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Juramento Entre Herdeiras

A Coroa Que Cresceu Com Ela

Nos altos salões da Fortaleza de Aerthil, onde os vitrais contavam histórias de antigas linhagens e os ventos carregavam sussurros das estrelas, Helena aprendeu a andar com o queixo erguido e os pés firmes — mesmo antes de saber o peso real de uma coroa.

Seu pai, o Rei Alden, já adoentado quando ela ainda mal alcançava os livros do salão de guerra, nunca a poupou das verdades de um trono. Em voz rouca, entre goles de chá encantado e acessos de tosse, ele lhe ensinava mais do que estratégias e leis: ensinava a escutar antes de falar, a observar antes de agir. “Quem governa com pressa, governa por pouco tempo”, ele dizia, com os olhos sempre firmes, mesmo quando o corpo falhava.

Helena, mesmo jovem, nunca teve o luxo da impulsividade. Desenvolveu o hábito de tocar discretamente os anéis nos dedos — cada um herdado de uma rainha anterior — quando pensava. Raramente sorria em público, e quando o fazia, havia cálculo no gesto. Ela não se perdia em festas nem se deixava cegar por afagos cortesãos. Preferia o silêncio da biblioteca encantada, onde os livros sussurravam sozinhos, e os mapas antigos mudavam as fronteiras quando ninguém estava olhando.

O povo a chamava de “a filha de pedra”, mas poucos sabiam o quanto da sua rigidez era feita de amor pelo reino — e de medo. Medo de não ser forte o suficiente. Medo de decepcionar um rei que, mesmo à beira da morte, nunca deixou de ensinar.

Dez invernos passaram desde a última lição de Alden, e Helena agora caminhava sozinha pelos corredores de Aerthil — tão silênciosa quanto o tempo.

A menina observadora tornara-se uma mulher feita de aço velado em seda. Seu nome era dito com respeito nos salões das quatro Casas e com cautela nos círculos de magia. Sentada no trono de mármore branco, Helena tinha a presença de uma tempestade contida: bela, mas imperturbável. Seus cabelos ruivos, longos e cuidadosamente presos em tranças cerimoniais, brilhavam como fogo sob a luz encantada das tochas flutuantes. E os olhos, verdes como esmeraldas recém-desenterradas da Montanha Alta, não deixavam escapar nenhum detalhe — nenhum gesto, nenhuma mentira mal contada.

Ela ainda tocava os anéis nos dedos quando pensava, mas agora o gesto era quase imperceptível, como o bater das asas de uma mariposa. Mantinha a voz baixa, porém firme, e suas palavras tinham o peso de decretos antes mesmo de serem registradas.

Os conselheiros a temiam mais do que a respeitavam — e isso era como ela preferia.

Do alto das muralhas, observava as luzes de Tharion se espalharem como constelações

......................

O sol da manhã passava pelas janelas altas da Biblioteca de Aerthil, tingindo as paredes de pedra com tons dourados e âmbar. Os feixes de luz se misturavam ao pó encantado dos livros antigos, que flutuava suavemente no ar como pequenos vaga-lumes adormecidos.

Helena estava sentada em sua poltrona favorita — uma peça alta de veludo azul escuro, com entalhes em forma de espadas nas laterais — posicionada junto à janela semicircular que dava vista para os jardins internos. A brisa carregava o perfume sutil das flores da estação, mas ela mal percebia.

Com as pernas cruzadas com precisão e o corpo ereto como se o trono estivesse sempre à espreita, ela lia em silêncio um tomo envelhecido, com as páginas já amareladas pelo tempo. O livro, de capa de couro negro com o símbolo da Coroa gravado em ouro, havia sido o último presente de seu pai: "Linhagens e Pactos de Sangue – Um Tratado Sobre Juramentos Antigos". Helena relia o mesmo trecho há minutos. Não por distração, mas porque gostava de absorver cada nuance, cada entrelinha. Era sua maneira de conversar com Alden, mesmo tantos anos após sua partida.

Um pequeno caderno repousava ao lado, com anotações organizadas em tinta verde, a mesma cor de seus olhos. Não havia rabiscos. Tudo era direto, limpo, metódico.

A porta da biblioteca se abriu sem pressa, como de costume, revelando Mariel, sua conselheira pessoal. Uma mulher de cabelos curtos prateados, envolta em um manto bordado com os símbolos do Conselho Real. Seu andar era calmo, mas seus olhos atentos jamais deixavam de medir o ambiente.

— Majestade — disse com um leve gesto de cabeça, respeitoso, mas sem bajulação. — Os relatórios chegaram. Temos movimentações comerciais no sul, e uma carta da Casa Elvar. Parece... importante.

Helena não fechou o livro. Apenas ergueu os olhos, como quem já previa que aquele nome voltaria a circular com mais frequência do que gostaria.

— Elvar nunca envia algo sem propósito — murmurou, com a voz baixa e cortante. — Deixe sobre a mesa. Lerei após o desjejum.

Mariel hesitou por um instante, o suficiente para Helena notar.

— Há algo mais?

A conselheira aproximou-se, colocando o pergaminho selado com cuidado sobre a mesa próxima. Havia uma tensão diferente em seu rosto. Não medo — Mariel era difícil de intimidar —, mas um incômodo contido.

— A carta vem com o selo triplo. Paz, aliança… e casamento.

Silêncio.

Helena pousou o marcador de página com a mesma precisão de sempre, sem pressa. Seus dedos tocaram o anel do dedo médio — o da rainha Elaris, famosa por nunca ter cedido à chantagem política. O gesto foi quase imperceptível.

— Claro — disse, finalmente. — Começaram a jogar.

E pela primeira vez em muito tempo, a leitura de um novo dia seria deixada para depois.

......................

As portas da biblioteca se fecharam com um leve ranger enquanto Helena caminhava pelos corredores de Aerthil, com a carta da Casa Elvar firmemente em mãos e Mariel a poucos passos de distância.

Os corredores, silenciosos e reverentes, pareciam moldados para ecoar a autoridade da coroa. Tapeçarias com brasões antigos cobriam as paredes de pedra encantada, que sussurrava fragmentos de história a quem passasse com ouvidos atentos. Mas Helena não ouvia. Seus pensamentos marchavam adiante, afiados como lâminas.

— Casamento? — ela disse, mais para si do que para a conselheira. — Eles acham que a paz pode ser comprada com alianças costuradas à força.

— Ou ao menos querem que pareça assim — respondeu Mariel, mantendo o tom neutro. — Há boatos de que a Casa Elvar está perdendo apoio em Virellen e no Alto Norte. Unir-se à coroa seria a forma mais rápida de restaurar sua posição.

Helena apertou levemente a carta, ainda lacrada com o selo dourado das três chamas de Elvar.

— Uma jogada previsível. Mas ainda assim insultante.

— O pedido vem com a benção dos três reinos aliados, Majestade. Isso... dá peso à proposta.

Helena parou por um instante, voltando-se para Mariel. Seus olhos verdes brilhavam como esmeralda polida sob o vitral da galeria, e apesar da compostura impecável, havia um traço de desdém quase imperceptível em sua voz.

— Que todos os conselheiros estejam no salão em meia hora. Sem exceções. — Ela retomou o passo, agora mais rápido. — Se acham que me dobram com promessas envoltas em fitas douradas, terão a resposta que merecem.

Mariel assentiu, seguindo-a com leveza. Não era a primeira vez que Helena enfrentava uma jogada política, mas havia algo diferente naquela carta.

Pés Descalços e a Coroa Longe Demais

O Reino de Elvar despertava em tons suaves, como se o tempo ali tivesse aprendido a respirar devagar.

As muralhas não eram altas e severas como as de Tharion; eram cobertas por vinhas mágicas que floresciam o ano inteiro, exalando um perfume leve de mel e pétalas encantadas. Torres de pedra clara reluziam sob o sol da manhã, enquanto os jardins se estendiam como tapeçarias vivas ao redor do palácio. Pássaros dourados — uma espécie rara, nativa das florestas de Lira Velha — dançavam entre as copas das árvores, acompanhando o riso de alguém que, como sempre, não estava onde deveria estar.

Elizabeth Elvar corria descalça sobre a grama orvalhada, os pés ágeis desviando das raízes grossas que serpenteavam pelo chão. Usava um vestido leve, amassado e sujo na barra de terra e folhas, como de costume. Um livro de poesia mágica estava aberto em uma das mãos, equilibrado de forma improvável enquanto ela fugia — novamente — da tutora real que a esperava com outra aula sobre política inter-reinos.

— Vossa Alteza! — chamava a voz exasperada de uma criada, há muito acostumada com a rotina de sumiços.

— Estou estudando botânica prática! — respondeu Elizabeth, por cima do ombro, com um sorriso sapeca. — Em campo, como os magos antigos!

O jardim era seu reino particular, um espaço onde não precisava lembrar que era filha única da Rainha Cyra Elvar, soberana de uma das casas mais tradicionais do continente. Ali, entre as ervas que sussurravam segredos antigos e os espelhos d’água onde os peixes cantavam em troca de pão doce, Elizabeth era apenas… ela.

Curiosa, afetuosa, um pouco caótica. Tinha o estranho hábito de falar sozinha — ou com as plantas — e guardar coisas nos bolsos: pedrinhas brilhantes, sementes raras, bilhetes que ela mesma escrevia e esquecia. Seu quarto era um caos de livros empilhados, mapas rabiscados e vestidos que se recusava a usar.

Ao fundo, as trombetas tocaram um tom suave — um chamado do palácio. Elizabeth suspirou, largando-se sobre um banco de pedra envolto em musgo. Sabia que não poderia adiar por muito tempo. A mãe a chamaria. E não era por causa de mais uma lição esquecida.

A carta havia chegado.

O conselho havia decidido.

Ela, Elizabeth da Casa Elvar — poetisa de jardins, colecionadora de insetos mágicos, fugitiva de compromissos — teria que se casar. Com a Rainha de Tharion, a mulher cuja frieza era lenda, e que certa vez mandou prender um diplomata por atrasar um tratado em três dias.

Elizabeth mordeu o lábio inferior, os olhos dourados se voltando para o céu claro.

— Casar... com Helena Tharion — murmurou, como quem prova uma palavra exótica pela primeira vez.

E então, riu baixinho.

— Bem… pelo menos ela parece gostar de livros.

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O salão solar da Casa Elvar era banhado por uma luz dourada e morna, vinda de janelas em arcos altos cobertos por cortinas finas, que balançavam com a brisa do fim da manhã. As colunas eram envoltas por vinhas encantadas que se moviam lentamente ao ritmo das canções do vento. No centro, sentada em um trono elegante de madeira viva — talhada de uma única árvore antiga, cujas raízes ainda pulsavam sob o chão — estava a Rainha Cyra Elvar.

Majestosa mesmo sem coroa, Cyra exalava uma autoridade tranquila, mas imutável. Seus cabelos, de um castanho escuro com fios de prata surgindo nas têmporas, estavam presos em um coque impecável. O olhar era o que mais impunha respeito: olhos claros como gelo derretido — não frios, mas atentos, sempre à procura do que não foi dito.

Ao seu lado, em pé com as mãos para trás, estava Ser Belar, conselheiro da casa há mais de duas décadas. De palavras contidas e postura ereta, era quase uma sombra discreta de Cyra, mas com a voz certeira quando necessário.

A porta lateral do salão se abriu com um ranger delicado, e Elizabeth entrou… ou melhor, apareceu como se tivesse tropeçado na própria presença.

O vestido leve agora trazia manchas novas de barro e folhas, o cabelo castanho com pequenas flores presas entre os fios, como se a própria floresta tivesse tentado guardá-la para si. Os pés descalços ainda úmidos. E, claro, um livro embaixo do braço.

Cyra suspirou profundamente. Não em raiva — mas em exaustão materna de quem já havia dito as mesmas palavras muitas vezes.

— Elizabeth Elvar, você está me matando aos poucos — disse, erguendo uma sobrancelha. — Pelo menos calçados desta vez? Não. É claro que não.

Elizabeth forçou um sorriso culpado, arrumando a postura e ajeitando inutilmente a barra do vestido.

— Eu estava estudando...

— Ah, sim. Botânica "em campo". Já ouvi isso ontem. E anteontem. — Cyra se recostou no trono, os dedos tamborilando no apoio entalhado em forma de folhas. — Um dia você vai escapar tanto que não terá para onde voltar.

— Eu sempre volto — disse Elizabeth, dando de ombros. — Só… por rotas mais bonitas.

Belar abafou um leve suspiro e se adiantou com um pergaminho enrolado, mas esperou até que Cyra lhe fizesse um gesto sutil de permissão.

— Sabemos que esse mundo não é gentil com quem sonha demais, filha — disse a rainha, suavizando um pouco o tom. — Mas também não perdoa quem se recusa a se preparar. O conselho real foi claro. A proposta de Tharion foi aceita por unanimidade. O casamento acontecerá.

Elizabeth desviou o olhar, encarando as paredes enredadas por folhas dançantes. Não falou de imediato.

— Ela nem me conhece. Nenhum de vocês me perguntou se eu queria isso.

— Se perguntássemos, você fugiria para os jardins. Como sempre faz — disse Cyra, e então completou com suavidade: — Eu preferia mil vezes vê-la livre. Mas herdeiros de casas antigas não nascem para seguir desejos. Nascem para sustentar reinos.

Um silêncio caiu entre mãe e filha, denso como névoa mágica.

Então Elizabeth respirou fundo, mais contida, mais resignada. Ainda com faíscas nos olhos.

— Se é pra me prenderem… que ao menos me deixem escolher o tipo de corrente.

Cyra a observou por um momento. Não disse nada. Mas nos olhos — nos olhos havia um traço de dor escondido, o amor de uma mãe que moldava a filha para um mundo que não perdoava delicadezas.

E foi Belar quem, por fim, interrompeu o silêncio:

— A Rainha de Tharion deve enviar um emissário nos próximos dias. Talvez, Alteza... talvez conhecê-la antes de julgá-la possa aliviar a transição.

Elizabeth deu um sorriso enviesado, quase travesso.

— Ou me dar mais ideias para fugir.

Cyra fechou os olhos por um breve instante.

— Por todos os deuses antigos, Elizabeth… pelo menos lave os pés antes de representar esta casa.

Elizabeth ficou em silêncio por um tempo, olhando para o chão de pedra polida, onde as raízes encantadas da árvore central do palácio serpenteavam sob seus pés. Por mais que tentasse manter o tom leve — com suas piadas e escapadas —, as palavras da mãe ainda pesavam no peito como grilhões dourados.

Ela apertou o livro contra o corpo.

— Se o pai estivesse aqui… ou o tio Arvon... — murmurou, com a voz mais baixa. — Eles nunca teriam permitido isso. Teriam defendido meu direito de escolher. Teriam... me ouvido.

Cyra se moveu no trono, mas não respondeu de imediato. O nome do irmão,Arvon, ecoou como um feitiço esquecido. A sala, antes tão iluminada, pareceu perder um pouco do brilho das janelas. As folhas nas colunas estremeceram levemente, como se sentissem o peso da lembrança.

— Não fale o nome deles com essa leviandade — respondeu Cyra, com um fio de dor na voz. — Você era apenas uma criança quando eles partiram. Não os conheceu como eu conheci.

— Mas eu lembro. Lembro dos olhos do pai quando ele me colocava nos ombros. Do jeito como o tio ria das minhas invenções mágicas... — Elizabeth falou rápido, como se quisesse proteger a memória. — Eles me deixavam ser eu mesma.

Cyra fechou os olhos por um instante. A dor era antiga, mas não cicatrizada. Ela se levantou, a postura ainda impecável, mas os ombros tensos. Aproximou-se lentamente da filha, e seu olhar estava mais duro do que antes.

— Você acha que eu não daria tudo para tê-los aqui? — sussurrou, com um tom tão calmo que parecia cortar mais que gritar. — Você acha que não carrego esse peso todos os dias, mesmo quando o reino me exige compostura? Eu os amava, Elizabeth. Perder os dois em uma única estação quase me matou.

Elizabeth abaixou os olhos, agora arrependida da provocação. Mas o dano estava feito.

— Mãe, eu só...

— Não — cortou Cyra, retomando o tom real, agora mais frio. — Chega por hoje.

Ela se afastou, o rosto já cuidadosamente composto outra vez.

— Vai para seus aposentos. Nada de jardim, nada de biblioteca. Três horas com a mestra Talwyn. Disciplinas antigas. Escuta, retórica, e história de tratados. — Ela fez uma pausa. — E com calçados, desta vez.

Elizabeth deu um passo para trás, o rosto ardendo entre orgulho ferido e arrependimento verdadeiro. Mas não respondeu. Só assentiu uma vez, baixando a cabeça.

Cyra observou a filha sair em silêncio, e quando a porta se fechou atrás dela, só então deixou escapar um longo suspiro. Um que carregava tanto amor quanto cansaço.

Ao lado, Belar não disse nada — mas o olhar compassivo que lançou à rainha dizia tudo.

— Ela tem o coração do pai a energia do tio— murmurou ele, enfim.

— Sim — respondeu Cyra, quase num sussurro. — E o fogo do meu irmão.

E enquanto o salão se esvaziava, a brisa voltou a soprar por entre as cortinas. Mas agora, soprava com um toque mais frio.

Vozes em Silêncio, Promessas em Papel

O Salão do Conselho de Tharion era uma extensão viva do poder de sua soberana.

Amplo, octogonal, feito de pedra negra lustrada com veios prateados que pulsavam suavemente com encantamentos antigos, o ambiente era iluminado por lustres flutuantes em forma de chamas azuis — fogo élfico, que jamais produzia fumaça. Ao centro, uma longa mesa redonda com tronos esculpidos em obsidiana encantada, cada um marcado com o emblema de um dos Conselheiros Principais. Acima de tudo, suspensa magicamente, uma chama dourada pairava no ar, cintilando conforme a intensidade das palavras ditas no recinto.

Helena estava sentada à cabeceira da mesa. Imponente, elegante. Usava vestes formais em tons escuros com detalhes bordados em fio de prata, e um manto de lã encantada caía sobre os ombros com a naturalidade de uma coroa invisível. Os cabelos ruivos presos com firmeza revelavam o contorno forte de seu rosto, e os olhos verdes como esmeraldas profundas acompanhavam cada movimento no salão com a precisão de um predador em vigília.

Ao redor, os conselheiros falavam — uns com preocupação, outros com fervor estratégico. Nomes, alianças, riscos, promessas. As vozes se sobrepunham como uma tempestade contida, tentando arrancar respostas da mulher que, até então, permanecia em absoluto silêncio.

Helena não interrompia. Não precisava.

Seus olhos percorriam cada rosto como quem já sabia tudo o que seria dito. Observava os mais impacientes, os mais ansiosos por agradar, os mais cautelosos. Sabia quem queria guerra. Sabia quem queria paz. Sabia quem queria poder.

Então, com um movimento apenas — um simples levantar de mão, sereno e firme —, o salão mergulhou em um silêncio absoluto.

Os conselheiros se calaram de imediato. Como se a própria sala reconhecesse que o que viria a seguir não era mais debate. Era decisão.

Com calma cerimonial, Helena ergueu a carta ainda lacrada com o selo dourado das Três Chamas da Casa Elvar. Partiu o lacre com a ponta da unha enegrecida de tinta mágica e desenrolou o pergaminho com precisão. A voz dela, ao ler, preencheu o salão com autoridade cortante e refinada:

 “À Majestade Helena de Tharion

Pela paz dos Reinos do Norte, e em respeito à antiga promessa feita entre nossos antepassados, a Casa Elvar propõe a união das duas linhagens por meio do casamento entre A princesa e minha filha, Elizabeth de Elvar.

Com esta aliança, as famílias mais respeitadas de Tharion e Elvar selarão uma nova era de estabilidade e cooperação, reforçando as defesas da Aliança das Terras Altas e assegurando a continuidade da magia ancestral.

A Princesa Elizabeth será enviada à corte de Tharion, sob proteção real, para conhecer sua futura esposa e preparar-se para a transição formal entre os reinos.

Que esta união seja símbolo de força, equilíbrio e permanência.

Em nome da Casa Elvar,

Rainha Cyra Elvar.”

Helena dobrou a carta com lentidão e a pousou sobre a mesa.

O silêncio persistiu, mais denso agora. As palavras ainda pairavam no ar como poeira encantada.

— Então — disse, pela primeira vez naquela manhã, com a voz firme como ferro moldado em gelo — a paz tem nome, rosto... e pés descalços, e o que dizem.

Um murmúrio contido escapou de um dos conselheiros, mas ninguém ousou rir. Helena cruzou os dedos à frente do queixo, os cotovelos apoiados sobre a mesa.

— Quero todos os detalhes dessa proposta. Mapeiem cada aliança possível. Vejam o que Elvar esconde por trás da promessa. — Ela se ergueu lentamente. — E preparem os aposentos do sul.

Ela fez uma breve pausa, os olhos cravando o conselheiro de segurança como um dardo bem lançado:

— E se alguém pensar que isso significa que descontrairei… lembrem-se de quantos tronos ruíram por confiar demais em palavras bem escritas.

O silêncio após a leitura ainda pairava como névoa mágica no salão quando Lorian Valhart, o mais antigo conselheiro da Casa dos Escudos, ergueu levemente a voz — um som grave e respeitoso, mas firme como o aço da sua própria linhagem.

— Majestade… — começou, com as mãos entrelaçadas sobre a mesa. — Com todo o respeito à proposta da Rainha Cyra… seria sensato considerarmos outras opções. Tharion sempre reinou sem precisar de alianças forçadas. Sob seu governo, não perdemos uma única fronteira. E, se houver necessidade de reforço, as Casas Antigas não hesitariam em marchar sob sua bandeira.

Vários membros do conselho assentiram com discrição. Outros apenas aguardaram a resposta com olhos atentos. Lorian prosseguiu:

— Além disso, a jovem Elvar é inexperiente. Criada entre flores e versos, dizem. Um espírito livre. Não sabemos se ela compreenderá… Tharion.

O nome da princesa foi dito com cautela. Como se temessem que apenas evocá-la despertasse algo imprevisível.

Helena não respondeu de imediato. Seus olhos verdes brilharam como lâminas sob a luz encantada do salão. Ela inclinou a cabeça lentamente, analisando Lorian com o mesmo olhar que um caçador lança à presa que ousa resistir ao cerco.

Então, ela falou.

— É verdade, Conselheiro Valhart — disse ela, com suavidade venenosa. — Tharion jamais precisou ajoelhar-se por proteção. Nem no tempo dos dragões errantes, nem durante a Guerra da Geada Cega.

Ela se levantou, contornando a mesa com passos elegantes, e continuou:

— Mas não ignoro que poder isolado apodrece. E alianças, mesmo frágeis, podem ser afiadas como lâminas. O que se oferece aqui… não é apenas uma jovem. É a única herdeira viva de Elvar. É acesso ao círculo ancestral dos Guardiões do norte. É estabilidade mágica nas fronteiras onde as runas estão começando a falhar.

Ela parou diante de uma tapeçaria antiga que representava a união das Casas de Tharion com um reino já esquecido pelas areias do tempo. Passou os dedos sobre a seda grossa, pensativa.

— Além disso — continuou, virando-se novamente para o conselho —, se há algo que aprendi nestes anos… é que as peças que mais subestimamos no tabuleiro, por vezes, são as únicas que alcançam o outro lado intactas.

Lorian manteve-se em silêncio. Respeitoso, mas ainda firme na postura.

— Está dizendo, Majestade, que já decidiu?

Helena voltou ao seu assento. A luz das chamas azuis dançava em seus olhos como ecos de promessas antigas.

— Estou dizendo — respondeu com um meio sorriso — que quero ver o que há por trás dos olhos dourados dessa princesa de jardim… antes de decidir se vale a pena queimá-los… ou protegê-los.

Um silêncio mais denso se abateu. Desta vez, não de medo — mas de compreensão.

A reunião estava encerrada. Helena não precisava dizer mais nada.

......................

Enquanto o sol iniciava sua descida preguiçosa nos céus de Tharion, um grupo seleto partia dos portões principais do castelo em formação precisa. O emissário real, montado em um corcel negro com crina trançada em fios prateados, levava a insígnia dourada da Casa de Tharion no ombro e o pergaminho oficial nas mãos.

Ele cavalgava na frente de cinco escoltas, rumo ao sul — rumo a Elvar — levando consigo mais do que uma carta: levava o peso de uma rainha que não confiava facilmente… mas que começava a se permitir observar, ao menos, a possibilidade.

No alto das muralhas, Helena observava sem expressão, até que o último cavalo desapareceu na curva da estrada ladeada por árvores de folhas roxas. Só então ela se virou e desceu pelas escadas laterais, saindo pela entrada menos usada do palácio, em direção aos jardins internos, onde raramente era vista.

O Jardim de Ros’thalia era uma relíquia viva da primeira rainha de Tharion. Protegido por muros baixos de hera encantada e atravessado por pequenos canais de água corrente, o jardim era um verdadeiro refúgio de paz dentro da muralha severa do castelo.

Ali, entre flores de tons suaves — lavanda, dourado-claro, folhas cinzentas como prata antiga —, havia um banco de pedra musgosa sob a sombra de uma árvore de folhas translúcidas. Era ali que Helena sempre sabia onde encontrá-la.

Sentada com um cesto no colo, separando folhas e raízes com os dedos firmes e ágeis, estava Thessaly, sua madrinha. Uma mulher de cerca de cinquenta invernos, de cabelo grisalho preso em uma longa trança e olhos cor de cobre, sempre envolta por cheiros de cânfora, mirra e sálvia. As mãos calejadas, o sorriso calmo, e uma sabedoria que parecia mais velha que o próprio reino.

— Pensei que tinha me esquecido de mim, Alteza — disse Thessaly sem sequer olhar para ela, o tom brincalhão escondido sob a doçura. — Ou que havia finalmente se transformado numa pedra como aquele trono lá em cima.

Helena sorriu, um daqueles sorrisos raros que suavizavam os traços duros do rosto.

— Eu estive ocupada… com o destino do reino, com ameaças invisíveis, com casamentos absurdos…

Thessaly arqueou uma sobrancelha, ainda mexendo nas ervas.

— Então ouvi bem. Uma princesa de Elvar? Ah, vai precisar de mais do que hortelã para o tipo de dor de cabeça que isso traz.

Helena soltou uma risada leve, quase infantil, e sentou-se no chão, ignorando a postura regia por um instante. A grama ali era macia, as flores se inclinavam suavemente ao vento, e o cheiro da terra fresca era mais acolhedor do que qualquer tapeçaria real.

— Quando eu era criança, achava que ia me casar com um guerreiro de três metros, com um machado de fogo — murmurou, colhendo uma folha qualquer entre os dedos. — Que ele me defenderia do mundo, e que eu nunca teria que fazer essas escolhas sozinha.

— E agora? — Thessaly perguntou, olhando-a com um carinho sem pressa.

Helena deu de ombros, encarando o céu que se pintava em tons âmbar entre os galhos.

— Agora, sou eu quem empunha o machado.

A velha curandeira soltou um leve suspiro, e então a observou com atenção.

— Mas às vezes... ainda vejo aquela menina. A que comia amoras escondida entre as estufas, e que dormia no meu colo dizendo que as nuvens eram ilhas flutuantes.

Helena desviou o olhar, sem negar.

— Talvez ela esteja só dormindo.

Thessaly sorriu, e estendeu uma folha de verbena para Helena.

— Não a deixe dormir por muito tempo, minha filha. A guerra, o trono, os conselhos... tudo isso te precisa inteira. Mas você também precisa de um lugar onde possa rir de novo. Sem culpa.

Helena pegou a folha, girando-a entre os dedos. Por um momento, os olhos verdes dela pareceram mais claros, mais jovens. Como se, ali naquele jardim sagrado, o tempo se dobrasse e devolvesse algo que o trono havia tirado.

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