Como Tudo Começou
A noite tinha gosto de sangue e aurora quebrada.
As copas ancestrais da floresta de Lórandhriel choravam em silêncio, seus galhos tremendo como harpas em lamento. O véu da magia que protegia o reino élfico havia sido rasgado com brutalidade, e a luz etérea das folhas sagradas agora ardia em tons rubros — como se o céu tivesse cuspido a própria ira sobre aquele solo.
No meio da devastação, entre os sussurros da floresta ferida, corria uma figura feminina, cambaleante, banhada em prata e dor: Mayar’in, princesa da Corte da Luz.
Nos braços, ela carregava seu tesouro mais precioso — uma bebê recém-nascida, envolta em panos encantados, ainda com a fragrância da magia e do ventre. O pequeno corpo dormia em paz, alheio ao caos, mas o coração da mãe queimava em desespero.
— Cálix... por favor... aguente... — sussurrou ela, num fio de voz sufocado por soluços e raízes que se entrelaçam em seus pés.
Atrás dela, o passado sangrava.
Cálix, o Supremo Alpha das Montanhas do Norte, jazia à beira do portal feérico. A espada cravada em seu peito pulsava como uma maldição viva, o sangue escorrendo como oferenda impura. Ele, um lobo branco forjado na guerra, havia desafiado os reinos por amor. Mas o preço da desobediência fora alto demais.
Não por mãos inimigas.
Mas pelo punho cruel do Rei Priel, pai de Mayar’in, que preferiu o orgulho ao perdão.
Ela não teve tempo de chorar. Nem de gritar. O último olhar de Cálix a perfurou com ternura e comando.
— Não olhe para trás. Vá! Transmute-se! Proteja nossa filha! — ele murmurou, entre o gosto do próprio sangue e a eternidade que o aguardava.
O feitiço queimou a carne dela como brasas vivas.
As asas de cristal desapareceram em cinzas. Os olhos, antes azuis como as manhãs feéricas, tornaram-se castanhos humanos. A pele, dourada pela luz dos Deuses Antigos, agora era comum. Mayar’in se desfez para salvar.
E assim, tocou o mundo dos homens.
O ar era seco, áspero. O cheiro da floresta humana era de terra molhada, de folhas mortas e chuva prestes a cair. Nada havia ali da música das estrelas. Nada da leveza das nuvens de Lórandhriel.
Mas ela sabia onde ir.
Guiada por promessas antigas, correu pelas trilhas ocultas até chegar às Florestas Sagradas do Clã Branwynn, onde vivia uma loba de dons antigos: Maebh O’Faoláin, curandeira respeitada, esposa de Drustan, o lobo que abdicara da liderança por lealdade à alma e à floresta.
Mayar’in depositou a criança com cuidado na soleira da cabana. A luz da lua beijou os cabelos prateados da menina como uma bênção. Ao lado dela, uma carta escrita com tinta de lua, e um colar lunar que brilhava com um suave pulsar — como se a própria Lua tivesse deixado ali seu coração.
Ela ajoelhou-se. Chorou em silêncio. O ventre ainda doía do parto recente. Mas o coração... o coração dela já estava morto com Cálix.
Ela acariciou o rosto da filha e sussurrou:
— Seja a Lua onde só há trevas. Que seu nome ecoe entre as matas e a eternidade. Que você um dia compreenda o que sua mãe teve que sacrificar.
A floresta estremeceu. Ele viera.
O Rei Priel atravessou o véu entre os mundos como um relâmpago de ira. As árvores se afastaram em reverência temerosa. As raízes se curvaram. E Mayar’in, desfeita em forma e coroa, enfrentou o próprio pai com os olhos secos e o espírito ferido.
— Ela não é mais sua. Ela pertence ao destino. — sua voz ecoou como uma maldição sagrada.
O Rei não respondeu. Apenas a envolveu em correntes de prata vivas, selando seu corpo e sua magia. Levou-a consigo, prisioneira entre os espelhos das Montanhas Cristalinas, onde os ecos dos seus gritos jamais seriam ouvidos. Lá, ela foi condenada a observar o céu por toda a eternidade e a ausência da filha que jamais veria crescer.
Mas a criança foi encontrada.
No instante em que o choro atravessou a madrugada, Maebh saiu com os olhos arregalados. O colar pulsava como uma estrela. A carta se desdobrava sozinha, como encantada. Palavras escritas em runas arcaicas revelavam verdades que calaram mil guerras.
Drustan, recém-transformado, aproximou-se em silêncio.
— É... uma criança da Lua. — murmurou ele.
Maebh tocou os cabelos prateados da bebê, e sentiu a magia adormecida vibrar sob seus dedos. Sabia que aquela criança não era comum. Ela era herança de reinos destruídos. Era faísca de uma profecia esquecida.
— A partir de hoje, será nossa filha. Seu nome será Ilunari. A Lua de Prata.
O vento soprou como bênção. As folhas dançaram. E por um breve segundo, a floresta pareceu sorrir.
Ali, nas sombras do sacrifício, nasceu a esperança.
A PROFECIA ANTIGA
“No vigésimo segundo ciclo de luz,
Sob o véu da lua prateada,
A Filha do Vento e da Névoa despertará.”
“Se seu coração tocar o de um lobo puro —
Um que carregue força, honra e a marca do domínio —
Então a centelha do sangue antigo se acenderá.”
“Não é qualquer lobo...
É aquele forjado no ventre da guerra,
Moldado pelas sombras e silencioso como a noite,
Destinado a liderar não por medo, mas por destino:
o Supremo Alpha.”
“E no acasalamento sagrado, quando alma e instinto se fundirem,
Os dons adormecidos da Lua de Prata emergirão.
A magia se quebrará.
A linhagem se revelará.
E o clã que a tiver como fêmea alfa será imbatível entre todos os reinos.”
“Mas cuidado...
Onde há luz, há sombra.
Onde há profecia, há olhos que desejam.
Inveja se oculta em beijos.
E a traição veste máscaras de devoção.”
"Se seu coração tocar o de um lobo puro —
um que carregue força, honra e a marca do domínio —
então a centelha do sangue antigo acenderá."
"Não é qualquer lobo...
É aquele que foi forjado no ventre da guerra,
moldado em silêncio pelas sombras,
e destinado a governar não por medo, mas por destino:
o Supremo Alpha."
"E no acasalamento sagrado, quando alma e instinto se fundirem,
os dons adormecidos da Lua de Prata emergiram.
A magia se quebrará.
A linhagem revelará.
E o clã que a tiver como fêmea alfa, será imbatível entre todos os reinos."
"Mas cuidado...
Pois onde há poder, há inveja.
Onde há profecia, há olhos que desejam."
O aroma das folhas de lavanda misturava-se ao de raiz de valeriana recém-amassada, criando um bálsamo que preenchia o chalé com paz. Arianwen adorava aquele momento. Suas mãos se moviam com naturalidade, delicadas como as pétalas secas entre os potes de cerâmica. A luz tênue que entrava pelas janelas de madeira acariciava seus cabelos prateados, fazendo-os parecer uma extensão do luar.
— Você tem um dom, filha. Essas ervas florescem nas tuas mãos como se te reconhecessem — disse Maebh com um sorriso doce, os olhos cheios de orgulho.
— Acho que elas é que têm pena de mim, mamãe. Sabem que eu não sou tão boa assim com lutas, como a Eira. Então me escolhem pra cuidar delas — respondeu Arianwen, fingindo graça, mas escondendo certa insegurança.
Maebh se aproximou e tocou a testa da filha com a dela, em um gesto silencioso de afeto.
— Cura é luta também. E muito mais rara.
Antes que Arianwen pudesse responder, a porta da frente se abriu com força e a voz grave de Cairbre preencheu o espaço.
— Estou em casa.
Arianwen sentiu um arrepio subir pela espinha. Algo na voz do pai estava diferente. Ele não costumava entrar com tanta urgência, nem em dias de Conselho.
Maebh enxugou as mãos no avental e se adiantou.
— Já voltou? Não era pra ficar até o nascer da lua?
Cairbre não respondeu. Seu olhar percorreu a sala até pousar sobre Arianwen, que ainda segurava um punhado de folhas de artemísia nas mãos.
— Precisamos conversar. Todos.
Nesse instante, a porta se abriu novamente.
— O que aconteceu? O que ele disse no Conselho? — Eira entrou ofegante, com os cabelos dourados desgrenhados pelo vento e o olhar inquieto, como se sentisse no ar o que estava prestes a ser dito.
Logo atrás dela, veio Taran, o irmão mais velho, com os ombros largos, o semblante tenso, como se já soubesse o que estava por vir.
— Papai? — Arianwen falou, a voz trêmula.
Cairbre respirou fundo, e então falou com a firmeza de um lobo, mas o coração de um pai.
— Arianwen. Eira. Vocês chegaram à idade do acasalamento. O Alpha tomou sua decisão. Vocês foram prometidas.
O silêncio que se seguiu foi quase sagrado. Como se o próprio tempo tivesse prendido a respiração.
Arianwen largou as ervas. O cheiro de cura deu lugar a algo mais ácido. Pavor.
— Prometidas? — ela sussurrou.
— Para quem? — Eira perguntou com os olhos faiscando, o corpo inteiro em alerta.
— Arianwen será unida a Raffi Drustan, o primeiro batedor do Alpha. Eira… a você foi destinado Dorian Fiachra, o Beta.
Eira empalideceu.
— Isso é impossível. Ele… — ela parou. Mordeu os lábios. — Ele é minha alma gêmea. Eu sou a companheira dele. Não por decreto. Por vínculo.
— Isso já não está em debate. A decisão foi selada.
Arianwen apertou os olhos.
— Quando?
Cairbre hesitou por um segundo.
— Na próxima lua cheia.
— Isso é em duas semanas… — sussurrou Maebh, num tom frágil.
Arianwen sentiu como se o mundo tivesse tombado de repente. O corpo inteiro pareceu leve demais, como se fosse feita de fumaça. Ela sabia que aquele dia chegaria. Mas não assim. Não com um nome que seu coração rejeitava. Não com o gosto amargo da imposição.
— Papai, por favor… — ela tentou.
Mas a resposta viria mais tarde. E as sombras da decisão estavam só começando a crescer.
O silêncio depois da revelação era quase sólido.
Arianwen olhava para as mãos, que ainda tinham fragmentos de folhas entre os dedos. Aquelas mãos que curavam, que amansavam dor... agora estavam inúteis.
Como se nenhuma erva pudesse curar o que acabava de acontecer.
— Raffi Drustan... — ela repetiu, num sussurro. — Ele me chama de aberração, pai. De “meia-coisa”. Ele me olha como se eu não fosse parte do clã.
Eira deu um passo à frente, entre a irmã e o pai.
— Ela não vai acasalar com ele. — disse, com firmeza. — E eu não vou me unir a ninguém por decreto, muito menos ao Beta, mesmo que ele seja meu companheiro por destino. Isso não é acasalamento, é política disfarçada de tradição.
— Eira... — Cairbre advertiu, com tom pesado.
— Não. — ela rosnou. Literalmente. — Isso não é só uma injustiça. É errado. Vai contra o que o clã sempre pregou: que o vínculo é sagrado. SAGRADO, pai. Ele acontece por instinto, por alma, não por aliança estratégica!
Taran aproximou-se, os braços cruzados e a testa franzida.
— Desde quando o Alpha impõe acasalamentos? — ele perguntou, sem tirar os olhos do pai. — O vínculo sempre foi sentido, não escolhido por outro. Isso... isso nunca aconteceu antes.
Cairbre sustentou o olhar do filho com dificuldade.
— As coisas estão mudando. O Conselho teme os dias que virão. Há sinais. Movimentações nos outros clãs. Os velhos estão inquietos. Querem alianças fortes. Linhagens unidas. Sangue leal.
— Então vamos sacrificar o que é puro dentro de casa para proteger o que está fora? — Eira cuspiu as palavras como espinhos. — Isso não é liderança. Isso é covardia.
Arianwen estava calada, imóvel. Mas dentro dela, algo começava a se partir. Uma rachadura silenciosa que crescia com cada palavra dita.
— Papai… — ela ergueu os olhos, dourados e marejados. — E se eu recusar?
Todos olharam para Cairbre.
— Se recusar, você será banida do clã. Como manda a tradição. — ele respondeu, e sua voz vacilou ao final.
O coração de Arianwen bateu tão forte que ela achou que fosse desmaiar.
— E o que acontece com uma loba sem clã, pai? O que acontece comigo se eu for expulsa?
— Você perde o nome. A proteção. O território. O sangue do clã.
— Perco vocês. — completou ela, num fio de voz.
Maebh deu um passo à frente, os olhos marejados.
— Não se perde o que vive no coração, minha filha. Onde quer que você esteja, você ainda será minha. Nossa.
Eira tocou o ombro da irmã com ternura, e Taran desviou o olhar, engolindo seco.
— Vocês estão tratando isso como se fosse só política. Mas é a vida dela. — disse ele. — E você, pai… você sempre foi contra as ordens cegas. Por que agora aceita calado?
Cairbre olhou para os filhos como quem carrega um fardo que ninguém pode ver
— Porque se eu me opuser… o Alpha pode nos tirar tudo. Até a vida.
Arianwen sentiu um gosto metálico na boca.
Não era medo.
Era algo mais cruel.
Era a certeza de que o clã que a criou não a reconhecia mais como filha, mas como moeda.
A lua ainda não estava cheia. Ainda restavam duas semanas.
Tempo suficiente para sangrar.
Ou para escolher.
Mesmo que fosse a fuga.
Ela olhou para Eira.
Eira entendeu sem que fosse preciso dizer nada.
A rebeldia tinha encontrado forma.
E a Lua... não escolheria por elas.
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