A bruma rastejava como dedos velhos sobre o musgo frio da floresta. As árvores, tão antigas que os anéis de seus troncos dariam voltas no tempo, permaneciam imóveis. Nenhum vento, nenhum canto de pássaros. Apenas o som distante da água escorrendo entre pedras — como um sussurro antigo demais para ser entendido.
Entre essa imensidão verde e silenciosa, havia uma cabana.
Pequena, torta, feita de madeira bruta e musgo, parecia prestes a ser devorada pela própria floresta. Mas ali, entre raízes e neblina, um homem vivia.
Ryn.
Ele cortava lenha, como fazia todas as manhãs, mesmo que tivesse o suficiente empilhado para meses. Não por necessidade, mas por hábito.
O machado descia com precisão metódica. A lâmina era afiada com pedras que ele próprio polia. Os movimentos eram firmes, cadenciados. Braços que nunca tremeram. Costas retas.
Cabelos pretos caíam sobre o rosto, molhados pela névoa. A barba longa ocultava parte da mandíbula — bem desenhada, mas esquecida de vaidade. Suas roupas eram simples, costuradas de peles e fibras secas, gastas, mas funcionais. Seus olhos, escuros como carvão, observavam tudo… e nada.
Ele não pensava sobre o tempo. Nem sobre o que era, nem sobre o que viria. O passado era um borrão intocado. O futuro, irrelevante.
Na manhã anterior, a árvore que cortava caiu com um estalo surdo.
Naquela manhã, cairia outra.
Era o suficiente.
Ele sentou-se na soleira da cabana. A madeira rangia. O vapor de sua respiração flutuava no ar frio. Seus dedos estavam sujos de terra e seiva, e ele observou as mãos por longos segundos, como quem contempla um objeto esquecido num canto da memória.
Ele lembrou que já havia sentido algo ali — uma vez. Algum calor. Alguma tristeza. Algum tipo de coisa... humana.
Mas era distante demais agora.
Do alto de uma pedra próxima, um veado o observava. Olhos alertas, corpo estático.
Ryn apenas olhou de volta. Nem curiosidade, nem ameaça. Apenas... presença.
O animal, eventualmente, se foi. Como todos.
Na floresta de Mavernia, ninguém chegava. E ele nunca saía.
Ao redor de sua casa cresciam ervas que floresciam fora de estação. Cogumelos que só existiam ali. O solo ao redor parecia mais fértil, o ar mais calmo. Mas não era por desejo. Era simplesmente porque o mundo preferia se adaptar à sua presença do que confrontá-la.
A água que fervia sobre o fogo soltava um leve aroma de folhas. Ele não se lembrava do nome da planta, mas a colhia toda semana. A bebida não tinha gosto. Mas aquecia.
Um pensamento atravessou sua mente como uma brisa inesperada:
"Talvez eu devesse arrumar a cerca."
Mas a cerca estava lá havia milênios. Algumas estacas já tinham virado pó. Outras estavam firmes, apesar de inclinadas.
Ela não servia para nada. Nem para proteger, nem para marcar território.
Mas era a cerca dele.
Ryn caminhou até ela, passou os dedos pela madeira envelhecida. Uma parte quebrou com o toque. Ele a deixou cair.
Não havia planos para o dia. Nem expectativa. Nem tédio.
A existência, para ele, era um rio — e ele havia parado de lutar contra a corrente fazia tempo. Flutuava. E isso bastava.
Quando o sol rompeu finalmente a névoa, seus raios dourados tocaram os galhos mais altos.
O céu clareou devagar, como um véu sendo retirado dos olhos do mundo.
Ryn olhou para cima por um instante.
E então… fechou os olhos.
Não por emoção.
Mas porque a luz era forte demais.
O som da madeira cedendo em estalos pequenos era constante. Uma viga no canto da cabana parecia estar mais inclinada do que no dia anterior. A porta rangia mesmo com o vento parado. O telhado escorria gotas de umidade antiga, mesmo sem chuva.
Ryn olhou ao redor, os olhos escuros varrendo cada rachadura, cada falha no tempo.
A cerca, as paredes, as cordas penduradas com ervas secas. Tudo havia cumprido seu papel.
Ele não suspirou. Nem refletiu muito. Apenas pensou:
"Já cumpri minha estadia aqui."
Sem cerimônia, voltou para dentro, pegou o que considerava essencial: um machado, algumas peles, uma pequena faca de osso que ele mesmo talhou, e um cantil feito de couro e resina.
O resto? Deixaria. A floresta saberia o que fazer com tudo aquilo. Sempre soube.
Sem olhar para trás, ele adentrou a mata.
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A Caminhada pela Floresta de Mavernia
A floresta não era apenas vasta — era viva.
Cada passo era amortecido por uma espessa camada de folhas antigas e raízes entrelaçadas como veias do próprio mundo. O cheiro de madeira úmida, musgo e flores raras preenchia o ar, espesso e puro. A luz filtrava-se entre as copas altas, criando manchas douradas que dançavam sobre a terra.
Ryn caminhava sem pressa. Seus pés já conheciam caminhos onde nem trilhas existiam.
No trajeto, criaturas o observavam à distância.
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Ele conhecia bem a floresta, algumas zonas conhecidas por ele:
Borda de Mavernia – Região que faz fronteira com o mundo humano.
A vegetação ali é mais comum, com algumas trilhas de caça, é o lugar onde crescem as Siltras, ervas com propriedades calmantes, muito popular por quem se aventura nas bordas da floresta garimpando plantas e ervar para vender na cidade.
As Três Fendas – Três desfiladeiros profundos na região de profundidade intermediária da floresta, as pessoas raramente alcançam esta parte por conta dos perigos e caminhos acidentados, esta região é onde vivem as Arak’kui, criaturas insetoides com cascos duros e veneno paralítico.
Ryn evita passar por ali. Não por medo. Apenas porque o som delas o incomoda.
Atravessando a região intermediária, encontra-se a Nascente Branca – Lago de águas cristalinas com fundo leitoso, protegido pelas Myren, serpentes aquáticas que cantam como pássaros ao amanhecer, humanos nao chegam nesta parte da floresta e se chegam, as Myren cuidam para que nunca saiam dali.
Passando pela Nasceste Branca e indo floresta adentro, encontra-se o bosque da Névoa Morta – Parte mais densa da floresta, onde a luz do sol quase não entra.
Criaturas como os Hulgroms — grandes felinos com presas curvas e camuflagem natural — caçam ali. Mesmo eles evitam Ryn enquanto caçam.
O lugar onde Ryn se encontra agora é o coração de Mavernia – Nenhum nome humano alcança essa parte.
É onde as árvores são tão altas que desaparecem na neblina superior, e o chão parece pulsar levemente sob os pés.
É aqui que a Arkheia pulsa mais forte — tão densa que o ar vibra.
Foi lá que Ryn parou, quando seus olhos encontraram a clareira.
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A Clareira na Colina
Um círculo natural de grama macia e baixa se abria entre as árvores.
Era como se a floresta tivesse escolhido, espontaneamente, criar aquele espaço.
No centro, uma colina suave elevava o terreno, permitindo ver o céu por entre os galhos distantes. Havia um pequeno córrego límpido, serpenteando próximo à borda, com água gelada e transparente, onde peixes de escamas azuis deslizavam lentamente.
O ar era fresco, com cheiro de folhas novas e seiva.
O chão era firme, perfeito para construir.
Ryn se abaixou, passou a mão pela grama.
A textura era fria, úmida, e estranhamente agradável.
Ele sentiu que seria ali. Não por razão ou intuição. Apenas... foi.
Sem perder tempo, começou o trabalho.
A construção da nova casa.
Com árvores próximas, ele selecionou madeira de qualidade.
Dessa vez, não apenas cortou troncos brutos, como sempre fez.
Ele descascou, alisou, mediu, empilhou. Trabalhou a madeira com paciência e precisão, decidiu se estabelecer naquele lugar, entao queria fazer bem-feito.
Decidiu a estrutura da casa começando pela sala – Ampla, com uma lareira simples de pedras no canto. Um tapete de pele de cervo cobria parte do chão.
Na cozinha – Separada apenas por um balcão de madeira. Colocou ali na parede ganchos para ervas e raízes secar, um suporte de ferro forjado à mão para panelas.
Banheiro – Simples, mas funcional. Feito com canaletas de pedra e lençol de água subterrâneo que ele desviou manualmente.
Dois Quartos – Um com uma cama larga o suficiente para duas pessoas, coberta por peles macias de raposa-da-névoa. O outro, vazio, mas limpo, sem uso.
Ele não sabia o porquê de construí-lo. Apenas construiu.
Pra quem vive tanto quanto a própria terra, a passagem do tempo é insignificante, e la estava, seu novo lar.
O clima da casa era de aconchego.
O cheiro de madeira fresca impregnava o ar.
A fumaça da lareira ainda nova subia suavemente pela chaminé rudimentar enquanto Ryn assentia com um sorriso satisfeito.
O som constante do córrego próximo servia como fundo, uma trilha natural que ele sempre apreciou.
Durante os dias de construção ele caçou, curtindo o couro, limpando ossos, criando ferramentas, tapetes, bancos e estantes.
Nada era comprado. Tudo era feito com as próprias mãos.
Agora, Mavernia havia ganho um novo centro outrora silencioso: uma casa bem construída, no meio do nada, habitada por um homem que ninguém conhecia.
O Salão dos Ecos
As portas pesadas de ébano se fecharam com um rangido abafado, isolando completamente o cômodo do resto do Palácio Dourado de Edevan. O som do mundo lá fora desapareceu como se nunca tivesse existido.
As paredes da câmara eram talhadas com runas antigas de silenciamento e contenção de Arkheia.
Arkheia é a energia formada por quatro tipos de particulas de energia, sao elas a Mana, Qi, Éter e Essência Espiritual, estar particulas formam o que chamam de Arkheia.
Somente ali, longe de ouvidos e olhos mágicos, o imperador Caelis Tervan III se permitia falar sem máscara.
Ele caminhou até a janela arqueada de pedra negra, observando os telhados azul-escuros da capital sob o céu noturno. O frio do inverno era sutil naquela noite. O silêncio da cidade... incômodo.
Atrás dele, o conselheiro Seneth Voskar aguardava em silêncio, as mãos entrelaçadas nas costas, os olhos fixos em um mapa aberto sobre a mesa de mármore.
— Diga-me, Seneth, — começou o imperador, sem virar-se. — Há quanto tempo mesmo os estudiosos da Assembleia deixaram de usar o termo “Relíquias de Essência”?
O velho estrategista respondeu com a serenidade de quem pesa cada palavra como uma espada:
— Cerca de dois séculos, Majestade. Desde que os registros do evento de Vir’Almora foram selados. Aqueles que ousaram continuar a pesquisa foram banidos... ou desapareceram.
O imperador girou lentamente, os olhos âmbar penetrando o conselheiro como se procurassem algo escondido sob sua pele.
— E mesmo assim..., rumores voltam a circular. Instabilidades nos véus. Mutação de fauna mágica. E agora... picos de Arkheia surgindo no coração da única floresta que nunca conseguimos mapear.
Seneth assentiu, estendendo um pergaminho amarelado pela idade.
— Esta cópia foi extraída dos arquivos profundos da Biblioteca de Elyzar. Data de trezentos anos atrás. Uma descrição direta do colapso de Vir’Almora. Aqui — ele apontou com o dedo — menciona um artefato: um "coração de convergência", feito para canalizar todas as formas da Arkheia em um único fluxo.
— E o que aconteceu quando tentaram usá-lo?
— A cidade desapareceu em sete minutos. Nem os esqueletos permaneceram. Apenas cinzas da cidade e uma floresta contaminada com Arkheia instável. Mas o ponto, Majestade... é que a assinatura mágica daquela relíquia está surgindo novamente.
Caelis passou a mão pelo queixo, pensativo.
— Mavernia... A floresta que engole impérios. — Ele deu um passo à frente. — Você acredita que haja uma relíquia perdida no interior?
— Sim. Ou algo pior: fundido a um ser vivo. Restos de registros resgatados da pesquisa sugere que não é impossível que seja feita a fusão, especulações sugerem que este pode ter sido o motivo verdadeiro do desastre de Vir’Almora.
— As Duas Décadas de Declínio...
— Quando exatamente a instabilidade começou? — perguntou o imperador.
Seneth puxou um segundo pergaminho, mais recente.
— Há vinte anos. Inicialmente, como desvios pequenos de picos de Arkheia em regiões selvagens. Mas rapidamente evoluíram para fendas no véu, pulsos de éter sem fonte, e até mesmo inversões de afinidade mágica.
— E ninguém suspeitou de uma origem?
— Acreditavam ser consequência de saturação natural. Mas há uma anomalia permanente que se fixou no mapa há dezenove anos, Majestade. Uma única região onde o fluxo se recusa a ser lido... no centro de Mavernia.
O imperador se virou por completo, a voz agora carregando o peso do comando.
— Então que seja feita a primeira expedição em profundidade. Escolha um comandante. Escolha bem. Não quero fanáticos, nem tolos. Preciso de alguém que volte vivo.
Seneth fez uma leve reverência.
— Já tenho um nome: Kaleorn Dervan, guerreiro do Conclave das Lâminas, 6º Círculo, leal, pragmático... e acima de tudo, silencioso.
— Aprove — disse Caelis. — E selecione os seis melhores rastreadores e cultivadores disponíveis.
— Também sugeri Elyra Solvine, filha do Arquimago Solvine da Assembleia. Ela é jovem, mas extremamente sensível à Arkheia. A única que identificou o padrão da distorção se repetindo com exatidão.
O imperador assentiu lentamente.
— Que ela vá. Mas se não retornar... a culpa será sua.
Seneth sorriu de forma leve, como quem aceita um fardo inevitável.
— Como sempre foi, Majestade.
Infiltrar-se silenciosamente em Mavernia.
Investigar a origem da instabilidade e da distorção da Arkheia.
Verificar se há relíquias ativas, criaturas anômalas, ou outras forças desconhecidas no centro da floresta.
Voltar com provas — se possível.
O imperador se voltou à janela. A luz da lua recortava seu perfil de guerreiro cansado de guerras.
— Há algo lá dentro... e mesmo que esteja em silêncio agora...
— ...pode acordar.
A luz da manhã atravessava os vitrais dourados da Câmara de Comando do Conclave, tingindo de âmbar as armaduras e mantos dos que ali estavam reunidos. O mármore frio sob os pés refletia uma tranquilidade que não se estendia aos rostos. O peso da missão era real.
No centro do salão, parado como uma muralha viva, Kaleorn Dervan mantinha-se imóvel. Os olhos de bronze avaliavam o mapa etéreo de Mavernia projetado sobre a mesa rúnica. Um borrão opaco de silêncio e perigo.
Atrás dele, Seneth Voskar, conselheiro imperial, aguardava em silêncio — mãos entrelaçadas, rosto cansado, mas mente afiada.
— Já decidiu quem vai? — perguntou Seneth.
Kaleorn assentiu. — Oito nomes. Nenhum mais.
Seneth ergueu uma sobrancelha. — Esperava doze.
— Mais do que oito... só atrai morte. — A voz de Kaleorn era baixa, firme. — Essa floresta não perdoa números.
Um silêncio incômodo caiu entre os dois, até que Seneth falou:
— A floresta já levou alguém seu, não levou?
Kaleorn não respondeu imediatamente. Os dedos percorreram uma pequena pulseira de ferro presa ao pulso esquerdo — quase imperceptível, antiga e gasta.
— Meu irmão entrou lá há quinze anos, numa missão de reconhecimento com os batedores do Conclave. Nunca voltaram. Só restou isso... e um campo de Arkheia inerte.
Seneth não replicou. Apenas inclinou a cabeça em respeito. Aquilo explicava mais sobre Kaleorn do que todos os registros militares combinados.
Os Escolhidos, Kaleorn passou para Seneth um cristal brilhante.
O cristal de convocação brilhou com as insígnias dos nomes aprovados.
Ehran Faelwyn, caçador das Terras Rúnicas.
Alto, de corpo enxuto, olhos cinzentos como tempestade. Tinha ouvidos como lobos e pés que não deixavam rastros.
4º Círculo – Qi.
Capaz de sentir desvios na Arkheia como se sentisse cheiro de sangue.
Mirael Vonn, encantadora de muralhas.
Braços grossos, tatuagens rúnicas no rosto e mãos. Ria alto, mas combatia com brutalidade.
3º Círculo – Mana.
Especialista em proteção, encantamentos e suporte de campo.
Keven “Raiz” Dorran, espírito gentil.
Jovem, cabelos castanhos cacheados, olhos verdes vibrantes. Trazia um bastão vivo que crescia conforme sua vontade.
2º Círculo – Essência Espiritual e Qi.
Tímido, mas seu coração nobre o tornaria peça-chave em algo muito maior.
Dois arqueiros (Círculo 2) e um alquimista de campo (Círculo 3) completavam o grupo. Experientes e discretos.
E por fim...
Elyra Solvine, filha de um dos principais anciões da Assembleia Arcana.
Entrou com passos decididos. Cabelos azul-escuros presos às pressas, olhos agora tingidos de um prata etéreo.
— Você rompeu o Círculo, — disse Kaleorn, surpreso.
— Ontem à noite, — ela respondeu. — A simulação da distorção me levou ao 3º Círculo.
Ela agora era mais do que uma estudiosa: era uma rastreadora da própria Arkheia viva.
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Sistema de Governo de Edevan
Na sala de reuniões ao lado, Seneth explicou a um dos comandantes recém-chegados:
— A Coroa decide o rumo.
A Assembleia Arcana molda a mente do Império — conhecimento, magia, verdade.
E o Conclave... é a espada.
— E quem vigia os três? — perguntou o homem.
Seneth sorriu... —
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Na noite anterior à partida, Keven e Elyra conversavam em volta da fogueira nos jardins externos do Palácio, onde os suprimentos da expedição estavam sendo preparados.
— Nunca entendi bem essa coisa de círculos... — murmurou Keven. — Sei que estou no segundo, mas... o que realmente muda?
Elyra pasma, desviou o olhar dele e olhou para o céu suspirando e respondeu:
— A Arkheia é o tecido da realidade. Cada partícula dela é feita de quatro fios:
Mana, como o vento que carrega os feitiços.
Qi, como o pulso do corpo e da terra.
Essência Espiritual, a alma moldada em energia.
Éter, o reflexo da existência no além.
— Cada Círculo... — ela continuou — é uma engrenagem que refina o seu corpo com esse tecido. Mas ao subir, a própria realidade começa a resistir.
— E o 12º Círculo?
— Dizem que é onde a alma toca a origem. Mas ninguém chega lá sem pagar um preço, de acordo com as lendas, nao existem pessoas nesse nível... Pelo menos ate onde sabemos, o mundo e vasto, quem sabe o que realmente tem escondido por ai.
Ja nos preparativos finais antes da expedição, enquanto observavam os mapas da rota da floresta, Elyra divagava com Keven:
— O impérios de Aevaronn é o coração. Edevan, a mente. Dalrath, a fé. Ellvanor, as mãos.
— Tiar’Kel são os ossos — duros, inexplorados, orgulhosos.
— Mas Vel’Dharos... é o eco. Um sussurro que não existe mais.
Keven apontou para o vazio no mapa, o centro da floresta.
— E Mavernia?
— É o véu entre o que foi esquecido e o que nunca deveria ser lembrado. Disse com conhecimento de causa mas sem querer se aprofundar.
Com tudo preparado, Seneth entregou pessoalmente um códice selado a Kaleorn.
— Deixe Elyra estudar isso. Mas a faça queimar após leitura.
Era um pergaminho de Ellvanor, traduzido pelos magos de Dalrath.
Era um pergaminho curto, amarelado e enrrolado, abrindo levemente Kaleorn leu o breve conteúdo que dizia:
“Quando a realidade tremer em silêncio...
...o Coração Sem Tempo caminhará entre folhas.
E onde seus pés tocarem, nem a Arkheia ousará fluir.”
Kaleorn soltou um suspiro curto.
— Superstições. Tanto mistério pra isso?
Seneth apenas mostre a ela e queime.
Kaleorn assentiu mas não respondeu. Não insistindo no assunto e se apressando pra partir logo.
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Na manhã da partida, o grupo da expedição cruzou a Praça dos Quatro Ventos.
O povo se afastava para abrir passagem assim que viam os longos mantos negros presos com a insígnia do Conclave.
Mas, entre a multidão na rua movimentada pelas barracas, um casal encapuzado caminhava na direção oposta.
As mãos estavam dadas, os passos suaves. Os mantos cinzentos os escondiam... bem, quase.
Elyra que seguia o grupo, parou por um instante. Olhou para o homem encapuzado — alto, de postura serena, barba nao tao longa e cabelos negros soltos, cobrindo parte do rosto. Seus olhos... cor de âmbar acinzentado, profundos como a noite antes do tempo.
Quando os olhos dele encontraram os dela, a Arkheia ao redor pareceu pausar.
Um pássaro caiu morto do céu, sem ferimentos. Um sussurro do desequilíbrio.
— Você viu aquilo? — perguntou Keven.
— ...Vi.
Mas quando olharam novamente, o casal não estava mais lá.
A luz da manhã atravessava as frestas entre as árvores, dançando sobre o chão coberto de musgo da clareira. A casa construída por Ryn, feita de madeira escura e bem polida, exalava o aroma fresco de resina e ervas secando em cordas penduradas. O som de uma panela borbulhando vinha da cozinha aberta, junto ao estalar do fogo que aquecia a chaleira.
Eluinya estava ajoelhada perto da lareira, mexendo algo dentro de uma tigela com um sorriso suave no rosto. Seu longo cabelo negro, que escorria até a cintura, estava preso de forma improvisada com um laço de couro. A blusa simples de linho pendia suavemente de seu ombro, e sua silhueta era tão familiar àquela casa quanto o próprio cheiro de madeira fresca.
— Você queimou o chá da manhã ontem — disse ela, lançando um olhar de canto para Ryn, que à observava calado da varanda, encostado em uma viga.
Ele não respondeu. Seu olhar ia do vapor saindo da panela para ela. Então desviou, fingindo desinteresse.
— Eu disse que chá não precisa ferver como se fosse poção de guerra — ela continuou, divertida.
Ryn soltou um suspiro leve, caminhando para dentro da casa secando as mãos num pano surrado.
— A culpa foi da lenha — murmurou, sem emoção.
Eluinya riu baixinho, balançando a cabeça.
— Claro, claro... sempre a lenha. Nunca você.
Ela sabia que ele se importava. Mesmo com sua aparência indiferente, ele notava cada detalhe — a temperatura certa da água, o tipo exato de flor seca que ela gostava no chá. Sabia que, se ela espirrasse de manhã, no dia seguinte a cama teria uma nova pele de animal que ele mesmo caçara para aquecê-la melhor.
— Falando nisso... — ela ergueu os olhos. — Estamos ficando sem raízes de lúcia e frutas de inverno. Se formos até a cidade, talvez encontremos frescas.
Ryn fez uma careta discreta, como se fosse um fardo ir até a cidade. Mas ela já conhecia aquele olhar.
— Eu posso ir sozinha, se preferir — provocou.
Ele estreitou os olhos dourados para ela.
— Não.
Ela arqueou uma sobrancelha, já esperando a resposta.
— Hm... que surpresa.
Ele se virou lentamente para pegar o manto pendurado ao lado da porta.
— Você se perde até na trilha de casa. Vai acabar caindo em um buraco e me dando trabalho. — Disse ele enquanto amarrava os longos cabelos num coque desalinhado.
— É isso ou... — ela se aproximou, o olhar brincalhão
— ...você só gosta da minha companhia.
Ele lançou um olhar frio, mas seus olhos o traíam com um calor contido.
— Hm.
Eluinya riu.
— Te peguei.
E então, como sempre faziam, saíram juntos pela trilha que cortava a floresta. Os animais afastavam-se silenciosamente quando sentiam a presença de Ryn, e mesmo as árvores pareciam inclinar levemente os galhos quando ele passava.
Vestiam-se com mantos de capuz, simples e largos, para não chamarem atenção. Ainda assim, era difícil não reparar neles — principalmente nela. Mesmo encapuzada, sua beleza tinha um brilho que desafiava o olhar comum.
Chegando à cidade mais próxima, o mercado estava vivo com vozes, aromas e sons de carruagens de carga. Ryn caminhava sempre de mãos dadas ao lado dela, em silêncio, como uma sombra que observava tudo. Seus olhos não descansavam um segundo. Cada vez que alguém desviava o olhar para Eluinya, ele notava.
E então aconteceu. Um rapaz — talvez um dos aprendizes de algum boticário — olhou direto para ela, hipnotizado.
Ryn parou de andar.
Eluinya sentiu o movimento e segurou o braço dele com delicadeza.
— Amor, não. Deixa. Ele nem viu direito...
Mas era tarde.
O rapaz piscou uma, duas vezes. E caiu, desmaiado, como uma marionete sem cordas.
Ryn seguiu andando como se nada tivesse acontecido.
Eluinya segurava o riso, enquanto cochichava ao lado dele:
— Você é impossível.
— Ele olhou demais — respondeu Ryn, com neutralidade impassível.
— Eu sou sua, não preciso desse show todo... — ela apertou o braço dele — ...mas ainda assim, é fofo. A sua maneira.
Ryn a olhou de lado, sem expressão, mas desviou rapidamente o olhar.
Eluinya sorriu. Ele não admitiria nunca — mas ela sabia.
A cidade seguia seu ritmo enquanto eles compravam os ingredientes calmamente. O sol passava por entre as nuvens quando, ao cruzarem a praça central, Ryn parou por um segundo. Seus olhos dourados se fixaram adiante.
Eluinya também sentiu o olhar de Ryn pra alguem na multidão mas nao prestou atenção.
A frente, as pessoas começaram a abrir caminho, a sensação era densa. Uma energia coletiva, refinada, vindo de pessoas com treino. A equipe de expedição do Conclave estava ali.
Kaleorn, Elyra, Keven e os outros estavam parados ao lado de uma carruagem de suprimentos. Elyra virou-se levemente — e os olhos se cruzaram.
Silêncio.
Ryn não disse nada e desviou o olhar por um breve momentoe seguiu seu caminho. Mas o para Elyra, naquele breve momento, naquele rapido olhar o tempo pareceu pausar por um momento.
Eluinya segurou seu braço, firme.
O pássaro que voava acima da praça caiu, seco, sem vida. Nenhuma ferida. Nenhuma explicação.
As pessoas ao redor não perceberam o que aquilo significava.
Ryn e Eluinya já estavam dobrando uma esquina, sumindo por entre a multidão.
E por trás da rotina tranquila, algo sutil mudava.
O céu estava limpo, o clima sereno. Mas, no fundo, a Arkheia se remexia como um véu antes da tempestade.
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As últimas luzes do dia filtravam-se por entre as árvores colossais que formavam a entrada natural da Floresta de Mavernia. A expedição de oito membros caminhava em silêncio, os passos cada vez mais cautelosos conforme a vegetação se adensava.
Kaleorn ergueu a mão, pedindo parada.
— Acampamos aqui. Ainda estamos no limite externo.
— Estranho — murmurou Keven. — O ar muda quando a gente chega perto. É como se… ficasse mais denso.
Elyra parou ao lado de uma raiz elevada e abriu o grimório.
— É a Arkheia. Silenciosa, mas... densa. Essa pressão é como se algo estivesse nos observando.
— Como tudo por aqui — comentou Noelle, ajustando a lâmina curta na cintura.
Gerian deu um passo à frente.
— É só uma floresta. E a gente tá preparado.
— É só até não ser — retrucou Lioren, afinando a harpa sem olhar pra ninguém.
Tarn e Aria preparavam o perímetro. As tochas espirituais acesas formavam um círculo suave, quase tímido, como se a luz pedisse licença.
— Alguma alteração nas runas? — perguntou Kaleorn, olhando de relance para Elyra.
— Nenhuma significativa. Mas... parece que algo adormecido está por perto.
— Então amanhã seguimos com cautela.
[– Interior da casa de Ryn]
O aroma da lenha queimando misturava-se ao de alho selvagem refogado em óleo claro. A cozinha de madeira trabalhada vibrava com calor caseiro. Panelas tilintavam, e do lado da lareira, Ryn cortava raízes com precisão.
— Vai ferver tudo se continuar nesse ritmo — disse Eluinya, mexendo com a colher de madeira, rindo. Seu cabelo negro, sedoso e liso, deslizava até a altura das coxas, balançando levemente a cada passo.
Ryn não respondeu, mas olhou de relance. Um segundo a mais do que costumava.
— Tá me olhando de novo?
Ele pigarreou.
— Só... tava vendo se a água já borbulhou.
Ela se aproximou com um sorriso travesso.
— E borbulhou?
— Ainda não.
Ela apoiou o queixo no ombro dele, abraçando-o por trás.
— Eu gosto quando você me olha assim. Mesmo quando tenta disfarçar.
Ele parou por um momento, observando as mãos dela em torno de sua cintura.
— Eu não disfarço. Só... olho rápido.
Ela riu, beijou sua bochecha e voltou para o fogão.
— Rápido demais pra ser sem intenção.
Depois do jantar, ele tirou a mesa e lavou a louça com a agua que estava em uma bacia.
Com a cabeça pra fora da porta do banheiro ela o chamou com um aceno sutil.
— O banho tá pronto. Vem.
Ele hesitou por um momento tao rapido quanto um piscar de olhos e caminhou até la, olhando a tina de madeira fumegante. Eluinya no banheiro estreito já tirava o robe com naturalidade, como se aquela intimidade fosse tão habitual quanto respirar. E para ela, era.
Ryn a seguiu, tirando o manto surrado e entrando na água com cuidado atrás dela. Silêncio entre eles, mas não desconforto. Ela encostou-se com as costas em seu peito e a cabeça em seu ombro fechando olhos e suspirando sentindo todo o cansaço acumulado se esvaindo.
— Você sempre foi quieto. Mas aqui... — ela sussurrou — ...é onde você fala mais comigo. No silêncio.
Ele apenas ergueu o braço, envolvendo-a devagar em um abraço.
— E você... fala até com o coração. beijando o lóbulo da orelha dela fazendo-a se encolher de arrepio e lançando um olhar afiado de canto enquanto Ryn sorria com um olhar cúmplice.
Na cama, envoltos em peles suaves e travesseiros de algodão selvagem, ela se aconchegou no peito dele, com a perna encima de sua barriga se aninhando pra dormir.
— Quando me olha daquele jeito... ainda me sinto bonita — disse, brincando com mamilo dele.
Antes que o dedo dela desse uma volta completa a mão dele parou a dela em um movimento rápido, puro reflexo e olhos fechados, se o rosto não estivesse corado o traindo.
Abrindo os olhos e olhando diretamente pra ela ele disse:
— Você não é bonita. É... tudo.
Ela sorriu, os olhos semicerrados.
— hehe...
Ele não respondeu. Apenas fechou os olhos, puxando-a mais para perto, sentindo o calor dela contra o peito. O mundo podia não importar. Mas aquele momento, sim.
[– Acampamento da expedição]
A noite havia caído por completo. A fogueira agora era só brasa baixa. Keven olhava para dentro da floresta, atento demais.
— Parece que tem olhos ali dentro.
— Tem — disse Elyra, sem desviar os olhos do grimório.
— Alguém já retornou dessa floresta? — perguntou Aria.
Kaleorn respondeu sem emoção:
— Ninguém.
Tarn ajeitava o arco.
— Então a gente vai ser os primeiros.
— Ou os últimos — murmurou Lioren, os dedos dedilhando uma nota seca.
O vento soprou de leve, e a névoa parecia ouvir tudo.
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