar pra casa da sua mãe. Mas... pode ficar aqui. Estudar. Cuidar das suas porra de plantas.
— ...E ela?
O silêncio foi a única resposta.
Noah entendeu.
O carro preto estacionou em frente ao campus. Noah segurava a mochila com força, os livros pesando como pedras.
— Aula termina às 18h. Tô te buscando. — O Sr. Costa acendeu um cigarro, mas jogou a primeira baforada para fora da janela. Como se soubesse que Noah odiava o cheiro.
Noah assentiu.
— ...Você não vai me matar? — A pergunta saiu antes que ele pudesse pará-la.
O Sr. Costa olhou para ele. Real olhou.
— Não hoje.
E, por algum motivo, Noah acreditou nele.
Noah ficou parado no centro do quarto, os dedos traçando leves círculos no tecido da mochila. O silêncio era diferente aqui — não era o silêncio tenso da casa da mãe, cheio de ameaças não ditas. Era... calmo. Como o espaço entre as estrelas.
Mas algo faltava.
O Sr. Costa já estava virando para sair quando Noah engoliu seco e forçou as palavras a saírem:
— T-Tem... algum livro?
O mafioso parou, uma sobrancelha levantada.
— Livro?
Noah mordeu o lábio, os olhos fixos no padrão do carpete. Linhas paralelas. Seguras.
— S-Sobre... planetas.
O Sr. Costa ficou imóvel por um instante que pareceu durar uma eternidade. Então, com um grunhido, puxou um celular do bolso e discou com movimentos bruscos.
— Marcos. Você vai naquela livraria chique do shopping. Pega um livro bom de astronomia. Capa dura. Com fotos. Uma pausa. Não, porra, não é pra economizar.
Desligou.
Virou-se para Noah, o rosto ainda impassível, mas algo na voz havia mudado:
— Chega em uma hora.
Noah sentiu algo estranho no peito. Quase como... gratidão? Mas era difícil identificar.
— O-Obrigado.
O Sr. Costa fez um ruído entre o riso e o cuspe.
— Jantar às oito. Não vai ser aquela merda enlatada que sua mãe te dava.
E então ele saiu, deixando Noah sozinho com o eco daquelas palavras e o vazio do quarto que, de repente, parecia menos assustador.
Uma Hora Depois
A batida na porta fez Noah se encolher.
— Entra.
Um homem baixo, de terno impecável e expressão neutra, adentrou carregando uma sacola pesada.
— Do Sr. Costa. — Ele colocou a sacola na cama com cuidado incomum para alguém com mãos tão calejadas.
Noah se aproximou devagar. Dentro:
"O Universo: Uma Viagem Visual" — capa dura, lombada prateada refletindo a luz.
"Atlas do Céu Noturno" — com mapas estelares em relevo.
Um pequeno globo de Júpiter, perfeito em detalhes.
Seus dedos tremiam ao passar pelas páginas. Fotos do telescópio Hubble. Diagramas de nebulosas. Tudo em alta qualidade.
— Ele... ele pediu tudo isso?
O homem — Marcos — quase sorriu.
— O chefe falou 'se o garoto gosta de espaço, dá espaço pra ele'. Achei que fosse metáfora.
Quando a porta se fechou, Noah abraçou os livros contra o peito, cheirando o papel novo. Pela primeira vez em anos, algo era dele.
O relógio marcava 19:55 quando Noah ouviu os passos no corredor.
— Desce. — O Sr. Costa não perguntou. Era uma ordem, mas sem a aspereza habitual.
A mesa da jantar era grande demais para dois. Mas nela:
Risoto de cogumelos silvestres (Noah odiava texturas, mas cogumelos eram seguros).
Pão caseiro sem sementes (ele nunca comia as crostas duras).
Um suco de manga gelado (sua preferência desde criança).
Como ele sabia?
O Sr. Costa serviu-se de vinho, ignorando o olhar perplexo de Noah.
— Come. Antes que esfrie.
Noah mastigou devagar. O sabor era... bom. Muito bom.
— ...Por que? — a pergunta escapou antes que pudesse pará-la.
O garfo do Sr. Costa parou no ar.
— Por que o quê?
— Tudo isso. — Noah indicou a comida, o livro deixado na estante, o quarto limpo. Eu... eu não entendo.
O mafioso bebeu um gole longo de vinho. Quando falou, a voz estava diferente — mais velha, mais cansada:
Silêncio.
Noah parou de respirar.
— Agora come seu jantar, Noah.
E pela primeira vez, o nome saiu certo.
O som da chuva batendo na janela era rítmico. Uma gota. Duas gotas. Três. Noah contava mentalmente enquanto secava o cabelo com a toalha macia — diferente daquela áspera que usava em casa.
Batidas pesadas na porta.
— Chefe, tá tudo resolvido. — A voz era áspera, do homem que Noah ouvira ser chamado de Marcos. — Comprou tudo que o senhor pediu. Até a porra da escova de dente com cabo de astronauta.
Noah viu pela fresta da porta entreaberta o Sr. Costa assentindo, contando uma pilha de cédulas sem nem olhar para o subordinado.
— Bota em cima da cama dele.
— Tá bom, mas... o senhor vai mesmo levar o mlk pra escola amanhã? — Marcos parecia confuso. — O Schmidt pode ir, ou eu mesmo—
— Eu vou.
A resposta foi cortante. Os outros homens na sala trocaram olhares. Alguém tossiu.
Noah aproveitou o barulho da chuva para fechar a porta sem fazer barulho.
Uma camiseta preta (tamanho P, algodão orgânico — sem etiquetas para não arranhar).
Um moletom azul-marinho (o mesmo tom do céu noturno em noites sem poluição).
Calça jeans (lavada várias vezes, macia).
Tênis novos (exatamente o mesmo modelo que Noah usava, só que sem os buracos).
Uma escova de dente azul com pequenas estrelas brancas.
Noah passou os dedos sobre os itens, verificando texturas. Tudo... certo. Nada que disparasse alarmes em sua mente.
— Obrigado. — Ele murmurou para o quarto vazio, sabendo que talvez o Sr. Costa ouvisse pelas câmeras que certamente existiam.
O banho foi quente. A água não oscilava de temperatura como no chuveiro velho de casa. Quando se deitou, as cobertas cheiravam a lavanda.
Dezesseis respirações profundas.
Ele dormiu.
A porta rangeu levemente.
O Sr. Costa parou no limiar, observando o vulto curvado sob os cobertores. Noah dormia em posição fetal, uma mão ainda segurando a ponta do moletom novo como uma âncora.
Na mesa de cabeceira:
O globo de Júpiter refletindo a luz da lua.
O livro de astronomia aberto na página de Andrômeda.
Os óculos dobrados com precisão milimétrica.
O mafioso esfregou o rosto, as cicatrizes nas mãos parecendo mais profundas sob a penumbra.
— Que merda tu tá fazendo, Costa? — Ele sussurrou para si mesmo, voz rouca. — Tá ficando mole.
Noah virou-se no sono, um murmúrio escapando:
— ...Tau Ceti tem exoplanetas...
O Sr. Costa congelou. Depois, algo estranho aconteceu.
Um sorriso.
Breve. Quase imperceptível.
— Bobo do caralho. — Ele fechou a porta sem fazer barulho.
O carro preto estacionou em frente à universidade às 7:58 AM.
Noah estava sentado no banco de trás, de moletom novo e mochila organizada (lanche sem texturas estranhas, garrafa térmica com chá de camomila).
— Aula até quando?
— 16h30. — Noah olhou para as mãos. — Tem... tem uma aula prática de identificação de solos hoje.
O Sr. Costa acendeu um cigarro, mas jogou-o pela janela antes mesmo de tragar.
— Tô buscando às 17h. Não anda sozinho.
— ...Por quê?
O silêncio pesou.
— Porque hoje tem tiroteio no Largo. — O mafioso mentiu pela primeira vez para Noah. — Agora vaza.
Quando Noah desapareceu pelo portão, o Sr. Costa pegou o celular.
— Schmidt. Cancela a reunião no bordel. Tô indo pra faculdade ver um negócio.
Do outro lado, o subordinado engasgou.
— Faculdade, chefe?!
— É. E se contar pra alguém, te afogo no aquário de tartaruga do zoológico.
Desligou.
Olhou para o prédio onde Noah havia entrado
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