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Dr. G

capítulo 1

O plantão das segundas-feiras começava sempre do mesmo jeito: Gabriel passava o crachá no acesso eletrônico, pegava o café mais forte da máquina velha do térreo e subia os três lances de escada que davam direto no setor da cardiologia.

Fazia isso há três anos. Religiosamente. Como se aquele caminho específico aumentasse, de algum modo, as chances de esbarrar com ele.

Dr. Miguel Antunes.

Cardiologista-chefe do segundo andar. Discreto, técnico, distante.

Gabriel já tinha desistido de contar quantas vezes o vira passar pelo corredor sem nem um olhar. Quantas vezes segurara a vontade de puxar conversa — e só recebeu de volta um “bom dia” apressado, ou nem isso.

Mas bastava vê-lo concentrado num exame, ajeitando os óculos no meio da ponte do nariz, para que tudo dentro de Gabriel desmoronasse de novo.

E ninguém sabia.

Ninguém sabia que, toda vez que Miguel o chamava de "Gabriel" e não de "doutor", o coração dele acelerava mais do que qualquer eletrocardiograma que já examinou.

Ninguém sabia que ele sempre escolhia o mesmo turno só pra estar no mesmo andar.

Ninguém sabia que o silêncio que guardava… doía mais do que qualquer dor física.

— Bom dia, doutor — disse a enfermeira Paula, enquanto ele digitava no prontuário eletrônico.

— Bom dia — respondeu ele, distraído, os olhos já procurando — sem querer admitir — se Miguel estava por perto.

Mas naquela manhã, o hospital parecia mais frio.

Mais seco.

Mais igual.

Até que o elevador se abriu, e ali estava ele.

Miguel, com a pasta preta de sempre embaixo do braço, os passos firmes e o jaleco alinhado como se nunca tivesse suado num plantão. Olhou em volta com pressa… e passou direto.

Gabriel forçou um sorriso.

— Dr. Miguel, bom dia.

Miguel parou, virou só um pouco o rosto.

— Ah… bom dia, Gabriel.

E sumiu pelo corredor.

---

Horas depois, estavam os dois na mesma sala, analisando um laudo.

Gabriel tentava controlar a respiração. Miguel falava sobre o paciente, mas Gabriel mal ouvia. Só observava a curva do queixo, a maneira como os olhos dele se apertavam quando lia algo com atenção.

— Você está distraído — disse Miguel, sem levantar os olhos.

— Desculpa. É que… — e a frase veio, contra sua vontade — …eu não dormi muito bem.

Miguel assentiu, seco.

— Foco no caso. Sentimento não ajuda a salvar paciente.

E voltou ao prontuário.

Gabriel abaixou os olhos. Engoliu a dor.

Era sempre assim.

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No fim do dia, o hospital esvaziava aos poucos. Ele ficou mais um pouco na sala de descanso, sem vontade de ir pra casa.

Pegou o celular. Nenhuma mensagem da família.

Nenhuma pergunta. Nenhuma saudade.

Havia um grupo de WhatsApp com o nome “Família unida”, mas Gabriel nunca era mencionado.

Só recebia texto em datas importantes, junto com algum versículo de Bíblia e uma foto da irmã com os filhos.

Ele suspirou.

— Você ainda tá aqui? — perguntou Paula, aparecendo com um café.

— Só estava pensando.

Ela se sentou ao lado.

— Ainda o Miguel?

Ele olhou de lado, surpreso.

— Eu… como você…

— Gabriel, só ele não percebe. Ou finge. Mas você muda o jeito de andar quando ele entra.

— E você não acha ridículo?

— Eu acho bonito.

Triste.

Mas bonito.

Ele sorriu sem graça.

— Só queria ser visto, sabe? Uma vez. Como sou. Não como me veem, não como esperam.

Ela apertou sua mão.

— Talvez ele te veja. Só ainda não sabe o que tá vendo.

---

Naquela noite, Gabriel chegou em casa e sentou no sofá sem acender nenhuma luz.

Pensou em Miguel. Pensou na mãe. Pensou em como passava os dias cuidando dos outros… e ninguém parecia se importar com o que doía nele.

Tirou do bolso um papel que nunca teve coragem de entregar.

Uma carta.

Sem data.

Sem nome.

Mas com tudo que ele nunca disse.

Leu uma última vez.

Depois, a rasgou em silêncio.

E sorriu amargo.

— Ninguém precisa saber, né?

Mas o peito, ah… o peito doía.

Como se precisasse sim.

Como se gritasse, mesmo em silêncio.

capítulo 2

A primeira vez que Gabriel deixou de comer, ninguém notou.

Foi durante o almoço no refeitório do hospital. O prato cheio, a colher parada. Na frente dele, os colegas conversavam sobre um caso grave da manhã — mas ele só conseguia olhar para a cadeira vazia no canto da sala.

Era onde Miguel sempre sentava.

Mas naquele dia, Miguel nem apareceu.

Gabriel empurrou o arroz com o garfo e fingiu um sorriso quando a enfermeira Paula perguntou se estava tudo bem.

— Só cansado, como sempre.

Mentira número um.

Mas quem quer saber da verdade de um médico, quando se espera que ele esteja sempre forte?

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À noite, chegou em casa e se jogou no sofá sem tirar o jaleco.

Luz apagada. Televisão desligada.

Olhou para o teto por longos minutos. Não pensava em nada.

Ou talvez pensasse demais.

Levantar-se parecia exigir um tipo de força que ele não tinha mais.

E o pior… ninguém ligaria se ele não aparecesse no grupo da família.

Ninguém, exceto André.

O telefone vibrou.

> ANDRÉ: “Tá tudo certo por aí?”

GABRIEL: “Sim, só cansado.”

ANDRÉ: “Você fala isso há meses.”

GABRIEL: “É a vida de plantão.”

ANDRÉ: “Amanhã vou aí. Sem discussão.”

Gabriel sorriu, pela primeira vez naquele dia.

Só com o canto da boca.

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André chegou no fim da tarde, com duas sacolas: comida, cobertor novo e um daqueles bolos que a mãe costumava fazer — antes de fingir que Gabriel não existia.

— Você emagreceu — foi a primeira coisa que disse.

— Plantão puxado.

André o encarou em silêncio.

— Senta aqui — disse, apontando para o sofá. — Agora fala.

— Falar o quê?

— Você tá triste, Gabriel. Mas não é só cansaço. Eu te conheço desde que você tinha cinco anos e dormia abraçado no meu braço. Você nunca soube fingir.

Gabriel tentou rir. Fracassou.

— Eu só… tô tentando.

— Tentando o quê?

— Ser o suficiente.

No hospital. Pra mim mesmo. Pra uma família que só me menciona quando é pra perguntar por que eu ainda tô sozinho. Ou quando querem que eu finja que não amo quem amo.

André ficou quieto. Depois disse:

— E quem você ama?

Gabriel hesitou. Então disse:

— Um colega. Miguel.

André respirou fundo.

— Ele sabe?

— Não. Acho que não. Mas mesmo que soubesse… ele não olha pra mim assim.

André assentiu.

— E você tá vivendo esse amor sozinho há quanto tempo?

— Três anos.

— E sentindo que não tem ninguém com você, né?

— Só você.

André se aproximou, passou o braço pelos ombros do irmão.

— Eu não vou te soltar. Mesmo quando o mundo todo virar as costas.

Gabriel, pela primeira vez em muito tempo, chorou.

Não com desespero. Mas com exaustão.

E André ficou ali, calado. Sem dar conselhos. Sem interromper.

Apenas ficou.

---

Na manhã seguinte, Gabriel não quis levantar.

O corpo pesado, como se tivesse areia nos ossos.

Ligou no hospital e pediu folga. Foi a primeira vez em três anos que fez isso.

Não porque queria descansar.

Mas porque não conseguia fingir.

André já estava de pé, fazendo café.

— Hoje você descansa. E amanhã também, se for preciso.

Gabriel sentou à mesa. O cheiro do café o fazia lembrar de dias bons — aqueles que não voltam mais.

— Será que um dia… eu vou ser suficiente pra alguém?

André olhou nos olhos dele.

— Você já é. A questão é: alguém vai ter coragem de te enxergar?

---

Naquela noite, Miguel chegou no hospital, atrasado.

Comentaram que Gabriel não aparecera.

E ele, pela primeira vez, parou.

Ficou alguns segundos olhando a cadeira vazia onde Gabriel sempre se sentava.

E, por um instante… pareceu incomodado.

Mas logo voltou ao trabalho.

Frio. Rígido.

Como sempre.

Ou quase.

capítulo 3

Dois dias depois, Gabriel voltou ao hospital.

Mesmo horário. Mesmo café ruim. Mesmo jaleco bem passado.

Mas alguma coisa em sua postura havia mudado. Não nos gestos — ainda gentis, ainda profissionais. Mas no olhar. Um cansaço escuro espreitava por trás das pálpebras. Como se ele tivesse parado de esperar alguma coisa. Como se tivesse aprendido a se desligar sem pedir permissão.

— Tudo bem, doutor? — perguntou Paula, entregando-lhe uma prancheta.

— Tudo sim — mentiu, como sempre.

Subiu para o segundo andar. Passou pelos corredores. Viu Miguel de longe, analisando exames com os residentes mais novos.

Não parou.

Não tentou puxar conversa.

Não sorriu.

Pela primeira vez, Gabriel apenas… passou.

---

Miguel notou.

Notou o silêncio.

A falta daquele “bom dia” murmurando atrás dele.

A ausência daquele olhar que sempre o seguiu sem cobrar nada.

Ficou olhando Gabriel se afastar.

E sentiu…

Um incômodo estranho. Como se o ar tivesse esfriado de repente.

— Doutor? — chamou uma residente, sem resposta.

— Hã?

— O senhor tá bem?

Miguel desviou os olhos e resmungou:

— Tô. Continua o caso.

---

Na sala dos médicos, Gabriel sentou para almoçar. O prato à frente, mas sem fome. Cutucava o feijão com o garfo, em silêncio.

Ao lado, Paula observava.

— Você voltou, mas ainda não tá aqui, né?

Ele deu de ombros.

— O mundo não para.

— Mas você pode parar.

— Não posso. Se parar, desabo.

Ela segurou sua mão de leve, discretamente.

— Se um dia quiser falar... ou só sentar do meu lado e chorar... tô aqui.

Gabriel sorriu fraco.

— Obrigado. Mas não posso me dar ao luxo de sentir.

— Pode sim. Só não quer.

---

No fim do expediente, Miguel o encontrou por acaso na sala de exames. Gabriel revisava um laudo sozinho, absorto, os olhos vermelhos de quem não dormia direito há dias.

— Gabriel.

Ele ergueu o olhar, sem expectativa.

— Doutor.

— Soube que você faltou. Tudo certo?

Gabriel hesitou um segundo. Depois assentiu.

— Sim. Era só cansaço.

Miguel apertou os lábios. Quase disse algo. Mas não disse.

Apenas continuou:

— Seu rendimento não caiu, mas… você tá diferente.

— Não, doutor. Só mais focado.

— Sei.

O silêncio entre eles se estendeu.

Então, por impulso, Miguel perguntou:

— Algum problema pessoal?

Gabriel o encarou. Havia tanta coisa que poderia dizer. Tanta dor.

Mas escolheu o caminho de sempre:

— Nada que importe.

Miguel não soube o que responder. Apenas assentiu e saiu.

Mas, ao virar o corredor, parou. Encostou-se na parede por alguns segundos. Pensou em Gabriel.

E pela primeira vez em muito tempo… sentiu um peso no peito que não conseguia explicar.

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Naquela noite, Gabriel chegou em casa e foi direto para o banho.

Ficou sob a água quente até o corpo doer.

Fechou os olhos.

E desejou não sentir tanto.

Mas sabia que no dia seguinte… voltaria ao hospital com o mesmo sorriso falso.

Porque ser médico não permitia falhar.

E ser ele… nunca permitiu ser fraco.

Mas, pela primeira vez… alguém tinha percebido.

E isso o assustava.

O sábado amanheceu nublado, como se o céu adivinhasse o que estava por vir.

Gabriel estava em casa, tentando descansar, deitado no sofá com o cobertor até o peito e um livro aberto que ele não lia de verdade. O silêncio era tudo o que ele queria.

Até ouvir a campainha.

Três toques rápidos. Depois, mais dois. Um padrão antigo que ele conhecia bem.

Sentou devagar. Um arrepio cruzou sua espinha.

Quando abriu a porta, o mundo girou um pouco.

— Mãe. Pai.

A mãe sorriu daquele jeito que mais parecia um pedido disfarçado.

— Achamos que seria bom passar pra ver como você está. Não atendia mais nossas mensagens no grupo.

— Vocês nunca mandaram nada direto pra mim.

O pai ajeitou a gola do casaco, como se quisesse não estar ali.

— Podemos entrar?

Gabriel abriu espaço, ainda sem saber por quê.

---

A sala ficou menor com a presença deles.

A mãe olhava em volta como se procurasse algo fora do lugar. O pai sentou como quem esperava notícias desagradáveis.

— Você tá tão magro — disse ela.

— Trabalhando muito, como sempre.

— E… tem saído? Visto alguém?

Gabriel segurou a respiração.

— O que vocês querem de verdade?

A mãe tentou parecer serena.

— Queremos entender por que você se afastou. Você quase não aparece mais nos encontros, não fala com sua irmã…

— Porque toda vez que eu vou, eu ouço piadas. Olhares atravessados. Silêncios.

— Isso é coisa da sua cabeça — disse o pai, direto.

Gabriel sentiu a garganta fechar.

— Não é. Eu só não sou o que vocês queriam. E vocês não sabem o que fazer com isso.

— Você escolheu esse caminho — disse a mãe, com tristeza performada.

— Eu escolhi ser honesto. Não queria viver mentindo pra vocês. Mas parece que quando eu contei, deixei de ser filho pra virar um constrangimento.

A mãe baixou os olhos. O pai cruzou os braços.

— Isso não é fácil pra nós também — ele disse. — A gente foi criado de outro jeito.

— Pois eu tô cansado de ser educado com quem não me vê. Cansado de sorrir quando tudo o que eu queria era um abraço. Um “eu te amo” que não viesse com condição.

A mãe tentou tocar seu braço. Ele recuou.

— Vocês vieram aqui hoje por culpa. Não por amor.

Silêncio.

— Podem ficar o tempo que quiserem. Mas eu não vou mais me calar pra ser aceito.

Eles não disseram mais nada.

Só ficaram ali. Como móveis fora do lugar.

---

Enquanto isso, no hospital, Miguel passava os olhos por um prontuário quando ouviu Paula comentar:

— Gabriel tá de folga de novo?

— Pediu o fim de semana. Família apareceu.

Miguel fechou o prontuário devagar.

— Família?

— Os pais, acho. Não costumam visitar, né?

Miguel ficou em silêncio. Por alguma razão, isso o incomodou.

Mais do que deveria.

---

Naquela noite, os pais de Gabriel foram embora cedo.

Sem abraços.

Sem promessas.

Gabriel os acompanhou até a porta, segurando a raiva e a tristeza como se fossem febre.

Quando fechou a porta atrás deles, respirou fundo.

O peito doía.

Mas, pela primeira vez em muito tempo…

Ele não pediu desculpa por existir.

E, mesmo sangrando por dentro, isso era alguma forma de vitória.

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