A manhã ainda era fria quando Clara desceu do ônibus na pequena Vila dos Ipês. O vento soprava leve, trazendo o cheiro da terra molhada e das flores recém-abertas. Com a mala numa mão e a expressão de quem carregava mais peso do que apenas roupas, ela olhou ao redor, tentando reconhecer o lugar que só conhecia por fotos antigas.
Era uma vila simples, cercada por montanhas silenciosas, com uma pracinha no centro e uma capela antiga, que parecia resistir ao tempo. Clara não sabia o que esperar daquele recomeço, apenas sentia que precisava de um. Depois de tudo que vivera, qualquer lugar longe da cidade grande era um alívio.
Dona Alzira, a dona da pousada e figura querida por todos ali, veio recebê-la com um sorriso acolhedor.
— Você só pode ser a Clara Monteiro! Seja muito bem-vinda, minha filha.
Clara retribuiu com um sorriso discreto. Sentia-se exausta, mas havia algo naquele lugar que a fazia respirar diferente. Era como se o tempo ali tivesse outra velocidade. Caminhar pelas ruas de pedra, ouvir o silêncio quebrado apenas pelo canto dos pássaros e o som distante de uma enxada trabalhando a terra — tudo isso parecia tirado de um sonho calmo.
A pousada era charmosa, com cheiro de bolo recém-saído do forno e móveis de madeira antiga. No quarto onde ficaria, Clara viu flores sobre a mesa e um cobertor de crochê cuidadosamente estendido na cama. Pela janela, dava para ver o vale coberto por ipês floridos.
Ao final da manhã, Clara conheceu a capela onde começaria seu trabalho de restauração. O altar estava gasto pelo tempo, os vitrais opacos e parte das pinturas cobertas de poeira e rachaduras. Mas ali, bem no centro, havia uma imagem antiga, quase apagada, que chamou sua atenção de imediato. Era como se algo naquela pintura a chamasse, como se a estivesse esperando.
Enquanto explorava o lugar com o olhar curioso de quem busca mais do que respostas, ouviu passos pesados atrás de si. Um homem alto, de feições duras e olhar reservado, entrou com um feixe de lenha nos braços. Usava camisa de flanela, botas de couro e um chapéu surrado. Era Miguel, o homem que todos na vila pareciam respeitar, mas pouco sabiam sobre ele.
Clara se apresentou com um sorriso tímido, mas ele apenas assentiu com a cabeça e continuou seu trabalho em silêncio. Não foi rude, mas tampouco foi acolhedor. Parecia um homem acostumado a guardar palavras, como se o passado tivesse ensinado a não confiar tão facilmente.
À noite, Clara mal conseguiu dormir. Sentou-se na cama, abriu seu caderno de esboços e começou a desenhar. A capela, os vitrais, os detalhes da pintura antiga… E, sem perceber, desenhou também o rosto de Miguel, com o mesmo olhar misterioso que a havia encarado mais cedo. Aquilo a incomodou. Não sabia por que havia feito isso, mas algo naquele homem parecia grudar na memória como uma dúvida mal resolvida.
Ela fechou o caderno e olhou pela janela. A vila dormia sob o brilho pálido da lua, e o ipê amarelo no alto da colina parecia observá-la, como se quisesse lhe contar um segredo.
Naquela noite, Clara entendeu que aquele lugar não seria apenas um refúgio. Seria também um caminho. Um caminho que, de alguma forma, a havia encontrado.
O sol ainda subia timidamente por entre as montanhas quando Clara acordou com o canto dos pássaros. A luz suave que atravessava a cortina branca do quarto dava ao ambiente um ar de paz, mas ela ainda sentia o peito apertado, como se o passado estivesse deitado ao lado dela, silencioso, mas presente.
Ela vestiu sua roupa de trabalho — jeans confortáveis, camiseta branca e um lenço preso no cabelo — e desceu para o café da manhã. Dona Alzira a esperava com pão de queijo quentinho, bolo de fubá e um bule de café forte, feito no coador de pano.
— Dormiu bem, minha filha? — perguntou com a voz sempre doce.
— Dormi... o suficiente — respondeu Clara, sem entrar em detalhes.
Dona Alzira respeitou o silêncio. Era sábia o bastante para saber que certas dores não se apressam em ir embora. Apenas ofereceu mais um pedaço de bolo e um sorriso silencioso.
Mais tarde, Clara seguiu sozinha para a capela, levando seu estojo de pincéis e solventes. Ao empurrar a porta de madeira, sentiu novamente aquele cheiro antigo de madeira, incenso e umidade. A imagem no altar a atraía como se quisesse dizer algo que faltava ser descoberto.
Ao se aproximar, notou algo estranho atrás de uma camada escura de verniz. Uma sombra pintada, quase invisível, escondia um símbolo que ela não conseguia identificar. Tocou com cuidado a superfície e sentiu uma rachadura fina por trás da madeira. Era como se algo tivesse sido encoberto propositalmente.
Enquanto analisava a peça, escutou passos atrás de si. Era Miguel, com a camisa suada e uma caixa de ferramentas na mão. Ele não falou nada. Apenas passou por ela, ajeitou algumas coisas no canto da capela e começou a consertar o suporte de uma das janelas.
Clara respirou fundo, tentando quebrar o gelo.
— Essa pintura aqui... parece ter sido alterada em algum momento. É comum, mas sempre me intriga. Quem altera uma arte sacra, geralmente, tem um bom motivo.
Miguel continuou trabalhando, como se não tivesse ouvido. Mas depois de alguns minutos, falou sem olhar pra ela:
— Nem tudo que é sagrado está limpo.
A resposta pegou Clara de surpresa. Ela parou o que estava fazendo e encarou o perfil dele. A expressão era neutra, mas o tom de voz carregava um peso.
— E o que isso quer dizer? — perguntou.
Miguel deu de ombros.
— Só estou dizendo que, às vezes, o que a gente acha que é luz... também pode ter sombras.
Ele então saiu, deixando Clara sozinha na capela com suas dúvidas. As palavras dele ecoaram por um tempo dentro dela. Havia algo estranho naquele homem. Algo que despertava tanto desconfiança quanto curiosidade.
Mais tarde, ao voltar para a pousada, Clara encontrou uma carta em cima da cama. O envelope era simples, sem remetente. Dentro, apenas um pequeno bilhete, com letras miúdas e traços trêmulos:
“Alguns segredos não foram feitos para serem descobertos.”
O coração de Clara acelerou. Aquilo não era uma coincidência. Mal havia chegado à vila e já sentia que estava sendo observada.
Guardou o bilhete na gaveta e olhou para o caderno de esboços. Lá estava o rosto de Miguel, desenhado na noite anterior. Era como se tudo ao seu redor — o homem calado, a imagem antiga, a vila silenciosa — estivesse ligado por um fio invisível.
Clara deitou-se, mas demorou a pegar no sono. Tinha vindo em busca de paz, mas sentia que, naquela vila aparentemente tranquila, havia feridas abertas que nunca foram tratadas. E talvez o caminho que a havia trazido ali não fosse de fuga, mas de reencontro com verdades que ela nem imaginava.
O céu amanheceu encoberto, com nuvens densas que pareciam anunciar uma mudança. Clara abriu os olhos antes mesmo do galo cantar. O bilhete da noite anterior ainda estava guardado na gaveta do criado-mudo, mas ocupava um espaço muito maior dentro dela.
Enquanto tomava café na cozinha da pousada, Dona Alzira notou seu semblante preocupado.
— A vila é calma, minha filha. Mas tem gente que se incomoda com novidade demais… Não se assuste com certos avisos. Às vezes, são só medos antigos querendo parecer ameaça.
Clara sorriu com gratidão, mas sabia que aquilo era mais do que receio. Alguém não queria que ela fuçasse no que estava escondido naquela capela.
Na parte da manhã, Clara voltou ao altar e trabalhou com mais foco. Retirava camadas antigas com delicadeza, revelando cores vivas que haviam sido abafadas pelo tempo. Ao passar uma lâmina sobre a lateral da moldura, um som oco chamou sua atenção. Bateu levemente com os dedos: havia algo atrás daquela madeira.
Sentindo o coração acelerar, pegou uma pequena espátula e forçou cuidadosamente a parte solta. Um fragmento da moldura se desprendeu, revelando um pedaço de papel amarelado dobrado em quatro. Era uma carta antiga, com a tinta já desbotada.
Ela leu com dificuldade:
“O que vimos naquela noite jamais deve ser contado. Pelo bem da vila. Pelo bem de todos.”
Assinado: A.
Clara recostou-se no banco de madeira, sentindo um arrepio subir pela espinha. Mais perguntas do que respostas. Quem era “A”? O que tinha sido visto? E por que a capela escondia um segredo desses?
Antes que pudesse continuar refletindo, escutou a voz de Dona Alzira ao fundo, chamando-a com urgência:
— Clara! Venha rápido!
Correu até a porta e viu um pequeno grupo reunido na praça. No centro, um cavalo solto corria desesperado. Um garoto tentava segurá-lo, mas o animal parecia fora de controle. Miguel apareceu subitamente, vindo do outro lado da rua. Com precisão e calma, aproximou-se do cavalo e, com um gesto firme, o conteve, puxando as rédeas e acalmando o animal como se tivesse um pacto silencioso com ele.
O grupo aplaudiu. Clara ficou parada, observando. A força de Miguel era visível, mas havia algo mais: um domínio sereno, uma confiança bruta. Quando ele olhou em sua direção, foi apenas por um segundo, mas o suficiente para que ela desviasse os olhos, desconcertada.
Mais tarde, Clara aproveitou que a vila estava mais tranquila para passear pelos arredores. Chegou até a trilha que levava à parte alta da vila, onde os ipês formavam um túnel amarelo. Ali, sentou-se para pensar. Pegou seu caderno e desenhou novamente o altar, depois a carta escondida, e por fim, escreveu uma pergunta na página em branco:
“O que tanto essa vila tenta esconder?”
Sentiu que estava entrando em algo maior do que ela mesma. E, no fundo, uma parte de si sentia que precisava mesmo ir fundo. Como se aquela busca fosse, de alguma maneira, também uma cura.
Na volta, enquanto caminhava pela trilha, encontrou Miguel sentado à beira do rio, lavando as mãos. Ele não a viu de imediato, e por um instante, Clara o observou em silêncio, como se tentasse decifrá-lo. O homem solitário, de poucas palavras, que dominava cavalos e evitava olhares.
Quando ele finalmente ergueu os olhos, falou, sem ironia, apenas com a voz baixa e direta:
— Cuidado onde pisa. Tem caminho que parece seguro… mas leva pra bem longe da volta.
Clara não respondeu. Apenas seguiu. Mas as palavras dele a acompanharam até o pôr do sol.
E enquanto a noite caía sobre a Vila dos Ipês, Clara compreendeu que não havia sido por acaso que seu caminho terminara ali. Ou talvez, estivesse apenas começando.
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