A capela gótica, erguida há mais de um século, exalava um silêncio pesado, quase sagrado. As paredes de pedra escura absorviam as vozes baixas e os passos apressados que ecoavam entre os vitrais coloridos, tingindo a luz suave com tons vermelhos e dourados. Vincenzo Castellazzo, o lendário Dom da família, havia partido, deixando um vazio que ameaçava engolir todo o império que construíra com mão de ferro.
Dentro daquele santuário sombrio, dezenas de rostos marcados pela vida nas sombras da máfia se alinhavam, misturando tristeza e respeito. Homens de terno preto, algumas mulheres em vestidos discretos, todos em luto, alguns de pé, outros sentados, aguardando o início do funeral que selaria o fim de uma era.
No centro daquele turbilhão de olhares, estava Enzo Castellazzo. Seu rosto carregava a expressão rígida do líder que precisava se manter forte para todos, mesmo quando o coração grita em silêncio. Ele segurava com firmeza a mão trêmula de Mi Sum, sua esposa. A mulher que, mesmo com a aparência delicada, sempre fora a rocha da família. Agora, seu rosto pálido e os olhos marejados denunciavam uma dor profunda, quase física, causada pela ausência do sogro, a quem ela amava como um pai.
Leonardo Sum Castellazzo estava parado próximo a uma das colunas, os braços cruzados, o queixo levemente levantado, observando o cortejo e os rostos que passavam. Com seus 32 anos recém-completados, ele não era mais um garoto, mas também não havia vivido o suficiente para entender completamente o peso que carregava agora. O futuro Dom, o herdeiro do trono manchado de sangue e poder, precisava demonstrar que estava à altura.
O olhar de Leonardo percorria a multidão, captando sussurros de apreensão e olhares críticos. Alguns capos tradicionais murmuravam que ele ainda era imaturo, inexperiente para o cargo. Outros o observavam com expectativa, como se a sorte da família dependesse inteiramente daquele jovem que parecia carregar a sombra do avô a cada passo que dava.
Enquanto os discursos iniciavam, Leonardo sentiu um peso invadir seu peito, uma mistura de saudade, responsabilidade e um medo silencioso que ele jamais admitiria. Enzo, ao seu lado, falou com uma voz firme, mas carregada de emoção contida.
— Meu pai foi mais que um líder. Foi o pilar desta família e da nossa honra. Perder Vincenzo é perder parte de nós. Mas a vida não espera por luto. Leonardo, chegou a hora de você assumir o que é seu por direito.
Leonardo inclinou a cabeça num gesto silencioso, absorvendo as palavras do pai, consciente de que a promessa de poder vinha junto com o risco constante da morte.
Depois do funeral, a cerimônia de despedida deu lugar à reunião na mansão Castellazzo, uma construção antiga que misturava a austeridade italiana com delicados detalhes orientais, um símbolo vivo da fusão das raízes coreanas e italianas da família. O salão principal estava cheio de homens e mulheres que, mesmo vestidos de preto, exibiam o brilho frio do poder e da ambição.
Camila Castellazzo, a matriarca, avó de Leonardo, fazia esforço para manter a postura. Antes uma mulher forte, decidida e presença constante nas decisões da família, agora estava abatida. A morte do amado Vincenzo a tinha deixado frágil, como uma rosa que começava a murchar. Seu olhar distante mostrava que a dor ainda dominava seus pensamentos.
Guiullianna Castellazzo Ferrari, irmã mais velha de Leonardo, casada com Lorenzo, estava ao lado da avó, com a postura firme que sempre a caracterizou. Ela sabia que, mais do que nunca, precisava ser a ponte entre a tradição da família e a renovação que Leonardo representava.
Mais tarde, na biblioteca particular da mansão, Leonardo se reuniu com Enzo. O pai sabia que seu tempo como Dom havia terminado, mas também entendia que não poderia abandonar a família nem suas empresas. Ainda assim, decidiu deixar para trás o lado mais sombrio do império — o controle da máfia — e passar o bastão ao filho.
— Meu filho — começou Enzo, a voz grave e pausada —, vou cuidar da mãe e das nossas empresas legítimas. Mas o submundo... esse é seu reino agora. Você terá que ser mais do que um homem. Precisa ser um símbolo. Forte, astuto e implacável.
Leonardo sentiu o peso dessas palavras como um golpe. Assumir o comando da máfia significava não apenas tomar decisões difíceis, mas carregar o destino de muitas vidas, inclusive das pessoas que amava.
No silêncio da sala, enquanto os relógios marcavam as horas com precisão implacável, Leonardo encarou o escritório do avô, uma mesa imponente de carvalho com mapas de territórios, registros de operações, e fotografias antigas da família. Ali estava o legado que ele deveria preservar.
Quando se preparava para estudar os documentos, a porta se abriu lentamente, revelando uma mulher de olhar intenso e postura desafiadora. Seus cabelos escuros caíam em ondas suaves sobre os ombros, e seus olhos carregavam uma mistura de fogo e mistério que parecia desafiar até o próprio destino.
— Não será fácil, Leonardo — sua voz era firme, mas carregava uma nota quase provocativa.
Leonardo levantou o olhar, surpreendido, e respondeu com a mesma determinação que começava a se formar dentro dele.
— Estou pronto para isso.
Um sorriso sutil tocou os lábios dela.
— Veremos.
A presença de Alessandra anunciava que, para além da herança e do poder, Leonardo teria que enfrentar desafios pessoais que poderiam abalar não só a família, mas o próprio coração.
O jogo tinha começado — e nenhum movimento seria inocente.
O amanhecer chegou cinzento sobre a cidade de Milão, refletindo o clima de tensão que pairava sobre a família Castellazzo. As ruas ainda despertavam lentamente, mas dentro da mansão ancestral a movimentação já era intensa. Leonardo, agora de pé antes do sol nascer, caminhava pelo corredor largo que ligava seu quarto ao escritório do avô, onde já passava horas estudando mapas, contas e relatórios das operações da máfia.
O peso da responsabilidade não era apenas uma sensação abstrata — era uma presença constante, uma sombra que o seguia a cada passo. A morte do avô tinha aberto uma brecha de poder que precisava ser fechada rapidamente, antes que inimigos aproveitassem para atacar.
Enquanto caminhava, Leonardo pensava nos homens que antes juraram lealdade a Vincenzo, mas que agora olhavam para ele com ceticismo. Em particular, uma figura surgia em sua mente: Fabrizio Leone, um dos capos mais antigos e influentes da família, conhecido pela ambição disfarçada de respeito. Leonardo sabia que sua autoridade ainda não era aceita por todos.
Ao chegar ao escritório, encontrou seu irmão Victor já reunido com dois capangas, revisando uma lista de nomes. Victor, cinco anos mais novo, já estava treinado para as operações de segurança, mas ainda mantinha um brilho de juventude que Leonardo invejava silenciosamente.
— Leonardo — Victor chamou, com voz firme mas com um leve tom preocupado —, precisamos conversar. Fabrizio está armando algo. Hoje mesmo. Ele não aceita você como Dom.
Leonardo franziu a testa. Sabia que os desafios começariam por dentro, não apenas com inimigos externos. A lealdade era um luxo raro.
— Quero detalhes — ordenou.
Victor entregou um papel amassado, com alguns nomes e endereços. Um plano para atacar uma de nossas casas de apostas em Turim, uma fonte importante de dinheiro. Se Fabrizio conseguir desestabilizar as finanças, vai enfraquecer a confiança da família em mim.
Leonardo respirou fundo. Era a hora de agir, e rápido.
Convocou uma reunião de emergência com seus irmãos e os capos mais próximos. A sala de reuniões, adornada com quadros que mostravam gerações de Castellazzo, agora abrigava um cenário tenso: homens e mulheres acostumados a temer e respeitar Vincenzo, agora mediam suas palavras cuidadosamente, enquanto avaliavam o jovem que se declarava Dom.
— Fabrizio Leone está preparando um ataque — anunciou Leonardo, sem rodeios. — Queremos neutralizá-lo antes que ele cause danos.
Guiullianna, sua irmã mais velha, que sempre fora uma estrategista nata, cruzou os braços e falou com calma:
— Precisamos agir com inteligência. Um ataque aberto pode provocar uma guerra interna. Talvez possamos negociar uma saída honrosa para ele.
Leonardo olhou para ela, sabendo que sua irmã tinha razão. Mas aquele era um momento onde força e firmeza precisavam caminhar juntas.
— Ele não aceita meu comando — continuou Leonardo —. Isso não é negociação. É uma questão de respeito e ordem.
Victor assentiu, apoiando o irmão.
— Eu vou liderar a operação — disse Leonardo, encarando cada rosto ao redor da mesa. — Quero que seja rápido e limpo. Nada de derramamento de sangue desnecessário, mas se precisar... não hesitarei.
As palavras saíram firmes, mas Leonardo sentia o frio da tensão que crescia em seu peito.
Nos dias seguintes, os movimentos da máfia tornaram-se frenéticos. Leonardo participou pessoalmente do planejamento das estratégias, mostrando que não seria um Dom distante. Ele sabia que precisava provar sua força, mas também manter a cabeça fria.
Durante uma noite chuvosa, Leonardo e um pequeno grupo de homens fiéis partiram para Turim. A casa de apostas estava cercada por guardas leais a Fabrizio. A operação exigia precisão cirúrgica: tomar o controle da casa sem alertar os rivais para evitar uma escalada.
O silêncio da noite era cortado apenas pelo som abafado dos passos e do contato firme das armas. Leonardo sentiu o pulso acelerar, mas sua mente permaneceu afiada.
No momento exato, ordenou a invasão. Os homens entraram com rapidez, dominando os guardas e assegurando o local.
Fabrizio foi capturado no escritório, surpreso por ver Leonardo à sua frente.
— Você não está pronto — rosnou Fabrizio, tentando manter a compostura.
— Talvez — respondeu Leonardo, a voz baixa e controlada —, mas já aprendi que quem hesita perde.
Com um gesto, ordenou que seus homens o levassem para um local seguro —
A noite caiu densa sobre a mansão secundária dos Castellazzo em Gênova. O céu sem estrelas parecia compactuar com o silêncio sombrio que dominava a propriedade. Nos porões frios de pedra, o ar era úmido, pesado, e o som de passos ecoava como uma sentença.
Leonardo desceu calmamente os degraus, com um casaco preto sobre os ombros e as mangas dobradas até os antebraços. Seus olhos estavam escuros, sem emoção. Era o olhar de um homem que já decidira o destino de outro.
Fabrizio estava amarrado a uma cadeira no centro da sala, ferido, mas ainda altivo. Tentava manter a pose de quem não se arrepende. Mal sabia ele que aquela seria a última vez que teria esse direito.
Leonardo parou diante dele, os olhos fixos nos seus.
— Você teve todas as chances — disse, com voz baixa, firme. — Traiu a minha confiança. Tentou derrubar minha família. Você ousou me testar. Agora vai aprender o que significa tocar em um Castellazzo.
Fabrizio cuspiu no chão, mesmo com a boca inchada.
— Você não é seu avô.
Leonardo então tirou o casaco, dobrando-o cuidadosamente e o entregando a Victor, que assistia em silêncio.
— Eu sou pior — respondeu, antes de golpear Fabrizio com o punho fechado, fazendo o homem cambalear preso à cadeira.
O som dos socos secos e firmes preenchia o espaço. Leonardo não gritou, não perdeu o controle. Cada movimento era calculado, preciso — não apenas punição, mas lição.
Quando o sangue escorreu do nariz quebrado de Fabrizio, Leonardo parou, se abaixou e sussurrou:
— A partir de hoje, todos vão saber que o novo Dom pune com as próprias mãos. Que não precisa de carrascos. Eu sou o juiz, o veredicto... e a sentença.
Fabrizio tentou falar, mas apenas tossiu sangue. Leonardo se ergueu, respirou fundo e, sem olhar para trás, disse:
— Levem-no. Que desapareça. Como o respeito por ele desapareceu.
E saiu da sala com passos firmes. O Dom havia se revelado. E a máfia agora sabia: Leonardo Castellazzo não era uma promessa. Era um reinado.
Ao retornar à mansão, Leonardo sentiu que, apesar da vitória, havia apenas começado a provar seu valor. A sombra do avô ainda pairava, e a confiança dos homens ainda era uma montanha a escalar.
Mas ele estava pronto para isso.
A mansão Castellazzo ainda despertava quando Leonardo se levantou. Os primeiros raios do sol atravessavam as janelas altas com moldura de ferro, iluminando os corredores de mármore com uma luz amarelada e suave. A casa, construída com heranças italianas e toques orientais deixados por Mi Sum, era um reflexo das muitas gerações que nela viveram — mas agora, cada cômodo parecia carregar o peso do silêncio, do luto e da ausência.
Era a primeira manhã desde que Leonardo impusera o castigo com as próprias mãos. Fabrizio Leone agora era apenas um lembrete aos olhos da máfia de que desobedecer o novo Dom teria consequências — rápidas e impiedosas. Mas o sangue derramado não preenchia o vazio que o luto deixara. Aquele não era um dia de guerra. Era um dia de família.
Leonardo desceu para o andar térreo e encontrou os irmãos na cozinha. Mariana estava sentada na bancada, mexendo o celular com expressão entediada. Victor preparava café do jeito que ele achava que era profissional, enquanto Yng, como sempre, estava afundado no notebook, monitorando câmeras, e-mails e redes clandestinas.
— Bom dia — disse Leonardo, entrando de forma casual, apesar da autoridade silenciosa que carregava até no pijama de algodão.
— O milagre da sua presença sem gravata — comentou Mariana, levantando uma sobrancelha. — Eu já estava achando que você dormia com ela.
— Não dava tempo de tirar ontem — respondeu ele, pegando uma caneca. — Tive que ensinar uma lição.
Victor lhe estendeu o café.
— E a lição foi bem dada, pelo que os boatos dizem. A lealdade tá voltando aos poucos... Mas a vovó...
— Nona — corrigiu Leonardo, baixando o tom de voz. — Ela ainda não saiu do quarto?
Yng fechou o notebook.
— Não desde o enterro. Recusou o almoço ontem. A comida que mandaram pro quarto voltou intacta.
Leonardo encarou os irmãos por um momento. A imagem de Camila Castellazzo — sua nona — era uma das mais sólidas que ele tinha da infância. Ela não era apenas a esposa de Vincenzo. Ela era a rainha por trás do rei. Forte, destemida, a única capaz de encarar o velho Dom e mandar ele calar a boca sem temer consequências. Durante anos, ele a ouvira chamar Vincenzo de “senhor convencido”, como quem disfarça amor profundo com ironia carinhosa.
Agora, sem ele, a mulher que atravessou guerras, traições e perdas, parecia encolhida.
Leonardo terminou o café em silêncio e subiu as escadas. Os passos firmes e lentos carregavam a mistura de preocupação e saudade. Parou em frente à porta de madeira esculpida com o brasão Castellazzo, bateu duas vezes e falou com ternura:
— Nona... sou eu. Posso entrar?
O silêncio foi longo. Mas então veio um leve “entra”, quase um suspiro.
Leonardo abriu devagar. O quarto estava com as cortinas semiabertas, permitindo que a luz filtrasse pelas bordas. Camila estava sentada na poltrona de veludo verde-escuro ao lado da janela, envolta em um xale. Nos braços, segurava uma das camisas antigas de Vincenzo, que ela ainda mantinha perto, como se o cheiro fosse uma âncora contra a dor.
— Trouxe café. Tá um pouco amargo, Victor ainda não acertou a mão — ele disse, tentando arrancar um sorriso.
Camila ergueu os olhos para ele. Estavam vermelhos, cansados. Mas ainda havia um brilho discreto neles. A força adormecida que Leonardo tanto admirava.
— Ele era um teimoso, sabia? — ela disse, com a voz embargada. — Sempre achou que ia morrer em pé. Nunca me deixou imaginar a casa sem ele. E agora... é só isso.
Leonardo se ajoelhou diante da nona e segurou suas mãos com cuidado. Eram mãos frágeis, mas com a pele marcada pela vida. Mãos que seguraram armas, remédios, filhos e netos.
— Eu sinto falta dele também, Nona. Todos nós sentimos. A casa parece diferente. Até o silêncio soa mais alto.
— Cinquenta e dois anos de casamento — ela murmurou. — E ele continuava me chamando de mulher geniosa. E eu... eu dizia que ele era o senhor mais convencido da Itália. Deus, como ele era!
Ela riu entre lágrimas. Um riso curto, dolorido, como se a lembrança machucasse e curasse ao mesmo tempo.
— Ele te amava, Nona. Isso todo mundo sabia. Mesmo quando fingia que estava mandando, era você quem ditava o rumo das coisas.
— Eu não era nada sem ele, Leonardo.
— Não diga isso — respondeu, com firmeza. — A senhora foi e é o coração da nossa família. Meu avô pode ter sido o Dom, mas a senhora foi o equilíbrio, o escudo, a verdade. O que a gente tem hoje só existe porque vocês foram um time.
Ela soltou um longo suspiro.
— E agora?
— Agora eu carrego o nome, mas eu ainda preciso da senhora ao meu lado. Como meu conselheira. Como minha nona.
Ela o olhou nos olhos por longos segundos. Então pousou a mão enrugada no rosto dele, acariciando com o polegar.
— Você tem os olhos do seu avô quando ele estava furioso... e o coração da sua mãe quando ele se acalmava.
Leonardo sorriu.
— Então estou no caminho certo.
Ela fechou os olhos por um instante e, com esforço, levantou-se da poltrona.
— Me ajuda a descer?
Leonardo a apoiou com delicadeza. Desceram juntos as escadas, e quando chegaram à sala de estar, Mariana soltou um gritinho surpreso.
— Nona?!
Victor saiu correndo com a bandeja de frutas e Yng apenas fechou o notebook com um sorriso discreto.
Camila parou diante deles, respirou fundo e disse:
— Alguém me arruma um chá decente? O da bandeja ontem parecia água de enxágue.
Todos riram, até Mariana, que correu para preparar a infusão como a avó gostava. Leonardo a observou com o peito mais leve. Ela estava ali. Frágil, sim. Mas viva. E isso bastava por enquanto.
Talvez ele não tivesse o luxo de parar, mas por um instante, permitiu-se apenas ser o neto. Porque, mesmo na guerra, a família era seu refúgio — e sua razão.
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