Antes de tudo, deixa eu me apresentar.
Meu nome é Roberta. Tenho 32 anos, sou ruiva
alta, com o cabelo liso e escorrido que vive solto ou preso num coque bagunçado quando tô na correria do trabalho. Tenho algumas tatuagens — cada uma com uma história que só eu e Deus sabemos direito. E sou técnica de enfermagem.
Sim, daquelas que limpam ferida, tomam bronca de médico, viram a noite em plantão e ainda escutam “obrigado” com um sorriso cansado.
Mas quer saber? Eu amo o que faço.
Amo cuidar de gente.
Amo olhar nos olhos de alguém com dor e dizer: "Calma, eu tô aqui."
Nasci e cresci na Zona Leste de São Paulo. Fui criada por uma mãe guerreira, daquelas que fazem milagre com arroz, feijão e fé. Meu pai? Foi embora quando eu ainda era pequena. Cresci ouvindo o barulho da cidade misturado com música de rádio, panela de pressão e vizinhos gritando novela pela janela.
Minha infância foi simples, mas cheia de calor.
Fui a primeira da família a terminar o ensino médio, e a primeira a fazer um curso técnico. Eu me lembro do meu primeiro estágio como se fosse ontem: mãos tremendo, coração disparado, mas o olhar fixo na paciente deitada na maca. Ali, eu tive certeza — era aquilo. Era cuidar. Era salvar. Era acolher.
Sempre fui de sentir demais. Me apegar demais. E talvez seja por isso que algumas pessoas se aproveitaram disso.
Mas isso…
Isso a gente conversa mais pra frente.
Hoje, eu tô tentando me reconstruir.
Não do zero — porque o que eu vivi também me moldou — mas de um ponto onde eu não sinto mais medo ao abrir a porta de casa.
Tô aprendendo a ser mulher de novo. Sozinha. Firme.
E talvez, no meio disso tudo, eu encontre alguma paz.
Ou quem sabe um novo amor.
Mas, por agora, o foco é um só: viver.
Por mim.
Então, se você quiser saber como essa história toda vai se desenrolar…
Fica comigo.
Porque ela tá só começando.
Fernando —
Meu nome é Fernando.
Tenho 37 anos, sou policial civil em São Paulo. Treze anos de farda, arma na cintura e olho atento pra quem precisa — ou pra quem me paga melhor.
A lei? Eu conheço. Mas quem decide se ela vale ou não... sou eu.
Faço o que for preciso pra ganhar a mais. Fechar os olhos pro transporte de uma carga? Faço.
Dar cobertura pra algum cara do tráfico que tem a mão boa pro dinheiro? Faço também.
Sou o cara que resolve problema. Que sabe onde pisar. Que tem amigos nos lugares certos — e segredos nos errados.
E no meio disso tudo, existe ela.
Roberta.
A mulher mais teimosa, mais difícil, mais orgulhosa que eu já conheci.
Linda de um jeito que dá raiva. Morena, alta, cabelo escorrido, cheia de tatuagem. Me dava nos nervos só de existir daquele jeito… livre.
Ela nunca foi submissa. Nunca abaixou a cabeça. Sempre teve opinião, sempre quis fazer tudo do jeito dela. E isso me enlouquecia.
Mas foi isso que me prendeu também.
Quando ela engravidou, eu pensei que tudo ia mudar. Que finalmente ia ter uma família de verdade.
Mas ela... ela não soube descansar. Queria trabalhar até o último segundo.
Teimosa.
E aí a criança se foi. E com ela, eu também fui.
Ninguém fala disso, né?
Da dor do homem. Da revolta.
Eu fiquei vazio. Bebi, sumi, me envolvi com outras mulheres porque era mais fácil do que olhar pra ela e lembrar do que a gente perdeu.
Mas ela continuava lá. Forte. Rígida. Como se não tivesse quebrada por dentro.
E isso me deixava louco.
Sim, eu bati nela.
Não me orgulho, mas também não nego.
Porque a dor dentro de mim precisava sair de algum jeito — e eu descarreguei nela. Porque ela é minha. Porque ninguém mais entende o que a gente passou.
E ninguém vai amar ela como eu amo.
Pode fugir, pode mudar de cidade, de nome, de cabelo.
Ela pode até tentar recomeçar...
Mas Roberta é minha.
Minha mulher, minha história, minha dor.
E ninguém tira ela de mim.
Pesadelo —
Me chamam de Pesadelo.
Mas meu nome é Bruno. Só quem me colocou tem coragem de me chamar assim.
Sou dono da rocinha
Não porque comprei, não porque pedi — herdei. Meu pai reinou nesse morro por mais de vinte anos. Quando a idade pesou e minha mãe resolveu arrastar ele pro exterior, ele olhou nos meus olhos e disse:
“Agora é contigo, moleque. Segura ou cai.”
Eu segurei.
Desde então, ninguém sobe ou desce sem meu aval.
Ninguém vende, ninguém compra, ninguém respira sem eu saber.
Eu sou o começo e o fim de tudo que acontece aqui.
Sou filho único. Cresci ouvindo o som de tiro e o riso dos homens que mandavam em tudo. Aprendi cedo que sentimento é fraqueza. Que confiar em alguém é pedir pra ser traído. Que amar… é a forma mais bonita de se destruir.
Por isso eu não amo ninguém.
Mulher, pra mim, é distração de uma noite, se muito.
Gosto de corpo bonito, olhar atrevido, mas depois que acaba… cada uma pro seu canto.
Relacionamento? Isso é pra quem pode ser fraco. Eu não posso.
Já vi muito homem bom cair por causa de saia.
Já vi o melhor soldado do morro morrer porque quis proteger mulher e filho.
Aqui, quem sente, sangra. E quem sangra... morre.
Por isso eu mantenho distância.
Frio, calculista, como dizem.
E se alguém me perguntar se me arrependo de alguma coisa...
Não.
A vida me fez assim.
E quem não aguenta, que saia do caminho.
foto do bruno ( pesadelo )
Felipe
Meu nome é Felipe, mas aqui no morro ninguém me chama assim.
Pra geral, sou Fe.
Braço direito do Pesadelo. Melhor amigo. Sub do morro.
Se ele manda, eu executo. Se ele cai, eu levanto.
E ele faria o mesmo por mim.
Essa irmandade não começou agora. Vem de berço.
Meu pai foi sub do pai do Bruno por anos. Levaram o morro nas costas juntos, com sangue, suor e sabedoria. Quando os velhos resolveram largar o trono, ficou decidido sem nem precisar falar muito: os filhos assumem.
A gente cresceu nessa quebrada. Jogando bola nos becos, ouvindo tiro como quem ouve fogos de artifício.
Aprendemos a lei da rua antes da de dentro da escola.
E acima de tudo: aprendemos que lealdade é tudo.
Aqui, o que é dele é meu. O que é meu é dele. E quem mexe com um, enfrenta os dois.
Mas tem uma parada que me diferencia do Bruno.
Ele não acredita em amor. Eu acredito.
E eu encontrei o meu.
Clarisse.
Parceira pra tudo. Linda que só ela, mas é muito mais do que isso.
Ela é ligeira, fiel, me conhece no olhar.
Fecha comigo no corre, fecha em casa, fecha na paz e na guerra.
Ela não precisa de aliança pra ser minha mulher — ela já é.
A galera até zoa, diz que eu amoleci, que tô querendo formar família.
Talvez esteja mesmo.
Porque, com ela do lado, eu vejo um futuro diferente.
Um onde eu posso viver e não só sobreviver.
Mas não se engana:
Amor nenhum me faz esquecer onde eu tô, o que eu sou e o que eu tenho que proteger.
Levo o morro com a mesma garra de quem herdou uma coroa feita de concreto, pólvora e respeito.
E quem quiser testar…
Vai descobrir que o nome é Felipe, mas o sangue é do morro.
Foto do fe ( Felipe)
Clarisse —
Meu nome é Clarisse.
Sou nascida e criada na rocinha
Cria mesmo. Daquelas que aprenderam a correr antes de andar, e a se impor antes de ser engolida.
Nunca precisei de homem pra me proteger, mas hoje tenho um que protege porque quer, não porque eu preciso.
Tô com o Felipe, o sub.
E antes que alguém pense que tô com ele por status... errou feio.
Tô com ele porque ele é homem de verdade.
Parceiro. Presente. Leal.
E porque juntos, a gente é mais forte.
Ele vem com as armas dele, eu com as minhas. E nenhuma é de brinquedo.
Aqui no morro eu sou respeitada. Não é porque sou a mulher do sub, não.
É porque sou Clarisse. Porque nunca abaixei a cabeça pra ninguém.
Já fechei com as meninas no baile, já fechei com os cria no dia do aperto.
Se tiver que ir pra cima, eu vou.
Mas também sou a que ouve, a que acolhe, a que segura a onda quando tá tudo desabando.
Tô sempre atenta. Quem entra, quem sai, quem fala, quem cala.
O morro é vivo, e eu conheço cada batida.
Com o Felipe eu quero mais, sim. Quero casa cheia, barulho de criança, domingo com feijoada e chinelo no pé.
Mas até lá, a gente segura a responsa.
Porque mulher de homem forte não pode ser fraca.
E eu sou cria.
Sou força.
Sou Clarisse.
foto da clarisse
Eu fui embora porque fiquei com medo de morrer ali dentro
Você já teve medo de acordar todos os dias ao lado de alguém que você amou?
Medo de respirar, medo de falar alguma coisa errada, medo de simplesmente existir?
Eu tive.
E quer saber? Eu fugi.
Fugi de São Paulo, da minha casa, dos meus vizinhos que fingiam não ouvir os gritos.
Fugi da lembrança do meu bebê, que eu nunca segurei nos braços.
Fugi de Fernando.
Do homem que eu achei que fosse meu amor, mas virou meu pesadelo.
Agora tô aqui.
Dentro de um carro qualquer, subindo um morro que eu só tinha visto na televisão.
rocinha! Rio de Janeiro. Um mundo completamente novo, desconhecido, e — pra ser sincera — um pouco assustador.
"Vai dar merda", dizia a voz da minha mãe, lá no fundo da minha cabeça.
Mas sabe? Ficar também dava.
— Tá indo trabalhar aí no alto? — perguntou o motorista, jogando o olho pra mim pelo retrovisor.
— Tô, sim. Começo amanhã no postinho.
Ele soltou um risinho de canto de boca.
— Coragem. Mas vai se dar bem. O morro assusta quem não conhece. mais depois virar seu lar
Lar.
Engraçado como essa palavra ficou distante de mim.
Nos últimos meses, eu só soube o que era sobreviver.
Acordar e fingir que tava tudo bem.
Passar maquiagem pra esconder os hematomas.
Inventar desculpas pras amigas.
Sorrir. Sempre sorrir. Porque mulher tem que aguentar, né?
Mentira.
A gente não tem que aguentar nada.
Agora tô aqui. Com medo, sim.
Mas também com um tipo de esperança que eu achei que tinha morrido em mim.
Aqui, nesse lugar que dizem ser perigoso, violento, sujo...
Eu encontrei gente de verdade.
Gente que me olhou nos olhos e viu mais do que as minhas cicatrizes.
Gente que me chamou de irmã, de vizinha, de amiga — sem nem saber meu nome direito.
Não sei como essa história vai terminar.
Talvez o passado me ache. Talvez eu me apaixone de novo.
Talvez eu descubra que a mulher que eu era ficou lá atrás...
E que a que tá nascendo agora, aqui nesse morro, é mais forte do que eu imaginava.
Mas antes de qualquer coisa... deixa eu te contar tudo desde o começo.
Porque essa história não é só minha.
É de toda mulher que já amou errado.
E que um dia — mesmo tremendo, mesmo ferida — decidiu ir embora.
Cheguei no Rio num sábado de manhã, com duas malas e o coração apertado.
O ônibus ainda nem tinha parado na rodoviária e meu peito já tava embrulhado. A cabeça rodava entre medo e alívio, e eu só pensava: "É isso, Roberta. Agora é você por você."
Desci, peguei o celular e mandei mensagem pra mulher do posto, a Dona Zefa, que tinha me indicado a vaga. Ela era amiga de uma técnica que trabalhou comigo em São Paulo.
Trocando favores e salvando vidas desde sempre, né?
> "Oi, Zefa. Cheguei. Tô pegando um Uber pro ponto de encontro que você falou."
A corrida até a rocinha foi silenciosa. O motorista até tentou puxar assunto, mas eu não tava com cabeça pra conversa. Só olhava a paisagem passando pela janela, tentando entender como que eu, uma mulher que já tinha perdido tanto, ainda encontrava força pra recomeçar.
O carro parou num lugar cheio de gente indo e vindo, vendedor de mate, criançada correndo descalça, som alto vindo de alguma laje próxima. O calor batia forte, mas era outro tipo de calor também…
Parecia mais... humano. Mais quente por dentro, sabe?
Aí veio o mototáxi que a Zefa mandou. O rapaz era magrelo, simpático, com o boné torto e um sorriso que faltava dois dentes.
— É a enfermeira nova, né? — ele falou já rindo. — Pode subir, princesa. No morro todo mundo se conhece.
Não discuti. Subi. E a cada curva da moto, meu estômago subia junto.
As vielas eram estreitas, coloridas, vivas. Eu tentava prestar atenção em tudo, absorver aquele novo mundo que ia me acolher... ou me engolir.
O posto era no alto. Uma casinha de paredes desbotadas, com uma placa torta que dizia "Saúde da Família – Unidade rocinha".
Tinha uma senhora sentada na mureta, cabelo preso num lenço florido e um olhar que atravessava a alma.
— Você que é a Roberta? — ela perguntou antes mesmo de eu responder.
Assenti com a cabeça.
— Sou a Zefa. Anda, minha filha. Entra. Tá na hora de botar a mão na massa.
Respirei fundo e entrei.
Era pequeno. Duas salas, um armário com poucos insumos, uma pia barulhenta, uma maca manchada. Mas o que me chamou atenção foi o quadro na parede com várias fotos. Crianças, idosos, gente sorrindo com o jaleco branco.
Ali, entendi que o posto era mais que um lugar pra curar corpo. Era um pedaço do coração da comunidade.
— Aqui o buraco é mais embaixo, minha filha — disse Zefa, me entregando um crachá com meu nome escrito de caneta. — Tem gente aqui que só tem a gente. Então se for pra fazer de qualquer jeito, melhor nem ficar.
Olhei pra ela com firmeza.
— Tô aqui pra somar. Vim com o que tenho. E o que tenho… é vontade de fazer diferente.
Zefa me encarou por alguns segundos. Depois sorriu de canto.
— Então vamos ver do que você é feita, Roberta.
E foi assim que começou.
No meio de um morro desconhecido, com cheiro de café requentado, calor batendo na nuca e um coração cheio de cicatriz, eu comecei a me reconstruir.
Mas o que eu ainda não sabia…
É que meu passado não ia me deixar em paz tão fácil.
E que meu futuro… tava prestes a trombar de frente com um homem que só atendia por um nome:
Pesadelo.
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