Capítulo 1 — Herleny
O convento estava em silêncio. Um silêncio que ela conhecia bem, quase como parte do seu próprio corpo. Durante trinta e um anos, aquele lugar foi o seu mundo. Ali ela aprendeu a orar, a obedecer, a esconder a dor. Mas, naquela manhã gelada, Herleny sabia: era a última vez que ouviria o tilintar dos sinos à alvorada como freira.
A mala encostada na porta era pequena, simples, como tudo que possuía. Dentro dela, poucas roupas, um caderno de receitas envelhecido e o véu que, até ontem, cobria seus cabelos castanhos e fartos, que agora caíam soltos sobre os ombros. Soltos como ela se sentia por dentro — assustada, mas viva.
Aos 8 anos, Herleny perdeu os pais e a irmã em um acidente de carro em Lisboa. Sozinha, frágil e ferida, foi entregue aos cuidados do orfanato e, pouco tempo depois, levada por freiras para o convento. A dor da perda foi selada em silêncio, e esse silêncio se tornou sua forma de existir.
O convento a ensinou sobre fé, disciplina e humildade. Mas nunca apagou os sonhos que ela cultivava às escondidas. Herleny era uma sonhadora. Desde criança, imaginava o dia em que teria uma casa cheia de risos, cheiros de comida no ar e alguém esperando por ela. Ela sonhava com uma família, com amor... e com sua própria cozinha.
Sua paixão pela culinária nasceu ali mesmo, entre panelas simples, ervas colhidas no jardim e receitas improvisadas. Criava pratos como quem escrevia poemas com as mãos. Era na cozinha que Herleny se permitia sentir. Ali, cada aroma despertava uma lembrança, cada sabor, um desejo que ela nunca ousou confessar.
Durante anos, cozinhou para as irmãs com delicadeza e criatividade. Elas diziam que sua comida era diferente — aquecia a alma. Foi com incentivo de uma das freiras mais velhas que Herleny, já adulta, começou a estudar Gastronomia por correspondência, em segredo. Em cada aula, descobria mais de si. Cada receita aprendida era um passo fora das grades invisíveis que a prendiam.
Mas agora, tudo isso era passado. Ela estava prestes a começar uma nova vida.
— Tem certeza, irmã Herleny? — perguntou Madre Clara, com a voz baixa e os olhos marejados.
Herleny respirou fundo.
— Tenho. Não sou mais irmã Herleny. Apenas... Herleny.
A madre assentiu com um leve sorriso triste. Elas se abraçaram longamente. Nenhuma palavra foi dita. Apenas a força silenciosa de duas mulheres que sabiam que o amor também mora na liberdade.
O táxi a esperava do lado de fora. Ao fechar a porta do convento, Herleny sentiu o frio cortar sua pele. Mas havia algo mais forte do que o vento: a sensação de estar finalmente vivendo.
A viagem até Mariny foi longa e silenciosa. O trem cruzava paisagens brancas, cobertas de neve, como se estivesse levando Herleny a outro mundo. Mariny era uma cidadezinha nas montanhas, onde o inverno era constante e o tempo parecia andar mais devagar. Foi lá que ela decidiu abrir seu restaurante. Um espaço que chamaria de “Mesa do Céu” — um lugar para servir comida com alma, para dar sabor às emoções que ela nunca havia expressado com palavras.
Ao chegar, foi recebida por Dona Iolanda, a senhora simpática que alugava chalés para forasteiros.
— Seja bem-vinda, querida! Espero que goste do nosso frio — disse, rindo, enquanto entregava a chave da casa.
Herleny sorriu.
— O frio... não assusta tanto quanto o desconhecido.
O chalé era pequeno, mas encantador. Tinha lareira, paredes de madeira escura e uma cozinha que, apesar de modesta, fez o coração de Herleny bater mais forte. Ali ela começaria. Ali criaria pratos que falariam de amor, saudade, cura.
No dia seguinte, acordou cedo, mesmo sem o som dos sinos. Fez chá de hortelã, acendeu a lareira e abriu o caderno de receitas. Folheou as páginas rabiscadas, cheias de anotações feitas entre rezas e lágrimas. Cada prato carregava uma história, uma lembrança: sopa de alho e azeite — o último cheiro que sentiu na cozinha da mãe; torta de frutas vermelhas — a sobremesa que serviu quando recebeu sua nota mais alta no curso de gastronomia; pão de ervas — que fazia para acalmar o coração nas noites em que sonhava com uma família.
Saiu para caminhar pela cidade. Mariny era linda. Ruas estreitas, casas com janelas floridas mesmo em meio ao gelo, moradores acolhedores. Mas o que mais chamou sua atenção foi o silêncio. Era um silêncio diferente do do convento. Não era opressivo. Era libertador.
Passou por uma construção vazia no centro da cidade, um antigo café fechado há anos. Era simples, com fachada de madeira escura e amplas janelas voltadas para a praça. Herleny parou. Colocou as mãos nos bolsos do casaco e observou o lugar com atenção.
Ali. Ali seria o Mesa do Céu.
Voltou para o chalé com os olhos brilhando. Pela primeira vez em muitos anos, sentia algo novo — entusiasmo. E medo, claro. Mas o medo não era mais um inimigo. Era apenas o sinal de que estava viva.
Durante a noite, sentada diante do fogo, escreveu a primeira frase no diário que decidiu começar:
“Hoje, deixei de fugir da vida. Pela primeira vez, sinto que estou indo ao encontro dela.”
Não sabia o que o futuro traria. Não imaginava que, dentro de alguns dias, seus passos cruzariam os de um homem de olhar frio e alma fechada. Mikhiul Valente.
Mas isso ainda estava por vir.
Por enquanto, Herleny só queria aquecer a casa, colocar as mãos na massa e preparar o primeiro prato da nova fase da sua existência.
Sua vida estava apenas começando. E tinha gosto de esperança.
Capítulo 2 — Mikhiul
O inverno em Mariny parecia não ter fim. A cidade, encravada nas montanhas nevadas, vivia em constante silêncio, como se até o tempo tivesse medo de despertar antigas lembranças.
Mikhiul Valente observava a neve cair pela janela de seu gabinete na prefeitura. Estava ali, como sempre, sozinho. Tinha a postura impecável de um homem de comando: terno escuro, cabelo penteado com perfeição e expressão dura, quase inquebrável. Mas por dentro... por dentro, ele era uma avalanche prestes a desmoronar.
Fazia sete anos desde que ele perdera tudo o que acreditava. Sete anos desde que entregara o coração a uma mulher que só o quis por conveniência. Uma aliança quebrada, uma traição dolorosa, um nome que ele se proibiu de repetir.
Depois disso, Mikhiul aprendeu a viver no automático.
— O amor não existe. — repetia para si como um mantra.
Desde então, amar se tornou uma ameaça. Confiar, um erro. E sonhar… um luxo que ele não podia mais se permitir.
O trabalho se tornou seu refúgio. Como prefeito de Mariny, era respeitado por todos, mas íntimo de ninguém. Nem mesmo do próprio irmão, o padre local. As reuniões, decisões políticas e cobranças o mantinham ocupado. E, para ele, estar ocupado era uma forma de evitar o vazio.
Naquela manhã, a secretária bateu à porta com delicadeza.
— Senhor Valente… chegou uma nova moradora à cidade. — disse ela, entregando uma ficha simples. — Ela alugou o chalé da dona Iolanda. Diz que vai abrir um restaurante.
Mikhiul arqueou a sobrancelha com leve desinteresse.
— Outro restaurante? No inverno? — murmurou, sem desviar os olhos da paisagem lá fora.
— É o que parece. O nome dela é Herleny Duarte. Ela veio de Lisboa… e, segundo comentam, viveu por anos em um convento.
Dessa vez, ele se virou devagar.
— Uma freira?
A secretária assentiu, com um sorrisinho discreto.
— Ex-freira, ao que tudo indica.
Mikhiul pegou a ficha nas mãos, lendo com os olhos semicerrados. O nome não lhe dizia nada, mas algo naquela informação lhe provocou um incômodo estranho. Não era comum alguém deixar a vida religiosa para vir abrir um restaurante numa cidadezinha esquecida entre as montanhas.
— E o que ela pretende abrir? Um buffet de missa? — ironizou, lançando a ficha sobre a mesa.
A secretária riu, desconcertada, mas ele logo voltou ao seu silêncio habitual. A conversa morreu ali.
No entanto, a imagem daquela mulher — uma ex-freira, vinda de tão longe, decidida a começar do zero em pleno inverno — não saiu mais da cabeça dele. Não que estivesse interessado. Claro que não. Mas ele conhecia muito bem o tipo de gente que aparecia em Mariny buscando recomeço: sonhadores ingênuos ou farsantes disfarçados de boas intenções.
Mais tarde, ao sair do gabinete, Mikhiul cruzou a praça central. A neve cobria tudo de branco, e as luzes de Natal começavam a ser instaladas pelos moradores mais animados. Ele caminhava com passos firmes, como sempre, mas com o olhar distante. Estava cansado. Não do trabalho — mas da solidão disfarçada de rotina.
Passou em frente ao antigo café abandonado, um imóvel que já tinha cogitado demolir algumas vezes. Para sua surpresa, viu uma figura feminina do outro lado da vitrine, medindo o espaço com fita métrica nas mãos. Cabelos soltos, cachecol apertado no pescoço, botas surradas e uma expressão de encantamento no rosto. Era ela.
Herleny.
Ele parou por um breve instante. Não que estivesse curioso — ou ao menos era isso que tentava convencer a si mesmo. Mas havia algo naquele momento que o fez ficar imóvel: ela sorria sozinha.
Um sorriso verdadeiro. Quase infantil. Como se aquele espaço vazio fosse o castelo de seus sonhos.
Mikhiul franziu o cenho, desconcertado com sua própria reação. Estava irritado. E ele sabia: quando sentia raiva sem saber o motivo, era porque alguma parte dele estava sendo tocada onde não devia.
Atravessou a praça sem se deixar ver. Voltou para casa antes do horário de sempre, entrou no casarão gelado e silencioso onde morava sozinho, e acendeu a lareira. Olhou ao redor. Sala impecável, biblioteca em ordem, copo de uísque na mão. Tudo no lugar. Tudo... vazio.
Sentou-se e encarou o fogo.
“Por que uma mulher como ela viria parar aqui?”, pensou.
"Por que alguém largaria a segurança do hábito, da fé... para cozinhar?"
A resposta surgiu como um sussurro incômodo: talvez porque ela também estivesse tentando fugir de algo. Ou encontrar algo que faltava.
Mas ele não tinha mais espaço dentro de si para paixões, esperanças ou recomeços. O amor era uma mentira bem contada. E quem acreditava nele... acabava destroçado.
Não sabia ainda, mas o destino já havia sido lançado.
E mesmo o coração mais congelado, uma hora começa a ceder ao calor de uma presença inesperada. mas o inesperado não é aceito por Mikhail que não acreditava que o amor ainda existia nos corações mas bondosos dentro de um pequenos convento.
Capítulo 3
O céu de Mariny amanheceu limpo, com tons de azul pálido escondidos entre nuvens preguiçosas. A neve, ainda recente, repousava sobre os telhados como um cobertor fino e branco. O frio era cortante, mas Herleny se sentia estranhamente aquecida por dentro.
Vestiu o casaco grosso que havia ganhado de Dona Iolanda, prendeu o cabelo em um coque leve e calçou as botas. Aquela manhã seria diferente. Não queria apenas andar… queria sentir. Ver com os próprios olhos o lugar onde deixaria sua marca, onde realizaria o sonho que carregava desde menina: um restaurante com alma.
As ruas da cidade estavam silenciosas, com poucos moradores circulando. Alguns acenavam com gentileza, curiosos com a nova presença feminina. A pequena padaria exalava cheiro de pão fresco, e uma floricultura do outro lado da rua vendia galhos secos com fitas natalinas — tradição da região.
Herleny caminhava com passos lentos, observando as vitrines, o desenho das janelas antigas, os detalhes das portas. A cidade parecia saída de um livro. Tudo era simples, mas havia beleza em cada canto. Um charme frio, delicado, quase mágico.
Dobrou uma esquina e entrou numa rua de paralelepípedo, onde uma praça se abria, como um segredo guardado no coração de Mariny.
Parou por instinto.
Ali estava.
A praça.
Era ampla, com bancos de madeira envelhecidos, árvores altas cobertas de neve e um coreto ao centro, onde sinos pendurados dançavam ao vento. Ao redor, algumas lojas fechadas e um prédio antigo, de fachada de madeira escura, com uma vitrine ampla e delicada.
Herleny sentiu o coração bater mais forte.
Aquele lugar… era como se estivesse esperando por ela.
Aproximou-se devagar. O prédio estava desocupado. A madeira desgastada contava histórias de outros tempos, mas as janelas grandes e o teto inclinado em duas águas mostravam potencial. O local tinha personalidade, charme e silêncio. Era como ela.
Ela colou as mãos enluvadas no vidro da porta. Lá dentro, um salão amplo, com piso de madeira clara e uma escada que levava a um pequeno mezanino. A cozinha ao fundo era simples, mas com espaço suficiente para criar o que sua mente sonhadora já estava começando a visualizar.
Fechou os olhos.
Imaginou mesas com toalhas brancas e pequenos arranjos florais no centro.
Imaginou o cheiro de pão saindo do forno, o som dos talheres, o riso dos clientes.
Imaginou um prato servido com carinho. Um vinho tinto encorpado. Uma lareira acesa ao lado da janela, e neve lá fora.
Era ali.
Sem dúvida alguma.
— “Mesa do Céu.” — sussurrou para si mesma, como quem nomeia algo sagrado.
Ficou parada por vários minutos, apenas sonhando em pé, diante daquilo que agora se tornava uma missão. Estava emocionada. Aquilo não era apenas um prédio. Era o lar da sua liberdade.
Anotou o endereço em seu caderninho de capa azul, e em seguida, seguiu caminhando pelas redondezas, tentando descobrir mais sobre o espaço. Perguntou discretamente a alguns moradores se o prédio estava à venda ou para aluguel. Ninguém soube dizer ao certo, mas todos pareciam felizes com a ideia de ver o local renascer.
— Há muito tempo ninguém usa aquele café. Já foi famoso por aqui — contou uma senhora na quitanda. — Mas fechou depois de um incêndio pequeno. Desde então, ficou parado no tempo.
Herleny agradeceu com um sorriso discreto. Guardava cada informação como se fossem ingredientes raros para sua receita mais importante.
No caminho de volta, entrou numa papelaria e comprou um mapa simples da cidade. Marcou com caneta vermelha o local da praça. Depois, numa cafeteria aconchegante, sentou-se e pediu um chá de maçã com canela. Aconchegou-se perto da janela e abriu seu caderno de receitas.
Começou a rabiscar.
Escreveu:
Menu de boas-vindas — Inauguração do Mesa do Céu
• Entrada: Creme de alho assado com azeite trufado e pão de ervas.
• Prato principal: Peito de frango recheado com queijo de cabra e damascos, ao molho de vinho branco.
• Sobremesa: Torta de frutas vermelhas com chantilly fresco e toque de lavanda.
Ao lado, desenhou pequenos detalhes: copos simples, velas baixas, cortinas brancas, guardanapos dobrados com flor seca no centro. Tudo com delicadeza e identidade.
Mais do que um restaurante, Herleny queria criar um refúgio. Um espaço onde as pessoas pudessem se sentir amadas, acolhidas, alimentadas em todos os sentidos.
Já era final de tarde quando voltou ao chalé. Estava exausta, mas animada. Acendeu a lareira, preparou uma sopa leve com legumes e anotou mais ideias no diário.
“Hoje, encontrei o lugar onde meu sonho vai morar. Ele estava ali, quieto, esperando por mim. Assim como eu estive a vida inteira esperando por ele.”
Antes de dormir, fez uma oração curta. Não mais pedindo forças para suportar o que faltava, mas agradecendo pela coragem de começar.
No silêncio do quarto aquecido, Herleny dormiu com um leve sorriso nos lábios. Pela primeira vez em muitos anos, não sonhou com o passado.
Sonhou com o futuro.
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