Capítulo 1 – A Vida Que Me Coube
Eu acordei com o sol esquentando minha cara e o teto descascado me encarando de volta, como se me julgasse por existir. Aquela rachadura perto da lâmpada parecia maior que ontem, mas talvez fosse só eu que tava ficando louca.
Fiquei deitada ali, ouvindo o barulho de panela lá embaixo e me perguntando qual era o sentido de levantar. Da escola eu já sabia o que esperar: gente que fingia que eu não existia, professores que me olhavam torto porque sabiam de onde eu vinha. E pra quê? Pra enfiar diploma num curral de currículos de gente rica e acabar servindo café pra alguma madame que se acha importante?
Foda-se. Não ia hoje.
Virei pro lado, puxei o lençol até a ponta do nariz e decidi que aquele colchão duro era meu protesto contra o mundo. Se eu não podia mudar nada, pelo menos ia ter o direito de ficar deitada um pouco mais.
Claro que não durou muito.
A porta escancarou com um estrondo e lá estava Hella, de avental manchado de molho, segurando a vassoura como se fosse um porrete. O cabelo dela estava preso num coque torto, e o rosto já vinha carregado de fúria.
— Mas que merda é essa, Viktoria?! — berrou, sem nem respirar. — O sol já tá no meio do céu e você aqui feito uma imprestável!
Revirei os olhos e afundei ainda mais no colchão.
— Não enche, Hella. Hoje não vou.
Ela avançou, batendo o cabo da vassoura no chão. O som ecoou no quarto, alto demais pro meu humor.
— Não vai?! — Ela cuspiu as palavras. — E vai viver do quê? Vai virar outra puta que chupa pinto velho por migalhas, é isso?
Eu quase ri, de tão absurda que era a cena. Me apoiei nos cotovelos, encarei ela de frente.
— Antes isso do que ficar lambendo as botas de gente rica fingindo que respeitam a gente. Você acha que esse seu teatrinho vai me convencer?
Hella arregalou os olhos e apontou a vassoura pra minha cara.
— Você é ingrata! Eu te tirei da rua! Eu te dei teto, comida, futuro! Mas se não estudar, vai acabar igual a mim, entendeu? Igualzinha!
O coração deu um pulo no peito, mas engoli a vontade de fraquejar. Eu sabia que ela só gritava porque se importava — mas isso não tornava mais fácil ouvir.
— Se for pra virar igual você, então ótimo. Pelo menos não fico fingindo que o mundo é justo.
Ela respirou fundo, o rosto já ficando vermelho. Por um segundo, achei que ia me bater com a vassoura. Mas em vez disso, apontou pra porta.
— Tá bom. Se não quer estudar, vai fazer alguma coisa útil. — A voz dela saiu rouca. — Vai comprar farinha e fósforos. E volta rápido, porque se não, eu mesma vou atrás.
Fiquei olhando pra ela, ainda com o peito doendo, mas levantei. Peguei meus tênis surrados, amarrei sem pressa.
— Pode deixar, chefe — murmurei, tentando parecer indiferente.
Hella virou de costas, batendo a porta com força. O barulho sacudiu a vassoura que ela tinha largado encostada na parede.
Quando fiquei sozinha, inspirei fundo e passei a mão no rosto. Se ela achava que esse sermão ia me fazer sentir menos raiva do mundo… só conseguia sentir mais.
Hella parecia ter saído de alguma história russa fodida, daquelas que ninguém termina feliz. O cabelo dela era comprido e cinza, sempre preso num coque frouxo que escapava quando ela ficava irritada — ou seja, quase sempre. A pele era fina e cheia de rugas profundas, como se cada linha carregasse uma bronca que ela já tinha dado em mim. Os olhos dela, um azul desbotado, tinham aquela expressão que misturava cansaço e julgamento, e eu odiava o jeito que eles me atravessavam, como se eu fosse uma decepção ambulante que ela amava apesar de tudo. Usava aquelas blusas brancas e velhas que pareciam limpas, mas cheiravam a cigarro e desinfetante. E tinha algo na postura dela, sempre ereta e teimosa, que deixava claro: podia ser uma velha quebrada por dentro, mas ninguém mandava nela.
E ainda assim… no fundo, uma parte de mim sabia que ela só gritava porque tinha medo. Medo de me ver virar mais uma história triste.
Mas eu não ia ser. Eu ia provar que era diferente — nem que fosse só pra calar a boca dela.
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Eu andava chutando pedrinhas pelo caminho, com a sacola de pano batendo na perna e a cabeça fervendo de pensamentos que não iam embora. O mercado comunitário era sempre o mesmo — cheiro de cebola velha, gritaria de vendedor que fingia simpatia só pra empurrar coisa vencida. E claro, os olhares. Sempre os olhares.
Todo mundo ali sabia de onde eu vinha. Da casa de Hella. Daquela rua que ninguém falava alto, mas todo mundo cochichava. E eu, sinceramente, já tava cansada de fingir que não me importava.
Vi Jessika, antes mesmo de ela me notar. Tava sentada no batente de uma porta enferrujada, as pernas magras enfiadas num jeans rasgado e o cigarro equilibrado entre dois dedos. Ela tragou devagar e soltou a fumaça como se fosse a coisa mais importante que tinha pra fazer naquele dia.
Jessika tinha a pele morena profunda e tranças longas enfeitadas com miçangas prateadas que balançavam quando ela andava. Os olhos grandes e escuros sempre pareciam medir o mundo com ironia. Usava dois piercings no nariz, um no septo e outro na lateral, e a boca cheia tinha aquele jeito de quem nasceu para soltar sarcasmo. Geralmente vestia um top preto e uma jaqueta militar larga, parecendo ao mesmo tempo cansada e perigosa. Mesmo na simplicidade, era impossível ignorá-la.
— Olha só — falei, me aproximando. — A pior influência desse bairro imundo.
Ela ergueu o olhar por baixo do capuz, soprando fumaça na minha cara.
— E a campeã de falta às aulas resolve dar as caras — rebateu, com aquele sorriso torto. — Hella surtou hoje cedo?
— Surto nível apocalipse. — Me joguei do lado dela, sentindo o concreto gelado na coxa. — A velha me acordou com a vassoura, juro que se não fosse crime, eu tinha enterrado ela no quintal.
Jessika deu uma gargalhada curta e bateu o cigarro na borda da porta.
Ela era a única pessoa que me fazia sentir menos sozinha naquele buraco. Eu sempre dizia que a gente era tipo duas pragas crescendo no cimento rachado — ninguém queria a gente ali, mas não dava pra arrancar tão fácil. Quando o resto do bairro só apontava dedo, ela sentava comigo na calçada e fazia piada da nossa miséria, como se rir fosse a única arma que a gente tivesse. Talvez fosse mesmo. E por mais que eu nunca falasse em voz alta, eu sabia que sem ela eu teria me afogado naquela sensação de que não importava o quanto eu tentasse, eu ia acabar igual todo mundo. Jessika era meu lembrete de que, pelo menos, eu não estava sozinha no meio dessa merda toda.
— Aposto que foi porque você fugiu da escola ontem também.
— Foi porque eu respiro — retruquei, revirando os olhos. — E porque, segundo ela, se eu faltar de novo, vou virar “mais uma que chupa pinto velho por migalhas”.
— Clássico discurso motivacional da Hella.
— É. Pena que não funcionou.
Ela riu de novo, mas era aquele riso que vem junto com um peso no peito. Jogou o cigarro no chão e passou a mão no rosto.
— Sério, Vik… eu tô tão cansada dessa porra de bairro. De todo mundo saber nossa vida, de todo mundo achar que pode apontar o dedo.
— E de todo mundo achar que a gente nasceu pra agradecer qualquer esmola — completei. — Ou que eu vou acabar vendendo o corpo só porque moro com Hella.
Jessika virou o rosto e me encarou de lado, o olhar meio mole.
— Mas tu sabe que, se virar puta, eu vou ser tua cafetina.
— Ah, vai sonhando — falei, empurrando o ombro dela de leve. — Nem morta vou te dar essa satisfação.
Ela deu aquele sorriso que sempre me fazia esquecer do resto do mundo por cinco segundos.
— Qual é, ia ser um upgrade. Eu já sou péssima influência, cafetina é só o próximo passo lógico.
— Pois eu quero outro passo — suspirei, encostando a cabeça na parede. — Quero ter meu próprio dinheiro. Não ficar me humilhando por gorjeta. Não depender de homem nenhum.
O silêncio caiu entre a gente, pesado e comprido. Cada um pensando na própria raiva.
— Eu queria fugir — murmurou ela, depois de um tempo. — Qualquer lugar que não seja Uslas. Qualquer buraco que não fedesse a hipocrisia.
— Eu também — falei, sentindo o peito apertar. — Mas, se a gente não fugir, juro que um dia a gente vai calar a boca de todo mundo.
Ela ergueu a mão e fechou o punho, como se aquilo fosse nosso juramento particular.
— Vai ser épico — disse, com aquele riso de quem não acredita muito, mas quer acreditar.
— Vai — confirmei, batendo de leve o punho no dela. — Nem que eu tenha que virar a criminosa mais procurada dessa merda de país.
A gente riu, porque era isso ou chorar. E eu não ia chorar hoje.
Não na frente dela.
Capítulo 2 — A Raiva que Me Mantém Viva
Era só o meio da tarde, e juro por tudo que esse dia parecia ter acordado só pra me foder. Depois do sermão da Hella e da conversa com a Jessika, ainda tive que vir pra essa porra de padaria, fingir que tava tudo bem, que eu era uma funcionária exemplar. Empacotando pão, limpando balcão como uma idiota, sorrindo pra gente que me olhava como se eu fosse carne de segunda jogada no açougue.
O cheiro de pão velho grudava no meu cabelo, no meu casaco, na minha alma. Minhas mãos tavam todas vermelhas de tanto esfregar coisa. Contava moedinha como quem conta esperança. Spoiler: não tinha nenhuma.
A porta rangendo foi tudo o que eu precisei ouvir pra saber que o inferno tava entrando. Nem olhei — o salto fino, a postura empinada, o perfume forte e falso. Aquela mulher tinha o dom de me fazer querer quebrar alguma coisa.
— Olha só — ela cuspiu, do jeito mais escroto possível —, a vagabunda da casa da velha russa. Deve roubar o troco pra comprar cigarro.
Travei o maxilar. Um, dois, três… Tentei ignorar. Eu juro que tentei. Mas tem gente que força.
Ela se encostou no balcão e me analisou como se eu fosse um bicho nojento no canto da parede.
— Puta adolescente — falou com aquele sorrisinho seco que dava vontade de socar.
Realmente achei que o dia ia dar uma folguinha. Mas não, ele queria ver sangue.
E foi aí que estalou. Não sei o que foi. Só sei que minha mão pegou um dos pães mais duros da cesta e, antes que eu pensasse duas vezes, lancei bem na cara dela. O barulho abafado foi lindo. Aquela vaca nem teve tempo de reagir.
— Tá louca?! — ela gritou, segurando o rosto.
— Louca nada! — já tava por cima do balcão, os dedos fechando o casaco dela. — Quem provocou foi você, sua nojenta!
Tava entalada até o pescoço com aquela mulher. Toda vez que vinha aqui era a mesma merda. Hoje, então? Hoje não.
A confusão começou de vez quando o dono berrou:
— Viktoria! Solta ela agora! Tá demitida! Vaza!
Soltei, tremendo, a garganta ardendo de ódio.
— Não vou perder cliente por causa de lixo de periferia! — ele cuspiu como se fosse dono da moral.
Fiquei parada um segundo, sem acreditar que tava mesmo sendo chutada assim. Mas que surpresa, né? Nesse mundo de merda, tudo que importa é dinheiro. O resto que se foda.
— Ah, claro! O mais importante é essa dondoca de merda! — rosnei, e dei um passo pra frente. Ela recuou. — Você se acha tão melhor? Tem o quê, hein? Dinheiro? E daí?! Ainda mora nesse bairro fudido igual eu! Ridícula! Deve até usar roupa falsificada só pra se mostrar!
— Sua… — o dono resmungou e veio na minha direção.
Mas ele era um bunda mole. Eu sabia. E sinceramente? Que se exploda ele e essa vaca junto.
Meus joelhos estavam bambos, mas levantei o queixo. Joguei o último olhar de desprezo pra ela e saí. Vi que tremia. Raiva? Vergonha? Que se dane. Tanto faz.
Na rua, o frio bateu como tapa. Meu corpo tremia de raiva. Raiva deles. Raiva de mim. Raiva desse bairro que não deixava ninguém respirar.
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Desci a rua com o vento cortando meu rosto, os punhos cerrados dentro do bolso. Cada passo era um aviso: eu tava prestes a explodir.
O cheiro de pão, o perfume da madame escrota… tudo grudado na minha pele. Me senti suja. Me senti fodida.
Odeio esse mundo. Odeio os ricos que cospem na nossa cara como se fosse normal. Odeio quem finge se importar. Odeio ter que aguentar calada. E, pior de tudo, odeio essa voz dentro de mim dizendo que talvez eles estejam certos. Que eu nunca vou sair dessa merda.
Passei pelos muros rachados, os fios pendurados, as lâmpadas queimadas. Esse bairro parecia rir da minha cara. Sempre falei que não ligava. Mentira. Dói pra caralho. E cansa.
Quando parei na frente da casa da Hella, fiquei uns segundos parada. A madeira da porta tava velha, descascando. A luz da sala vazava por baixo. Eu sabia que ela tava ali dentro. Sabia que ia me encher o saco assim que entrasse.
Fechei os olhos. Respirei fundo. Pensei em sair correndo. Sumir. Mas ir pra onde? Eu nunca tive pra onde ir.
Encostei a testa na porta, tentando segurar o mundo que girava dentro do meu peito. Era só mais uma merda pra aguentar. Só mais uma porrada pra engolir.
Mas alguma coisa dentro de mim mudava. Algo crescia. Uma raiva que já não era só raiva — era promessa.
Se esse mundo acha que vai me enterrar, vai precisar de uma pá maior.
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Fiquei parada na porta, segurando a sacola toda amassada. Meus dedos estavam duros de frio, mas o que doía de verdade era por dentro. Tava tentando decidir como contar pra Hella. Que fui mandada embora. De novo.
Respirei fundo. Uma, duas, três vezes. Pensei em mentir. Mas a verdade ia sair de qualquer jeito.
Só que aí, quando fechei a porta atrás de mim… senti. O silêncio tava estranho. E então — um grito abafado. Um estalo. Um tapa.
Soltei a sacola. Ela bateu no chão e rolou, perdida. Dei uns passos devagar pelo corredor. A respiração tava presa. A garganta apertada.
A voz dele rasgou o ar:
— Puta inútil. Acha que pode me fazer esperar? Eu pago por isso. Eu pago por você.
Amanda tava ali. Cabeça baixa. Mão no rosto. O braço preso na mão de um cara de terno. Grande. Com cara de nojo.
Por um segundo, eu congelei. Meu cérebro berrava: sai daí. Não se mete. Já tá fodida.
Mas aí ele levantou a mão de novo.
E o mundo virou vermelho.
A raiva subiu rasgando tudo por dentro. Da mulher da padaria. Do dono. Do bairro. Do mundo. Do meu medo.
Dei um passo. Depois outro.
E juro por tudo que é mais sagrado: eu nunca odiei alguém tanto na minha vida como odiei aquele homem naquele instante.
Capítulo 3 – A Audácia Que Eu Carrego
Eu nem pensei. Me joguei na frente da Amanda como se meu corpo fosse uma porra de parede, travando aquela mão imunda. O chão frio sumiu debaixo dos meus pés, e tudo que sobrou foi o barulho da minha respiração quando encarei aquele desgraçado.
O cara era alto, metido a elegante, cabelo penteado pra trás com gel — daquele tipo lambido que homem rico adora. O paletó provavelmente custava mais que um ano de aluguel da casa da Hella. Mas pra mim, ali, ele era só mais um merda.
O peito dele subia e descia, cheio de ódio disfarçado de superioridade. Amanda soluçava atrás de mim. Dava pra sentir o braço dela tremendo, encostado nas minhas costas.
— Sai da frente, garota — ele rosnou, a voz grossa, fedendo a ameaça. — Isso não tem nada a ver com você.
— Tem tudo a ver comigo — cuspi de volta. — Tu acha que o dinheiro te dá direito de meter a mão em quem quiser? Então mete em mim, seu bosta.
O silêncio caiu como um soco seco. As meninas tavam todas paradas, olhando. E eu sabia: se recuasse agora, ia ser só mais uma que abaixa a cabeça.
Ele avançou um passo. Vi o maxilar travar. A mão dele se ergueu, como se fosse me empurrar. Meu coração deu um baque tão forte que parecia que ia quebrar minhas costelas — mas eu não saí do lugar.
— Não se atreva — ele cuspiu, fervendo de raiva. — Você não faz ideia de quem eu sou.
— E eu não dou a mínima.
Quando a mão dele chegou perto do meu ombro, meu corpo se mexeu sozinho. O braço subiu. O punho fechou. A raiva gritando quente no meu sangue.
O soco saiu. Rápido. Seco. O som de osso acertando carne. A cabeça dele virou de lado, e por um segundo tudo congelou.
As meninas arregalaram os olhos. Amanda levou a mão à boca, em choque.
O cara cambaleou, levou os dedos à boca e viu o sangue. Os olhos dele pegaram fogo.
— Você vai se arrepender disso — rosnou, a voz baixa, cheia de veneno. — Eu sou de uma família importante. Isso não vai ficar assim.
Segurei o olhar dele até o fim. Meu peito subia e descia feito bateria de guerra. Eu sabia que tinha ferrado tudo, que tinha acabado de comprar uma briga grande demais. Mas foda-se. Não ia abaixar a cabeça.
Ele virou e saiu batendo a porta com tanta força que a casa tremeu. O barulho ficou ecoando no ar, pesado, cortando tudo.
Foi aí que senti minha mão latejar. Mas não respirei fundo. Não ainda. Porque, pela primeira vez em muito tempo, eu não tava com vergonha de mim.
A porta ainda tava vibrando quando senti a mão da Hella fechar no meu braço como uma garra. Ela me puxou com força, quase me fez cair. A cara dela tava vermelha, os olhos arregalados, o coque torto tremendo.
— Que porra você acha que tá fazendo?! — ela gritou, cuspindo cigarro e fúria.
— Fiz o que tinha que fazer! — arranquei meu braço com raiva. — Ou tu queria que ele continuasse batendo nela?
— Você não entende nada! — Ela deu um passo pra trás e me apontou o dedo. — Sabe quem ele é? Sabe quem pode aparecer aqui amanhã por causa da tua burrice?!
— Eu não tô nem aí pra quem ele é! — rosnei. — Não ia ficar parada vendo ele meter a mão em alguém. Eu não sou assim!
Ela ficou quieta por um segundo. Mas não era só raiva que vi nos olhos dela — era medo. Aquele medo que te faz engolir sapo todo dia e fingir que tá tudo bem.
— Você não se importa?! — ela explodiu, batendo a mão na mesa. Um copo caiu e rolou pelo chão. — É claro que você não se importa! Porque quem vai pagar por essa merda sou eu! Somos nós! As meninas!
— Eu já tava demitida mesmo! — gritei, antes de pensar. — Que diferença faz?!
O silêncio bateu seco. Até Amanda, encolhida num canto, ergueu o rosto.
Hella me encarou com o olhar vazio. Eu sabia que tinha passado do ponto. Mas naquele momento… eu não tava nem aí.
— O quê? — ela sussurrou, como se tivesse levado um soco. — Você foi demitida?
— Fui — falei, respirando fundo. — Porque eu cansei. De ser tratada como lixo. De fingir que tá tudo bem. De sorrir pra gente que quer me ver de joelhos.
Ela passou a mão no rosto, tentando limpar alguma frustração invisível. Quando falou de novo, foi pior do que qualquer grito:
— Você vai acabar na sarjeta, Viktoria. — A voz dela tremia. — Eu fiz de tudo pra você não virar uma cópia minha.
Eu senti algo quebrar na garganta. Mas antes que eu falasse qualquer merda, Amanda se aproximou devagar, com uma calma que me desmontou.
Ela tocou o ombro da Hella.
— Ela só queria me proteger — disse baixinho. — Só isso.
Hella travou. Os olhos marejaram, e por um segundo achei que ela ia desabar. Mas não. Ela virou o rosto, respirou fundo e empurrou tudo pra dentro de novo. Como sempre.
— Eu não aguento mais — sussurrou, quase sem voz.
Ela virou as costas e saiu da sala. A porta bateu. Mais leve que a do cliente. Mas muito mais pesada pra mim.
Fiquei ali, parada, com a mão da Amanda tocando a minha. Queria falar alguma coisa. Qualquer coisa. Mas tudo que saiu foi silêncio. E o gosto amargo de ter ferrado tudo.
A casa ficou muda. Um silêncio pesado, sufocante. Eu tava no meio da sala, o coração martelando alto. Queria sumir. Ou socar a parede até parar de doer.
Amanda se mexeu primeiro. Passou devagar, como se não quisesse me assustar, e segurou meu braço.
— Vem — falou baixinho. — Você precisa comer alguma coisa.
Eu fui. Sem discutir. Nem força pra bater de frente eu tinha mais. Fui atrás dela até a cozinha, o chão gelado grudando nos pés.
O relógio velho marcava quase duas da manhã. E eu tava com a cabeça rodando, o estômago virado, e vontade de deitar no chão e apagar dali mesmo.
Amanda pegou um pacote de miojo. Aquele que custa três reais e parece papel. Me sentei numa cadeira encostada na parede, abraçando os joelhos. O cheiro de tempero começou a invadir a cozinha.
Ela mexia a panela devagar, como se fosse a única coisa que conseguia controlar. Quando ficou pronto, dividiu em dois pratos e sentou do meu lado.
A gente comeu quieta. Eu não tava com fome. Mas também não queria sair dali.
Ela falou primeiro.
— Obrigada… por me defender. — A voz dela era baixa, mas firme. — Ninguém nunca fez isso por mim.
Senti minha garganta travar. Mordi o lábio, o garfo tremendo na minha mão. E aí, antes que eu segurasse, as palavras escaparam.
— Eu tô cansada, Amanda. Tão cansada. — A voz saiu falhada. — Eu odeio isso. Odeio que todo mundo ache que porque eu moro aqui, eu sou lixo. Odeio ter que fingir. Sorrir pra filha da puta que me chama de puta. Me humilhar por trocado que não paga nem o gás.
Ela não disse nada. Só me olhou com aquele olhar que parece ver tudo.
— E eu tenho medo — falei baixinho. — Medo de nunca sair daqui. De acabar igual todo mundo diz que eu vou acabar.
Ela largou o garfo. Colocou a mão quente sobre a minha.
— Você não vai — falou com tanta certeza que doeu. — Você é forte. Muito mais do que qualquer uma de nós. E vai sair daqui. Vai, sim.
Não respondi. Só abaixei os olhos. O nó na garganta afrouxou um pouco. Por alguns minutos, eu não me senti tão sozinha.
Quando levantei pra ir pro quarto, Amanda me deu um último olhar. Daqueles que falam tudo sem som nenhum.
E enquanto caminhava pelo corredor escuro, pensei:
Se esse é o preço por não abaixar a cabeça, então foda-se. Eu pago.
E pago de novo.
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