Selena tem 1,60 m, tem a pele branca, e os cabelos negros caem em ondas até a cintura. Seu corpo chama atenção: coxas firmes de tanto andar, cintura fina e seios médios, bem moldados. Mas o que mais impressiona são seus olhos — violetas, quase translúcidos. Uma beleza rara, hipnotizante. Mas ela não vê o mundo. É cega desde criança.
Vive num bairro violento nos EUA, onde sirenes e tiros fazem parte do fundo sonoro da vida. Divide a casa com o pai, um homem quebrado por dentro, afogado em álcool e raiva. Quando ele bebe, ela se encolhe — e reza para ser invisível.
Vende flores nas ruas. A dona da floricultura, Diana, percebeu que ela precisava de ajuda. Desde então, dá as flores de graça para ela revender. Um gesto que salva a semana, às vezes o mês. Diana nunca pede nada em troca.
Sua única amiga é Ana, vizinha desde a infância. Ana ajuda como pode: comida, dinheiro, ou só companhia. Mas o problema é o namorado de Ana — um cara com olhar sujo e intenções piores. A protagonista sente o perigo, mesmo sem ver. Tem gente que exala ameaça. E ele é um deles.
Selena. Nome suave, mas com peso. Voss vem da avó, única pessoa que a amou sem condições. Uma mulher dura, firme, que deixou o pequeno apartamento para a neta quando morreu — um último gesto de proteção num mundo que nunca foi gentil.
Selena tem 23 anos. Não enxerga, mas enxerga mais que muita gente. Ela sente as pessoas pelas vozes, pelos cheiros, pelo silêncio entre as palavras. Aprendeu a se virar sozinha. Não por escolha — por necessidade.
Naquela manhã, como tantas outras, o pai está caído no sofá, cheiro de cerveja e amargura. A televisão grita num canal qualquer. Quando ela pega a bengala ao lado da porta, ele rosna:
— Olha só... a ceguinha inútil vai brincar de vendedora de flores. Você não serve pra nada, Selena. Nada.
Ela para por um segundo. Não responde. Nunca responde. Não porque não tenha o que dizer, mas porque aprendeu que o silêncio é uma armadura mais forte que qualquer palavra.
Pega os óculos escuros, ajusta no rosto. As lentes escondem os olhos violetas que tantos chamam de lindos, mas que ela mesma nunca viu. Depois, tateia a porta, abre, e sai.
Lá fora o mundo não é mais gentil. Mas é o único que ela tem.
Selena segue em frente. Sozinha. Como sempre.
Selena desce os degraus do prédio devagar, sentindo cada rachadura no concreto com a ponta da bengala. O bairro ainda acorda com barulhos duros — carros passando rápido demais, vozes alteradas, uma sirene distante. O cheiro de óleo queimado e lixo velho paira no ar.
O pequeno sino da porta da floricultura toca quando ela entra. Diana já está ali, de avental sujo de terra e um sorriso cansado.
— Bom dia, Selena.
— Bom dia, senhora Diana — responde, com a voz baixa, mas firme.
Diana não pergunta como ela está. Já sabe. Viu as olheiras, as marcas finas no pulso, os óculos que escondem olhos bonitos demais pra tanta dor.
— As flores estão separadas. Montei os arranjos com aquelas dálias que você gosta.
— Obrigada. — Selena tenta sorrir, mas está com fome, o estômago roncando em silêncio.
Diana percebe. Sempre percebe.
— Aqui. — Estende uma sacola. — Um lanche. Tem pão com ovo, uma fruta e suco. Sei que às vezes você sai sem comer.
Selena segura a sacola com as mãos finas. Trava a garganta por um instante.
— A senhora não precisava...
— Eu sei. Mas eu quero. E você precisa.
Silêncio. Gratidão não dita, mas sentida. Diana arruma os últimos detalhes nas flores, depois ajuda a prender os pequenos arranjos na cesta que Selena carrega presa ao braço.
— Vai com calma. E se aquele idiota do restaurante não pagar o que prometeu, você me conta.
Selena assente, segura, e se despede com um “obrigada” que quase sai como prece.
Na calçada, ela segue contando passos, ouvindo os sons familiares da rua. Para em frente ao restaurante. Já decorou o lugar pelas vozes e pelo cheiro da grelha. O dono, um homem ranzinza mas honesto, já a conhece. Às vezes os clientes compram uma flor, às vezes só olham.
Ela fica ali, ereta, com a postura de quem não pede — oferece. Uma flor por alguns dólares. Uma beleza frágil, vendida por alguém ainda mais forte.
Abre o lanche, senta no meio-fio. Come devagar, como se cada mordida fosse uma pausa no caos.
Selena não tem muito. Mas o pouco que tem — dignidade, silêncio, força — é só dela.
O sol já passa do meio do céu quando Selena se posiciona perto da entrada lateral do restaurante. O cheiro de carne grelhada mistura-se ao perfume das flores que carrega. Um casal compra uma rosa, ela agradece. Outro homem pega um pequeno buquê de dálias e paga sem dizer uma palavra.
Selena trabalha com calma. Cada gesto é ensaiado: a mão que oferece, o sorriso que não exagera, a voz baixa mas segura.
Do outro lado da rua, um homem com moletom escuro e boné tira fotos com o celular. Finge estar distraído, como se apenas testasse a câmera, mas a lente está fixada nela.
— Linda, né? — diz ele ao amigo ao lado, que segura uma sacola plástica.
— Mesmo cega. E olha isso — mostra uma das fotos — parece uma atriz. Vai dar grana.
Selena não percebe. Está ocupada ajeitando as flores, contando os arranjos restantes com os dedos. Trabalha com eficiência, como sempre. Mas o homem que a fotografa não está ali por acaso.
É o namorado da Ana.
Sem que Ana soubesse, ele tentou agarrar Selena semanas atrás. Esperou a amiga sair, entrou no apartamento com uma desculpa qualquer, e quando tentou forçar um beijo, ela sentiu o cheiro de cigarro e mentira, virou o rosto — e depois o joelho. Um chute direto, seco, no meio das pernas. Ele caiu no chão gemendo. Ela não falou nada. Só trancou a porta.
Agora, ele quer se vingar.
E tem contatos. Gente que paga bem por garotas com aparência rara. Gente que não liga se ela é cega, ou talvez ache isso até mais interessante.
— Vamos só seguir ela, pegar mais umas fotos, mandar pro cara em Jersey. Se ele curtir, fechamos — diz o homem com o celular.
Selena se levanta, ajeita a alça da bolsa, e segue para o próximo ponto. Sem saber que há olhos nela. Sem saber que o mundo que já é cruel está prestes a ficar mais perigoso ainda.
Mas o que eles não sabem...
É que ela não vai cair fácil.
Selena chega à porta do apartamento com os pés doendo, as mãos marcadas pelos arranjos que carregou o dia inteiro. A chave gira na fechadura com um estalo seco. Ela abre.
O cheiro de álcool a atinge primeiro. Forte. Quase sólido. Lá dentro, o pai está pior do que quando saiu: garrafas quebradas no chão, a televisão berrando futebol, e ele, caído no sofá, murmurando frases desconexas.
— Inútil... florzinha cega... devia agradecer por eu ainda respirar nesse buraco...
Ela não responde. Só dá um passo pra trás, o cansaço pesando no corpo, como se o teto estivesse prestes a cair.
— Selena?
A voz vem do lado. É Ana, parada na porta do próprio apartamento, segurando uma toalha nos ombros, cabelo preso em um coque desleixado.
— Entra aqui. Vai — diz com um tom direto, mas gentil.
— Eu não quero incomodar...
— Ele não tá aqui — interrompe Ana, firme. — Nem volta hoje. Vai sumir com aqueles otários dele. Você pode tomar um banho, comer alguma coisa, e deitar um pouco. Só isso.
Selena hesita. Segura a bengala com força. Cada músculo do corpo implora por descanso, mas ela ainda carrega aquela resistência de quem aprendeu a não pedir nada.
— Sério, Lena. Vai. Só vem.
Ela entra. O apartamento de Ana tem cheiro de sabonete e café velho, mas é um paraíso perto do que deixou para trás. Deixa os óculos escuros sobre a mesinha. Ana pega sua mão com cuidado e a leva até o banheiro.
— Toalha tá pendurada. Shampoo de camomila. Se eu soubesse que você vinha, tinha deixado a água mais quente.
Selena sorri de leve. Pela primeira vez no dia.
— Obrigada, Ana.
— Vai lá. Se joga. Depois a gente vê o resto.
Selena tranca a porta, apoia a bengala na parede e começa a tirar a roupa. Cada peça é um alívio. Entra no chuveiro, deixa a água cair. Quente, constante. Fecha os olhos — não que isso mude algo — e deixa o cansaço escorrer junto com a água. Pela primeira vez em dias, ela respira fundo.
Não se sente segura. Mas, por um momento, se sente menos sozinha.
Selena sai do banho com a pele ainda úmida, os cabelos pingando água quente no azulejo frio. Na pia, uma muda de roupa dobrada com cuidado: uma camiseta larga e uma calça de moletom macia. De Ana, claro. Sempre prática. Sempre presente.
Veste-se devagar. Os músculos relaxaram um pouco, mas o cansaço segue. A cabeça, pesada. A alma, mais ainda.
Na cozinha, Ana já colocou um prato simples na mesa: arroz, feijão, ovo frito, e uma caneca de chá.
— Come. Nem discute. — Ela puxa a cadeira com o pé.
Selena obedece. Come em silêncio, mastigando devagar.
— Sabe o que você devia fazer? — diz Ana, de repente. — Chamar a polícia. Botar aquele velho pra fora. O apartamento é seu. Sua avó deixou pra você, não pra ele. Ela nem gostava dele. Deve estar rolando no túmulo.
Selena solta um meio sorriso. Não é de rir, mas Ana sempre tem esse jeito de falar que arranca alguma coisa dela.
— Não tenho coragem, Ana. Não com ele ali dentro. Ele... ele é imprevisível. Um fósforo perto de gasolina.
Ana balança a cabeça, frustrada. Mas não força.
— Um dia você vai ter que escolher. Ele ou você.
Silêncio. A frase fica no ar, como fumaça. As duas sentem o peso dela, mas nenhuma diz mais nada.
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Ana guia Selena até o quarto de hóspedes. É pequeno, mas limpo. A cama está feita, e o ventilador gira no teto com um barulho baixo e constante.
— Se quiser fechar a porta, tudo bem. Se quiser deixar entreaberta, também. Fica à vontade.
Selena toca o lençol, sente a maciez, o cheiro de sabão.
— Obrigada, de verdade.
— Dorme. Amanhã é outro dia — diz Ana, e a deixa ali.
Selena se deita. Vira de lado. Depois para o outro. O corpo está pronto pra desmaiar, mas a cabeça resiste. A voz do pai ecoa. As ruas. As flores. As mãos desconhecidas que tocaram seu destino sem que ela visse.
Eventualmente, o sono vence. Frágil, leve. Mas é tudo que ela tem.
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A quilômetros dali, o celular vibra em cima de uma mesa suja. O namorado de Ana está sentado com dois homens de fala arrastada e olhar de pedra. Um deles, com tatuagens em russo no pescoço, analisa as fotos de Selena com interesse.
— É diferente. Olhos raros. Cega, mas bonita. Corpo bom. Isso vende. Vende muito.
O namorado sorri, satisfeito. Dinheiro fácil. Vingança garantida.
— Quanto?
— O bastante pra você sumir por uns dias e voltar com outro carro. Ela é nossa agora.
Selena dorme sem saber. Mas o destino dela já mudou de trilho.
E o próximo trem vai direto pro inferno.
Os dias seguintes passam como sempre… ou quase.
Selena acorda cedo, organiza os arranjos com as flores que Diana separa com carinho, coloca os óculos escuros, pega a bengala e sai para vender. As rotas são quase sempre as mesmas: restaurante, praça, esquina do mercado. Vende bem em dias quentes, menos quando chove. As pessoas gostam dela. Ou da ideia dela. A vendedora cega com os olhos lindos.
Mas algo mudou.
Não são os sons. Nem os cheiros. É o ar.
Há uma pausa estranha nas conversas de rua. Um zumbido na nuca. Um tipo de silêncio que não existia antes. Selena sente. Quem vive no escuro aprende a perceber o invisível.
Num fim de tarde, depois de vender metade das flores, ela caminha até a floricultura. Diana está atrás do balcão, mexendo nas violetas.
— Senhora Diana?
— Oi, querida. Chegou cedo hoje.
— A senhora... notou alguma coisa estranha esses dias? Gente nova por aqui? Alguém perguntando de mim?
Diana levanta os olhos.
— Estranha como?
Selena hesita.
— Eu não sei. Só… parece que tem algo diferente. Como se tivesse alguém me olhando. Sempre.
Diana sorri, mas o sorriso não é leve.
— Não vi nada, não. Tá tudo igual por aqui. Mesmas caras, mesmos carros. Sei que pra você é mais difícil perceber isso, mas olha... se tivesse alguma coisa errada, eu te falava. Juro.
Selena balança a cabeça. Confia em Diana. Mas a sensação não vai embora.
Ela volta pra casa. Passos calculados. Ouvindo tudo, sentindo tudo. O pai, bêbado como sempre, dorme no sofá. Ana, preocupada, pergunta se está tudo bem. Selena diz que sim. Porque é mais fácil do que tentar explicar o que não se pode provar.
Mas o que ela não vê — o que ninguém diz — é que tem sempre alguém ali.
Um homem encostado em um carro estacionado. Um celular gravando cada passo. Às vezes um segundo carro, mais longe, com vidro escuro e motor ligado. Outros rostos, outros olhos. Ela nunca os ouve. Eles não querem ser ouvidos.
Eles só observam. Anotam. Marcam rotas, horários, pontos de distração.
Selena vive sua rotina. Mas sua liberdade está sendo medida, milimetricamente, por alguém que a vê como produto — não como pessoa.
E quando ela finalmente perceber…
Pode ser tarde demais.
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