...OBSERVAÇÃO: Eu não gosto de imagens nos meus livros. NÃO É GIBI. Se você gosta de livros com fotos, não leia meus livros. Só coloquei no final em alguns, porque algumas pediram. Mas eu não gosto, detesto. Prefiro que imaginem os personagens com os detalhes que eu dou. ...
Naquela tarde abafada, o sol já baixava no horizonte, tingindo as calçadas rachadas de dourado sujo.
O cheiro agridoce de comida vencida se misturava ao odor persistente de gordura velha, vindo da lixeira metálica nos fundos de um restaurante fino. Ali, com os joelhos no chão encardido e os dedos delicados sujos de resíduos, estava Cleia.
Era uma figura que destoava daquele cenário miserável. Seu rosto, apesar da fuligem e do cansaço, exibia uma beleza que o mundo insistia em ignorar. Tinha olhos azuis tão intenso que pareciam violetas sempre atentos, sempre desconfiados. Sua pele clara trazia marcas de sol e frio, mas ainda conservava um viço surpreendente.
Os cabelos, presos de forma desajeitada, como folhas outonais tocadas por ouro.
Cleia não nasceu ali.
Antes, havia uma casa.
Havia uma família.
Os pais se foram cedo demais. A dívida da casa engoliu tudo, seu passado a destruiu e ela acabou ali - aprendendo a se defender, a endurecer a alma, sozinha, faminta e sem esperança.
Aprendeu a se defender, a não chorar, a não confiar.
O lixo se tornou sua despensa.
Naquele instante, encontrou algo raro: restos de uma refeição quase intacta. Um pedaço de frango grelhado, algumas batatas ainda crocantes, e até um pão macio com queijo derretido. Um verdadeiro banquete.
Ela se sentou sobre a calçada e começou a limpar cuidadosamente a comida com a barra do moletom suja, ajeitando cada item como se fosse sagrado.
Ergueu os olhos um instante, contemplando a rua quase deserta à frente do restaurante.
E então viu.
Um Bentley preto e reluzente estacionava na calçada oposta.
Um motorista uniformizado abriu a porta traseira e de dentro saiu um senhor idoso, elegante em um terno cinza de corte refinado, bengala de madeira escura na mão. Ele olhava para o celular, distraído, e começou a atravessar a rua devagar, com passos arrastados.
Foi nesse momento que Cleia ouviu o grito abafado de pneus cantando.
Um carro preto vinha em velocidade — talvez não esperasse ver alguém atravessando ali.
Sem pensar, largou a comida no chão, o estômago roncando de revolta. Saltou como uma flecha, atravessando a rua em segundos, o coração disparado. Quando alcançou o velho, empurrou-o com força suficiente para jogá-lo no chão, mas a tempo de tirá-lo da rota do carro que passou a centímetros deles, buzinando tarde demais, com o motorista gritando algo que ninguém ouviu.
Ela caiu ao lado dele, as mãos arranhadas no asfalto, os joelhos ralados, a respiração ofegante. Por um segundo, tudo silenciou.
O velho tossiu e tentou se erguer, confuso. Ela olhou para ele e soltou, entre uma risada nervosa e um gemido de dor:
— O senhor é tão rico… mas muito desatento, viu?
Dois seguranças vieram correndo em pânico, chamando pelo idoso, que ainda estava caído com a bengala ao lado.
Quando viram Cleia ali, quase deitada no chão ao lado dele, se prepararam para tirá-la dali, julgando-a uma ameaça ou uma pedinte inconveniente.
Mas o senhor levantou a mão, pedindo calma.
Seus olhos; olhos experientes, acostumados a julgar homens e negócios estavam fixos nela.
Não com medo, mas com interesse e até admiração.
— Ela me salvou. - Disse ele, erguendo-se com a ajuda da bengala. Depois se virou para Cleia: — Qual é o seu nome, garota?
Ela hesitou por um segundo, depois disse com firmeza:
— Cleia, senhor.
O homem sorriu, como se tivesse acabado de encontrar algo que há muito procurava.
E os seguranças, confusos, recuaram.
O idoso ajeitou a bengala, ainda ofegante do susto, e encarou Cleia com uma expressão firme, mas gentil.
— Tenho uma gratidão com você, menina. - Disse, a voz grave, mas carregada de respeito.
Cleia se encolheu levemente, incomodada com a atenção repentina. Seus olhos desviaram dos dele por um instante.
— Não foi nada... - Respondeu, encolhendo os ombros e dando um passo para trás: — Preciso ir.
Mas ela mal teve tempo de se virar. De imediato, quatro seguranças se moveram Como sombras, surgindo em sua frente e nas laterais, cercando-a com firmeza, mas sem hostilidade.
Ainda assim, seus músculos se retesaram. Ela conhecia o cerco. Sabia o que era ser encurralada, mesmo que por "cortesia'.
Um deles até levantou a mão em um gesto educado, mas firme, pedindo que ela aguardasse.
Cleia, de instinto aguçado e acostumada a lidar com ameaças, enrijeceu o corpo, pronta para correr se necessário. Mas seus olhos se fixaram novamente no velho. Ela não via perigo nele. Apenas autoridade.
E uma curiosidade difícil de definir.
— Na família Castelier... - Disse o idoso com uma voz que agora ecoava como uma ordem sagrada: — ninguém é ingrato.
A palavra "Castelier" soou estranha nos ouvidos de Cleia. Algo antigo, importante. Ela não sabia quem eram, mas aquilo soava como um Sobrenome que abriria portas ou trancaria cofres inteiros.
Ele deu dois passos à frente.
— Venha comigo até ali. - Apontou com a cabeça em direção à entrada elegante do restaurante, cujas portas de vidro espelhado refletiam os carros caros na rua: — Deve estar com fome.
Cleia hesitou. Seu orgulho gritou para recusar. Ela balançou a cabeça, tentando manter a pose.
— Não estou... - Começou a dizer, mas nesse instante, o próprio corpo a traiu.
Um ronco alto, vindo de seu estômago, interrompeu a frase e preencheu o silêncio. Ela arregalou os olhos, surpresa e vermelha de vergonha.
O velho sorriu.
Ela sabia o que um convite podia esconder. Observou os ternos alinhados, os olhos atentos dos seguranças com gestos Contidos, treinados.
O idoso seguiu seu olhar e notou as roupas gastas dela - O moletom largo, encardido, com pequenos rasgos, o jeans desbotado, os tênis furados.
Não zombou, não disfarçou.
Cleia riu de si mesma e ergueu o queixo, tentando recuperar a dignidade perdida.
— Tudo bem... - Disse com uma falsa arrogância debochada: — Mas aviso logo que não vou comer pouco.
Ele soltou uma risada curta, genuína.
— Melhor assim. Gente corajosa merece fartura.
Os seguranças abriram caminho enquanto ele a guiava com gestos tranquilos.
Ela caminhava ao lado dele, ainda se sentindo um peixe fora d’água, mas curiosamente segura.
As portas do restaurante se abriram automaticamente com um leve zumbido, revelando um ambiente luxuoso: lustres de cristal pendiam sobre mesas cobertas por toalhas de linho branco, garçons vestindo preto e branco moviam-se com precisão, e o aroma que saía da cozinha era tão intenso quanto sofisticado.
Os olhares dos clientes se voltaram imediatamente para a cena: o patriarca dos Castelier — um nome conhecido e respeitado nos círculos da elite — entrando no salão ao lado de uma jovem claramente vinda das ruas, com roupas rasgadas, sapatos gastos e sujeira nas mãos.
Murmúrios começaram a se espalhar entre as mesas.
Mas o velho ignorou todos.
— Mesa privativa. - Disse ele a um dos maîtres, que acenou respeitosamente e os conduziu para o andar superior, mais reservado.
Cleia seguia com passos contidos, os olhos absorvendo tudo como se estivesse em outro planeta. O mármore, as taças cintilantes, os talheres de prata... nada disso parecia ter espaço no mundo dela.
Mas, por algum motivo, ela não se sentia tão deslocada quanto esperava.
O ambiente no andar superior do restaurante era silencioso, envolto em um luxo quase intimidador. O som dos talheres era suave, controlado, e o aroma dos pratos refinados pairava no ar como um lembrete de exclusividade. As luzes eram quentes, refletindo nos espelhos dourados e nos cristais das taças.
O senhor Castelier ajeitava a bengala e sinalizava algo para o chefe de segurança e se afastou para dar instruções.
Mas antes que ela pudesse se acomodar, um homem alto e esguio, de terno impecável e cabelo lambido para trás, se aproximou com passos ágeis e olhar gélido. Era o hostes do restaurante.
Ele parou diante dos dois, o olhar indo diretamente para Cleia. O desdém em seu rosto era tão claro quanto a luz do lustre acima deles. Ele a examinou dos pés à cabeça, franzindo o nariz como se o simples fato dela estar ali fosse um insulto pessoal.
— Mocinha?! - Disse com uma voz envenenada de formalidade: — Peço que se retire. Não aceitamos pedintes neste estabelecimento.
Cleia arqueou uma sobrancelha e olhou diretamente para ele, firme como uma parede.
— Eu nem sei quem você é - Disse com sarcasmo, erguendo o queixo: — E sou uma convidada.
Nesse momento, o idoso, com um brilho nos olhos, olhou para o chefe de segurança e fez um leve gesto com a cabeça, afastando-se alguns passos, em silêncio.
Queria observar.
Queria ver como ela defenderia a si mesma.
O hostes zombou, com um sorriso torto que escorria veneno.
— Um prato aqui custa mais do que sua vida parece valer. A senhorita não pagaria nem com três anos de trabalho. Quem, em sã consciência, seria tão equivocado a ponto de convidá-la a um lugar tão requintado?
Cleia não se abalou.
Em vez disso, sorriu com desdém, o mesmo que ele havia lançado a ela segundos antes. Com uma elegância debochada, virou o corpo de lado e apontou com o queixo para o velho senhor atrás dela.
— Ele. Quem mais?
O hostes arregalou os olhos. O sangue fugiu de seu rosto como um rio voltando à nascente. Seus olhos correram para a figura conhecida de Anton Castelier, o patriarca da poderosa família que não apenas era presença rara, mas o dono do restaurante em que trabalhava.
— S-senhor Anton... - Gaguejou, empalidecendo.
Anton se aproximou com calma, apoiado na bengala, mas a voz saiu com firmeza de aço:
— Quem ensinou que, no meu restaurante, as pessoas são julgadas pela vestimenta?
O silêncio caiu como uma sentença de morte. O hostes, agora quase tremendo, curvou-se imediatamente para Cleia, com a testa já brilhando de suor.
— P-peço desculpas, senhorita. Foi um terrível engano da minha parte. Eu a servirei pessoalmente, se permitir. Mil perdões, senhor Anton.
Cleia ergueu uma sobrancelha, surpresa por dentro, mas manteve a compostura com uma naturalidade desconcertante. Ela fingiu não ter percebido a revelação do nome Anton Castelier, como se ele fosse apenas o velho gentil com um Bentley.
— Eu ia exigir isso mesmo, você só vai se safar porque estou faminta. Caso contrário, eu pediria que fosse demitido. - Respondeu com um sorrisinho vitorioso: — Até porque quem vai pagar, não sou eu. Então anda logo, estou com fome.
Com a cabeça erguida, ela caminhou até o assento reservado, suas roupas velhas e surradas fazendo contraste com o couro das poltronas e os arranjos florais impecáveis. Sentou-se como uma dama, mas com a audácia de quem nunca implora por espaço — apenas o ocupa.
Anton a seguiu devagar, com um sorriso nos lábios, um sorriso raro, quase nostálgico. Como se estivesse revivendo algo do passado, ou talvez presenciando o nascimento de algo grandioso.
O hostes, ainda curvado, enxugava discretamente o suor da testa com um lenço de linho branco, mal conseguindo conter o tremor nas mãos.
Naquele instante, ninguém mais naquele salão via uma moradora de rua.
Eles viam alguém que o próprio Anton Castelier escolheu trazer consigo.
E isso era suficiente para reescrever qualquer julgamento.
Cleia afundou-se na cadeira de couro com o corpo ainda um pouco tenso, as pernas cruzadas de maneira desajeitada, como quem não sabia se devia se acomodar ou estar pronta para correr a qualquer momento.
A textura macia da cadeira contrastava com o tecido áspero e encardido de sua calça surrada. Mesmo ali, naquele cenário de luxo absurdo, ela mantinha o queixo erguido e os olhos atentos.
O hostes retornou com o cardápio entre as mãos, agora completamente transformado. A arrogância de antes dera lugar a uma humildade quase teatral, seus movimentos cuidadosos demais, os olhos sempre baixos.
— Senhorita... - Disse em tom brando, como se falasse com a realeza: —... permita-me o cardápio da casa.
Entregou-lhe com as duas mãos, como se oferecesse um tesouro ancestral. Cleia o pegou e começou a folhear, os olhos varrendo as páginas com curiosidade crescente. As letras douradas brilhavam sob a luz suave, e as descrições dos pratos pareciam mais poesia do que culinária.
Os clientes nas mesas ao redor ainda lançavam olhares de julgamento. Murmúrios discretos, olhares que varriam a sua roupa e depois se voltavam uns para os outros com expressões escandalizadas.
Mas ela ignorava todos com a maestria de quem já se acostumou a ser invisível — ou indesejada.
Ela virou uma página e parou, os olhos arregalando-se como se tivesse acabado de encontrar um crime impresso.
— Tudo isso por um pedaço de carne? - Exclamou, chocada, falando alto o Suficiente para uma mesa vizinha tossir em protesto.
O hostes estremeceu.
— Cinco mil reais por uma carne mal passada? - Repetiu, agora erguendo o olhar com indignação cômica: — Tem gente que paga tudo isso por um bife quase cru?
O homem quase teve um pequeno infarto. Sua mão direita foi imediatamente ao peito, como se tentasse conter o impacto da heresia.
O rosto se contraiu em um misto de espanto e vergonha alheia.
Foi então que Nathaniel Castelier soltou uma gargalhada sonora. Rica, despreocupada, contagiante. O som preencheu o ambiente, e por um momento, todos os olhares se voltaram a ele — não mais para Cleia.
O patriarca estava se divertindo, como não fazia há anos.
— Não olhe o valor, minha querida. Apenas faça o pedido.
Ela virou a cabeça devagar e o encarou.
— Mas eu não quero levar o senhor à falência, né?
Um dos seguranças, parado atrás do velho com os braços cruzados, quase soltou uma gargalhada. Teve que virar o rosto, tossindo para disfarçar.
— Me dê esse prato aqui. - Disse ela ao hostes, apontando para uma das carnes do cardápio: — Mas já vou avisando: não quero ver sangue no prato. Se eu quisesse pagar pra comer algo cru, eu mesma roubava um pedaço do açougueiro e nem lavava.
O host ficou pálido, perplexo, estático por um instante. As palavras pareceram bater como bofetadas na etiqueta engomada do restaurante.
Ele respirou fundo, cerrou os dentes e, após uma pequena reverência, saiu com desgosto contido, murmurando para si mesmo sobre "ofensas culinárias imperdoáveis".
Enquanto se afastava, Cleia ainda resmungava baixo:
— Cinco mil num prato... pra vir com essência de feno e batata reduzida no vinho do Himalaia, francamente...
Nathaniel estava encantado. Encostou-se na cadeira com um sorriso sereno, observando aquela jovem sem filtros, tão deslocada e ao mesmo tempo tão autêntica.
— Então me fale algo sobre você, o que fez morar nas ruas? - Disse ele, agora com a voz baixa, curiosa.
Cleia parou de resmungar, fechou o cardápio com um estalo suave e o apoiou na mesa. Seus olhos claros o encararam com calma, mas sem defensiva.
— O senhor quer saber o quê? O currículo que perdi junto com minha casa? — disse com ironia, depois deu de ombros: — Meus pais morreram faz alguns anos. Um acidente de carro. A casa tinha dívidas, e eu não tinha a quem recorrer. Os bancos não esperam ninguém chorar. A rua foi tudo que sobrou.
Ela pegou o copo de água à sua frente com elegância inesperada, mas bebeu como quem não tem tempo pra frescura.
— Aprendi a me virar. A comer lixo, a dormir com um olho aberto, a brigar quando tentam roubar sua coberta no meio da noite. E agora tô aqui... falando com o dono do restaurante mais caro da cidade como se isso fosse normal.
Nathaniel permaneceu em silêncio por alguns segundos, absorvendo cada palavra. Aquela jovem tinha algo raro: verdade crua, sem adornos.
— E a senhorita... sempre fala desse jeito?
Cleia sorriu com um brilho zombeteiro.
— Só quando estou com fome. Quando como, viro um anjo.
Ele riu mais uma vez, enquanto os outros clientes, agora, olhavam com menos desprezo... e um pouco mais de espanto.
Ela estava com o corpo ligeiramente curvado sobre a mesa, os dedos deslizando de leve pelo copo d’água. A água já não estava tão gelada, mas ela não se importava. Seus olhos se perderam por um instante no reflexo da taça, até que a voz gentil de Nathaniel a chamou de volta:
— E onde você dorme, minha neta?
A pergunta veio carregada de ternura. Um calor inesperado atravessou o peito de Cleia.
“Minha neta.” Aquele modo de dizer — tão carinhoso, tão protetor — a desmontou por dentro. Seu coração, endurecido pelas noites frias e solitárias, aqueceu por um segundo.
— Em qualquer lugar... - Respondeu baixinho, mas com firmeza: — Banco de praça, ônibus abandonado, escada de prédio vazio. Onde tiver um canto e pouca gente por perto, a gente aprende a ser forte mesmo diante de uma tempestade, senhor Castelier.
Nathaniel franziu os lábios, e antes que ela seguisse, ele a corrigiu com delicadeza:
— Me chame de Nathaniel. Nada de Castelier. Apenas Nathaniel.
Ela piscou surpresa. Estava acostumada a ser tratada com descaso ou superioridade, nunca com essa humildade tranquila.
— Ok... Vou lhe chamar no diminutivo: Nathan.
Um sorriso leve surgiu em seu rosto. E então, com mais honestidade ainda, disse:
— Morar nas ruas não é necessariamente ruim. A gente aprende a sobreviver com defesa pessoal. Quando temos um teto, comida, um armário cheio de roupas, a gente não presta atenção em nada disso. Mas quando não temos nada... até um broche quebrado de cabelo que se acha na calçada vira um tesouro. Você olha pra ele e pensa: “É meu, ninguém vai tirar de mim.” E valoriza.
Nathaniel a escutava com um brilho nos olhos, tocado por cada palavra. Aquilo não era só uma lição de sobrevivência — era uma filosofia.
Uma alma lapidada pela miséria, mas não corrompida por ela.
— Meu neto vai chegar logo. - Disse ele, após um breve silêncio.
Cleia endireitou-se na cadeira, assentindo.
— Claro... posso ir embora quando eles chegarem.
Mas o que veio depois a fez congelar no lugar.
— Eu quero que você fique.
Ela o olhou com os olhos entreabertos, sem entender. O idoso sorriu, enigmático.
— Tenho uma ideia... para ajudar você. E para ajudar meu neto também.
Cleia arregalou os olhos, desconfiada e curiosa ao mesmo tempo.
— Que ideia?
O idoso apenas ajeitou a bengala ao lado da mesa e, com um sorriso secreto, respondeu:
— Você logo vai saber.
Ela ficou imóvel por alguns segundos, o coração batendo um pouco mais forte.
Naquela tarde que havia começado com restos de comida de um lixo, ela estava agora diante de um homem milionário — e algo lhe dizia que a vida estava prestes a dar uma guinada impossível de prever.
A comida chegou em silêncio, empurrada em um carrinho de prata por garçons bem alinhados, com luvas brancas e postura impecável.
Os pratos foram postos diante de Cleia e Nathaniel com a reverência de um ritual. O aroma da carne grelhada, envolta em molhos sofisticados e acompanhada por legumes esculpidos com precisão quase artística, invadiu o ar.
"Como é que se come isso?", murmurou para si mesma, tentando lembrar se garfos diferentes serviam para comidas diferentes ou se isso era só frescura de gente rica.
Ela pegou o talher "mais simpático', mas no segundo garfo, ele escorregou da mão e caiu com um "clang!" sonoro no chão de mármore.
Alguns clientes olharam Com horror. Cleia sorriu com sem-vergonhice e disse, com a carne brilhando diante dela:
— Ah, quer saber? - E pegou o pedaço suculento de carne com as mãos mesmo.
Os clientes nas outras mesas ofegaram em choque.
Uma mulher deixou cair a taça de vinho.
Um garçom parou no meio do passo.
O hostes, que observava de longe, levou a mão à testa como se estivesse tendo uma visão apocalíptica.
Cleia mordeu a carne com gosto, os olhos fechando brevemente enquanto o sabor rico e a textura macia tomavam sua boca. Um som quase de alívio escapou de seus lábios.
— Desculpa, Nathan. - Disse, ainda mastigando, sem a menor cerimônia: — É que não como algo bom há anos.
Anton apenas sorriu, com os olhos marejados de ternura, e assentiu com um gesto calmo.
Ele compreendia. Não havia nada a perdoar.
Mas o momento foi brutalmente interrompido quando a porta do restaurante se abriu.
Entrou um homem que parecia saído de uma propaganda de perfume: alto, de pernas longas, ombros largos, cintura fina, e um rosto que parecia esculpido à mão, olhos verdes, simétrico e preciso, como uma estátua viva.
Ao lado dele, uma mulher mais velha, mas ainda deslumbrante: Cabelos impecavelmente presos, roupas de alta-costura, e uma presença altiva.
Era claramente sua mãe — o mesmo nariz aristocrático e os olhos frios.
Nathaniel levantou a mão com entusiasmo e disse com voz clara e baixa:
— Jonas, te apresento sua noiva.
O som do garfo de Cleia caindo no prato ecoou como um sino de catástrofe.
Ela arregalou os olhos e, num reflexo puro, cuspiu a carne no prato, engasgando de imediato. Tossiu com desespero, bateu no peito, derrubou o copo de água e puxou outro para beber, tudo de maneira desastrada.
O clima mergulhou num silêncio atordoado.
Jonas a olhou como se visse um inseto raro em sua sobremesa.
— Vô, soube que o senhor quase foi atropelado... isso afetou sua cabeça?
O idoso, até então paciente, bateu com força na mesa. O som reverberou pelas paredes como um trovão.
— Sergey, feche o restaurante.
O segurança gigante, com uma simples inclinação de cabeça, começou a escoltar os clientes para fora.
Os murmúrios cessaram.
Os olhares se desviaram.
Em segundos, o luxuoso restaurante estava vazio, restando apenas os Castelier, Cleia... e o silêncio carregado de tensão.
Nathaniel falou com firmeza:
— Ela salvou minha vida. E como gratidão, ela deve se tornar sua esposa.
Cleia ainda tossia, mas conseguiu beber um gole de água e, com os olhos arregalados, disse:
— Desculpa, Nathaniel ... mas eu não tô afim de me casar, não.
O velho apenas respirou fundo, paciente:
— Você salvou minha vida. Eu jamais permitiria que caísse em desgraça morando nas ruas. Eu quero te dar mais do que um jantar.
Mas então um grito histérico cortou o ar como uma navalha:
— Pai! Quer casar meu filho com uma mendiga?! Ele já está esperando Suzan retornar do exterior.
A mãe de Jonas parecia ter perdido completamente o controle. Seu rosto bonito estava contorcido de fúria, como se tivesse visto um sacrilégio.
Cleia, com calma, nem virou o rosto para ela. Apenas falou com naturalidade:
— Com licença, senhora. Antes de falar sobre mim, entenda uma coisa: “mendiga” é quem se ajoelha, implora e se apequena. Eu não mendigo, eu sobrevivo. Moradora de rua não é um rótulo de vergonha, é um retrato de circunstância. A diferença entre mim e a senhora? É que eu sou pobre e luto. A senhora é rica, mas se me julga pelo que visto, talvez seja muito mais miserável do que eu.
Silêncio absoluto.
Nathaniel olhava para Cleia como se estivesse vendo o futuro diante dos olhos.
Com orgulho.
Então, com voz firme e imperativa, ele declarou:
— Ela será sua esposa, Jonas, ou a empresa Castelier nunca será sua. Você já tem idade para se casar. Está na hora de pensar além do espelho. E sobre aquela mulher, nem se dê ao trabalho de pensar nela.
Jonas encarou o avô com um misto de raiva e incredulidade. A mãe parecia prestes a desmaiar.
Cleia, com os olhos arregalados, virou-se lentamente para o idoso:
— Mas espera aí... se eu salvei sua vida, por que eu tenho que aceitar essa “gratidão” casando com esse cara?
Ela apontou para Jonas, depois deu de ombros.
— O certo não seria casar com o senhor?
A frase caiu como uma bomba.
Jonas ficou de boca aberta.
A mãe dele, sem palavras, engasgou no próprio ar.
E Nathan... riu.
Riu alto, uma risada profunda, alegre, escandalosa, como se aquela fosse a melhor piada que ouvira em anos.
E Cleia, ainda lambendo os dedos da carne, ergueu uma sobrancelha e disse:
— Falei alguma besteira?
— Você tem mais coragem do que toda essa família junta. - Disse o idoso ainda rindo: — É por isso que você será uma Castelier. De um jeito ou de outro.
Cleia pegou outro pedaço de carne com as mãos e comeu.
— Eu gosto dela, e será ela. Sem mais a decidir. - Declarou o idoso com a firmeza de quem não admite réplica.
A voz dele ressoou forte no salão silencioso, cortando qualquer tentativa de objeção.
Cleia arregalou os olhos e virou o rosto na direção dele, séria.
— E eu? - Perguntou com firmeza: — Não tenho direito a escolha?
O idoso sorriu para ela, não de forma arrogante, mas como um avô paciente explicando algo importante a uma neta inquieta.
— Comida todos os dias, uma casa quente e sua dignidade devolvida... o que acha?
Ela negou com a cabeça, apertando os lábios. Aquilo era uma tentativa de convencê-la com promessas que ela sabia bem o valor: conforto.
E ela conhecia o peso disso. Mas ainda assim, não era um preço leve.
Jonas, de braços cruzados e um sorriso debochado no canto da boca, falou:
— Concordo com essa mendiga. Finalmente uma coisa sensata.
Cleia imediatamente girou a cabeça e o fuzilou com os olhos.
— Eu quem concordo comigo mesma. Desde quando você acha que é digno de mim?
Jonas bufou com desdém, como se a resposta dela fosse risível.
— Uma mendiga como você devia agradecer por um homem como eu apenas direcionar-lhe o olhar.
Cleia soltou uma risada seca e cruzou os braços.
— Certo... vai sonhando. Só tá desesperado pela herança do seu avô.
Naquele instante, o olhar de Jonas escureceu. Os maxilares dele se cerraram e o sorriso desapareceu. A raiva transformou seu rosto num contorno frio e ameaçador.
A mãe dele, ofendida, deu um passo à frente.
— Pai, vai submeter nossa família a essa humilhação pública?! - Ela berrou, perdendo a compostura: — Olha pra ela!
Cleia continuou com a mesma expressão firme, e disse calmamente, olhando para Nathan:
— O círculo de ricos é sempre tão barulhento assim? Olha essa mulher. Não tem nem educação e vive gritando. Tenho pena do senhor.
— Cuidado como fala com minha mãe! - Rosnou Jonas, com a voz gelada, como se estivesse segurando um grito.
Cleia deu de ombros.
— Ela é sua mãe. Não minha. Não vou tratá-la como se fosse.
Anton ria, genuinamente entretido com a cena.
— Já estão se dando bem. Isso é ótimo! - Exclamou: — Ah, minha querida... o que acha de comer bem todos os dias?
Cleia hesitou. Seu estômago roncou levemente, como se zombasse de sua resistência. Ela se lembrou das noites frias em que dormia no papelão. Dos ratos, da chuva, da fome, da comida do lixo que ela limpava antes de engolir com culpa e alívio.
Ela baixou os olhos.
— Eu gosto de comida... - Murmurou: — Mas esse casamento é muito ruim.
— Está decidido. - Afirmou o idoso: — Você salvou minha vida, então essa é a contribuição que eu posso dar. Vamos até o cartório.
— Vô... não me faça passar essa vergonha. - Jonas tentou uma última vez: — Olha pra essa mendiga!
Cleia virou-se para ele lentamente, sem alterar a postura nem a voz.
— Já que você insiste em repetir isso, vamos deixar algo claro: Você nasceu em berço de ouro e acha que isso te torna superior. Mas quem não consegue ver a alma de alguém por trás das roupas sujas, não passa de um riquinho vazio, com o ego inflado por números herdados.
As palavras atingiram Jonas como um golpe. Seu rosto escureceu, os olhos se tornaram duros como pedra, e o sangue parecia ter subido todo para a cabeça.
Sua mãe, de canto, sussurrou em seu ouvido:
"Deixa seu avô fazer isso...", a voz dela era venenosa. "Basta colocá-la em uma casa e mantê-la lá. Trancada. Como um contrato social. Nada mais."
Jonas não respondeu, mas o olhar de concordância foi suficiente.
Então, silenciosamente, todos saíram rumo ao cartório.
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