Quando eu era criança, adorava me perder em histórias de fantasia. Livros, filmes, desenhos... todos pareciam sussurrar a mesma pergunta: e se fosse real? E se dragões existissem? E se eu fosse uma fada, ou uma bruxa, ou qualquer criatura mágica escondida no meio dos humanos? Eu brincava, acreditava — mesmo que por pouco tempo — que tudo aquilo podia acontecer comigo.
Mas o tempo passa. A realidade pesa. E a gente aprende que magia, no fim das contas, não passa de invenção.
Ou era isso que eu pensava.
Acontece que o impossível resolveu me encontrar. E quando encontrou… não pediu permissão. Não bateu à porta. Entrou.
Meu nome é Maya Stone. E, contra todas as leis da natureza, eu sou uma loba. Uma criatura que muitos chamariam de lobisomem — embora o que eu sou vá muito além das lendas que as pessoas contam ao redor de uma fogueira.
Pode soar como um clichê de filme adolescente: a garota comum que descobre um segredo sobrenatural sobre si mesma. Mas não é ficção.
É a minha vida.
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...Muito antes de Nawaniuk surgir como aldeia, os ventos do norte sussurravam segredos sobre uma tribo esquecida, chamada Aurarok — “os que andam com dois rostos”. Eles eram uma tribo de metamorfos, capazes de se transformar em lobos. Mas não eram monstros: eram guardiões da floresta, do céu e dos ciclos da vida....
...Segundo os mais antigos, a Aurarok foi abençoada por uma entidade conhecida como Yana’thu, o Espírito Branco do Norte, que lhes deu a dádiva da metamorfose em troca de fidelidade à natureza. Cada membro da tribo possuía uma conexão espiritual com um lobo ancestral, herdado por linhagem, marcado na pele como uma cicatriz em forma de lua crescente....
...Durante séculos, viveram escondidos, em harmonia com os ursos, alces, corvos e as auroras. Eles não caçavam por esporte, não cortavam árvores sem cerimônia, e protegiam os caminhos da floresta....
...Mas a paz foi quebrada com a chegada de forasteiros. Homens com armas de fogo, que riam das lendas e violavam os pactos antigos. A tribo lutou, uivando como tempestades, mas muitos caíram. Antes de desaparecerem nas sombras, a líder espiritual da tribo, chamada Kewa, lançou uma maldição e uma promessa:...
..."Quando o sangue da floresta for novamente derramado em vão... os Aurarok voltarão. E a Lua sangrará com eles."...
...Depois disso, Nawaniuk foi construída sobre o antigo círculo ritual da tribo. Os moradores mais antigos evitam as trilhas ao norte, principalmente durante a lua cheia, quando os uivos ecoam em coro — não de um, mas de muitos lobos....
...Alguns dizem que a linhagem dos Aurarok nunca desapareceu completamente. Que certos moradores da aldeia carregam o sangue antigo e, sob a luz prateada, sentem a pele formigar, os olhos queimarem, o instinto acordar....
...E, nas noites mais frias, como a de hoje, há quem jure ver silhuetas de homens-lobos entre as árvores, observando... protegendo... esperando o momento certo para emergir novamente....
— ... E é essa a lenda mais famosa da tribo Nawaniuk e segundo meu avô é mais que uma lenda. Os Aurarok realmente existiram — completou Airon após concluir a narrativa da lenda, que escutou tantas vezes de seu avô e agora repassava adiante.
— Isso é muito bobo — disse Maya, encarando o para-brisa enquanto a estrada passava como um borrão.
— Você tem que ser sempre tão cética? — ele retrucou, rindo enquanto girava o volante com uma mão e mexia na playlist do carro com a outra.
— Você sabe que não acredito nessas coisas, né? E é óbvio que vai se ouvir uivos, aqui tem lobos, né?
Airon deu de ombros.
— E você sabe que eu não ligo, né? Quanto aos lobos... são uivos diferentes.
O carro seguia pela estrada que levava até a parte mais afastada da cidade, onde alguém — sempre alguém com pais viajando ou uma casa herdada do avô — organizava festas cheias de bebida, música alta e gente demais em espaços de menos. Maya normalmente detestava esse tipo de programa. Mas Airon tinha insistido. Disse que ela precisava sair, talvez conhecer o grande amor da vida dela e ele o amor da vida dele.
Ela soltou um suspiro, mas sorriu. A noite estava fria e o céu limpo. A lua, já quase cheia, brilhava forte o suficiente pra dispensar os faróis por alguns segundos. Maya olhou para ela, distraída, e por um breve momento teve a estranha impressão de que havia algo familiar naquele brilho prateado — algo que a fazia sentir-se... inquieta.
A casa surgiu no final da trilha de terra, com luzes penduradas entre as árvores, piscando em tons de âmbar e violeta. O som da música já vibrava no ar antes mesmo deles estacionarem.
— Pronta pra entrar no mundo dos descolados por uma noite? — Airon perguntou enquanto desligava o carro.
— Pronta pra pegar um copo, fingir que me divirto e ir embora antes da meia-noite.
— Você é uma idosa disfarçada de garota de vinte anos, sabia?
— Eu me esforço pra manter o disfarce.
Os dois saíram do carro, atravessaram o gramado e entraram na casa. O calor, a música e o cheiro de álcool os envolveram imediatamente. Maya, contra todas as expectativas, começou a relaxar.
No meio da pista de dança improvisada na sala, com um drink na mão e Airon girando ao seu redor como um dançarino de teatro musical, ela até sorriu.
— Aquele gato ali não para de te encarar, Mah — disse Airon, se aproximando e inclinando-se para falar no ouvido dela por cima do som alto.
— Talvez ele esteja olhando pra você.
— Impossível. O meu é outro gato que está lá no canto — ele piscou.
Ela soltou uma risada curta, mas de novo sentiu aquele incômodo. O mesmo de antes. Aquela sensação de que algo estava à espreita.
Olhou na direção que Airon indicava e viu o tal “gato”. Alto, encostado numa parede de madeira, copo na mão, postura imóvel. Os olhos dele estavam fixos nela, e diferentemente dos outros olhares que vinha ignorando a noite inteira, esse parecia… antigo. Como se ele soubesse algo. Como se a reconhecesse.
Ela desviou o olhar, mas não conseguiu afastar a sensação de que alguma coisa ia acontecer.
A música tinha mudado, as luzes estavam mais suaves e as conversas começavam a virar sussurros em cantos escuros da casa. Havia algo no ar — uma eletricidade leve, como a tensão antes de uma tempestade. Ela virou-se para procurar Airon, mas antes que pudesse chamá-lo, sentiu aquele olhar de novo.
O estranho ainda estava lá, encostado na parede de madeira, como se o tempo ao redor dele corresse mais devagar. Olhava direto para ela, sem vergonha, sem dúvidas. Como se a conhecesse de algum lugar... ou estivesse esperando por ela. Era estranho; disso ela tinha certeza
Para não continuar aquela cena de olhares trocados, Maya olhou para o outro lado. Foi então que Airon se aproximou e disse:
— Ele tá vindo pra cá — avisou Airon, com um sorriso maroto. — Comporte-se... ou não.
— Onde você vai? — perguntou Maya, franzindo a testa.
Mas Airon já se afastava, sumindo na multidão como se tivesse cumprido sua missão.
O estranho se aproximou com passos calmos, como se o ambiente inteiro não passasse de um detalhe sem importância para ele. Parou diante de Maya, os olhos ainda fixos nos dela.
— Oi — disse ele, com a voz firme e surpreendentemente suave.
— Olá — respondeu Maya, sem jeito, ajeitando uma mecha do cabelo por puro reflexo.
A música mudou. A batida acelerada deu lugar a uma melodia mais lenta, quase íntima. Casais começaram a se formar ao redor. O estranho estendeu a mão para ela, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo.
— Dança comigo?
Ela hesitou por um segundo, mas algo na presença dele — talvez a confiança tranquila, talvez aquele olhar impossível de decifrar — a fez aceitar. Tomou a mão dele e o deixou guiá-la até o centro da sala.
A dança foi estranhamente confortável. Ele não era exagerado nos movimentos, nem invasivo. A mão em sua cintura era firme, mas respeitosa. Maya se sentiu... vista. E estranhamente segura.
Quando a música acabou, ele se inclinou levemente, ainda segurando sua mão.
— Um drink? — sugeriu.
Maya sorriu, mas recuou.
— Uma das minhas regras de sobrevivência é: jamais beber com estranhos.
Ele riu, divertido.
— Achei que já fôssemos bons amigos.
Ela não respondeu. Seus olhos varreram o ambiente, inquietos, buscando algo. Ou melhor, alguém.
— Algum problema? — perguntou ele, inclinando a cabeça.
— Só estou procurando o meu amigo...
— Acho que vi ele saindo com um dos meus irmãos.
— Oi? — Maya virou o rosto para ele, surpresa.
— Tá vendo aqueles caras lá no canto? — apontou com um gesto sutil da cabeça. — São meus irmãos. Aqueles três ali. Mas tem mais um. Ele deve ter ido com o teu amigo. Costuma sumir assim... quando encontra companhia.
— Que filho da p...
O rapaz gargalhou, genuinamente.
— O que foi? — perguntou ela, semicerrando os olhos.
— Cara de princesa, palavreado de ogro.
— Vou matar ele. Me arrastou pra cá e me abandonou.
— E eu? Sou uma companhia tão ruim assim? Posso te dar uma carona de volta.
Maya riu, balançando a cabeça.
— Outra regra: jamais aceitar carona de desconhecidos. Ainda mais depois de uma festa.
— Magoou de novo — disse ele, colocando a mão no peito em falso drama. — Eu não mordo. Palavra de escoteiro — levantou a mão como se estivesse jurando.
— Eu nem sei teu nome.
— Verdade. Me chamo Eron.
— Prazer, Eron. Maya.
— O prazer é todo meu, Maya.
Os olhos dele brilharam brevemente sob a luz fraca da sala, e por um instante, Maya teve aquela mesma sensação estranha da estrada: como se algo dentro dela estivesse em alerta... como se tivesse acabado de cruzar um limite invisível.
Eron, com seu jeito tranquilo e sorriso contido, parecia mais do que um simples estranho simpático.
Muito mais.
Eron olhava para ela como se quisesse memorizar cada traço do seu rosto.
Maya sustentou o olhar por um momento, desconfiada, mas curiosa. Havia algo estranho nele. Não o tipo de estranho que dá medo — mas o tipo que faz você querer entender.
— Você e seus irmãos são daqui? — perguntou, tomando um gole de sua bebida.
— Mais ou menos — respondeu ele. — A gente nasceu aqui perto, mas passamos um tempo longe. Agora estamos... de volta.
— De volta? Por quê?
— Questões de família. — Ele deu de ombros, mas havia um peso escondido ali. — Esse lugar tem uma forma... hmmm... particular de chamar a gente de volta pra casa.
Maya arqueou uma sobrancelha.
— Poético.
— Verdadeiro — disse ele, ainda sorrindo, mas com os olhos levemente sérios. — Tem coisas que você só entende quando vive. Tipo... o instinto de pertencimento. Às vezes ele te arrasta de volta, mesmo quando você acha que superou.
Maya desviou o olhar, meio incomodada. Aquilo mexeu com ela mais do que gostaria de admitir.
— Você fala como se tivesse séculos de vida.
— Talvez tenha — respondeu ele com naturalidade, o tom brincalhão mascarando algo mais fundo.
Ela sorriu de lado, sem saber se ele estava brincando ou testando.
— E você, Maya, é daqui?
— Mais ou menos. Meu pai cresceu aqui, minha mãe detestava o lugar. Mas... cá estou. Temporariamente.
— Temporário às vezes vira destino — murmurou Eron, e os olhos dele brilharam de novo, dessa vez com uma intensidade que fez Maya sentir um arrepio nas costas.
Um silêncio breve caiu entre eles. Não desconfortável, mas denso. Ela sentiu como se estivessem sendo observados — ou como se o próprio universo estivesse prendendo a respiração.
— Quer sair um pouco? Lá fora tá mais fresco. — Ele apontou com o queixo para a varanda dos fundos.
Maya hesitou.
— Sair com um estranho pra um lugar isolado? Quebraria umas três das minhas regras de sobrevivência.
— E ainda assim, você tá tentada — disse ele, divertido.
Ela cruzou os braços de novo, dessa vez tentando esconder o sorriso.
— Talvez eu só esteja curiosa.
— Curiosidade é o primeiro passo pro desconhecido.
— E você é o quê? Um guia turístico do desconhecido?
— Algo assim.
O jeito como ele disse aquilo fez a pele de Maya arrepiar outra vez. Ela respirou fundo, decidindo se seguia o instinto ou se mantinha o controle.
Antes que pudesse responder, um grito distante cortou a música. Vinha do lado de fora.
Ambos viraram o rosto ao mesmo tempo.
— Aquilo foi...?
— Não sei — disse Maya, já começando a andar em direção à porta.
Eron segurou seu braço com delicadeza, mas firmeza.
— Espera. Talvez seja melhor você ficar aqui.
— Você tá brincando? — retrucou, se soltando. — Meu amigo pode estar lá fora!
O olhar dele ficou mais sério, mais... instintivo. Por um instante, Maya achou que viu algo mudar nos olhos dele. Seria apenas reflexo da luz? Não teve certeza.
— Tudo bem — disse ele, por fim, com a voz baixa. — Mas fica perto de mim.
Os dois atravessaram a casa em direção ao som estranho que vinha da escuridão lá fora. O ar estava mais frio agora. A floresta ao redor da casa parecia mais viva. E Maya não sabia se o que sentia era medo, ansiedade... ou algo mais primitivo despertando dentro dela.
Algo que ainda não tinha nome.
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