O céu era púrpura. Não lilás, não avermelhado, não cor de entardecer. Púrpura. Denso, impossível, como se o próprio mundo estivesse preso entre sonho e lembrança. E sob esse céu irreal, Ana corria.
Estava descalça, e seus pés mal faziam barulho no asfalto frio. À sua volta, o parque de diversões dormia — ou fingia dormir. Brinquedos enferrujados rangem sozinhos. A roda-gigante girava lentamente, empurrada por um vento que não se sentia. As luzes piscavam, mas sem som, como se até a eletricidade tivesse medo de acordar algo.
Não havia música. Não havia vozes humanas.
Exceto uma.
— Ana...
Ela parou. O som parecia ter saído de dentro de sua cabeça, mas soava no ar como um eco. Era uma voz de um rapaz. Não mais velho que ela, mas com um tom que carregava séculos. Doce, firme, envolvente. É assustadoramente familiar.
— Onde você está? — ela chamou, girando em círculos. — Quem é você?
Nenhuma resposta direta. Apenas o som da roda-gigante girando, girando, girando. E depois, de novo:
— Está quase na hora. Você precisa lembrar… de quem é.
Aquelas palavras eram sempre as mesmas. Não importava quantas vezes o sonho se repetisse. O aviso era sempre o mesmo, como uma senha que ela nunca conseguia decifrar.
Ana tentou caminhar, mas seus pés não obedeciam. O chão parecia ter se tornado mais espesso, como se estivesse afundando lentamente em névoa líquida. As luzes do parque se acenderam de uma só vez, explodindo em uma claridade fantasmagórica. Por um momento, ela precisou proteger os olhos.
E então, viu.
No topo do carrossel, entre os cavalos parados, estava ele.
Uma silhueta alta e magra, envolta por um brilho prateado. O rosto dele era um borrão de luz e sombra, mas os olhos... os olhos eram estrelas presas na escuridão. Ele olhava direto para ela. E estendia a mão.
— Eu estou esperando por você, Ana.
O nome, dito daquela forma, a atravessou como uma lâmina morna. Um nome tão comum, e ainda assim, naquele sonho, soava como algo sagrado. Como uma chave. Ana tentou se mover, gritar, correr. Mas tudo ao redor começou a desmoronar.
O chão se quebrou em pedaços. O parque desapareceu. A gravidade falhou.
Ela caiu, sem som, sem ar, sem corpo.
E acordou.
O quarto era escuro, com paredes de reboco descascado e um crucifixo torto acima da cabeceira. O orfanato era antigo e cheirava a desinfetante velho misturado com poeira. Ana abriu os olhos, suando frio. Era a quarta vez naquela semana que sonhava com o parque.
Sentou-se na cama, respirando fundo. O colar pendurado em seu pescoço — o pingente de estrela com a pedra azul — estava morno ao toque. Sempre ficava assim depois dos sonhos.
Ela não contava a ninguém. Nem mesmo a Eduardo e Ender, os únicos que pareciam se importar de verdade com ela. Como explicar algo que ela mesma não compreendia?
Passou os dedos sobre a pedra, que pulsava como um pequeno coração. E sussurrou, sem saber por quê:
— Eu estou aqui...
...****************...
Dezesseis anos antes, numa noite abafada de verão, uma mulher solitária caminhava pela calçada estreita em frente ao orfanato.
Vestia uma capa grossa, embora não houvesse frio, e carregava nos braços uma pequena caixa. Parou diante do portão de ferro, olhou para os lados com olhos aflitos e tocou a campainha. Depois, colocou a caixa no chão e desapareceu na escuridão da rua antes que a luz da porta se acendesse.
Dona Ivone estava acordada. Sempre estava. Desceu as escadas resmungando com os joelhos cansados e abriu o portão com cautela.
Viu a caixa. Viu o cobertor. E quando afastou o tecido, encontrou um bebê dormindo com o cenho franzido, como se estivesse sonhando algo importante demais para sua idade.
— Meu Deus... — murmurou.
Não havia bilhete. Nem papel. Nem nome.
Mas havia o colar. E o brilho azul fraco que saía da pedra era o suficiente para fazer Dona Ivone hesitar.
— Quem deixaria uma criança assim?
Pegou a bebê com delicadeza. Ela não chorou. Apenas continuou dormindo, serena, como se estivesse onde deveria estar.
— Vai se chamar Ana — disse Ivone, em voz baixa. — Como a minha irmã que nunca voltou.
E então a levou para dentro.
Na semana seguinte, um incêndio destruiu os registros da ala antiga do orfanato. Ninguém soube explicar como começou. Nenhum dado da recém-chegada Ana sobreviveu. Nem fotos. Nem documentos.
Era como se ela tivesse surgido do nada.
Cresceu entre paredes frias e silêncios pesados. Foi acolhida, mas não amada. Sobreviveu, mas não viveu. Até os sonhos começarem.
E neles, sempre o mesmo parque.
Sempre o mesmo nome.
Sempre a mesma sensação de que, em algum lugar entre a luz e a sombra, alguém ainda a esperava.
O orfanato era um lugar onde os dias pareciam se repetir infinitamente. Os mesmos horários, os mesmos sons, os mesmos rostos — alguns indo embora, outros chegando com olhos assustados e pouca bagagem. Ana já não contava mais quantas vezes vira aquelas malas pequenas passarem pela porta. As crianças entravam com medo e esperança, e saíam com promessas que nem sempre se cumpriam.
Ela, por outro lado, ficava.
Seu quarto era o mesmo desde os sete anos. As paredes, descascadas e úmidas, tinham manchas que pareciam mapas de lugares esquecidos. Havia um armário baixo, uma cama de madeira que rangia toda noite, e uma pequena prateleira onde guardava os únicos livros que realmente gostava — histórias de lugares mágicos, reinos distantes e pessoas que encontravam segredos em mundos paralelos.
Era nesses livros que ela se refugiava quando as outras meninas cochichavam sobre ela, sobre o colar esquisito que nunca tirava, ou sobre os pesadelos que a faziam acordar arfando.
Dona Ivone dizia que Ana tinha alma antiga. Que havia algo no olhar dela que não combinava com a idade. Talvez fosse o silêncio. Ou a forma como ela olhava para as janelas, como se esperasse que algo — ou alguém — aparecesse.
Mas só dois meninos realmente a entendiam.
Eduardo era alto, magro, e estava sempre com fones de ouvido pendurados no pescoço. Ele dizia que a música era sua forma de sobreviver. Tinha olhos tristes, mas sorriso fácil. Fazia piadas quando as coisas ficavam ruins e sempre arranjava um jeito de proteger os menores.
— Você devia ter nascido numa banda de rock — ele dizia, fazendo careta. — Ou num planeta onde as pessoas não falam, só cantam.
Ender, por outro lado, era o oposto. Calado. Observador. Forte para a idade, mas sem arrogância. Seu pai fora preso por assassinato, e aquilo o seguia como uma sombra. Mas com Ana, ele era diferente. Atento, paciente. Costumava sentar com ela no jardim, onde ficavam em silêncio, apenas ouvindo o vento entre as árvores secas.
— Você sente quando o mundo fica mais pesado? — ele perguntou uma vez.
Ana assentiu. E foi tudo. Eles se entendiam assim.
No fundo do orfanato havia uma árvore torta, com raízes expostas e um galho que lembrava um braço estendido. Era ali que Ana ia nos dias em que os sonhos a deixavam inquieta. Sentava-se no chão e segurava o colar com força, esperando que a pedra azul dissesse alguma coisa.
Às vezes, sentia calor vindo dela. Outras vezes, ouvia algo — um eco, uma palavra indistinta. Mas sempre, sempre, via a roda-gigante. Mesmo acordada. Como se ela estivesse presa à sua mente.
Certa tarde, enquanto lia perto da árvore, Eduardo se aproximou com um sanduíche escondido no bolso.
— Peguei da cozinha. Pra você. Só porque hoje parece um daqueles dias em que o céu tá prestes a cair.
Ana sorriu.
— Tá mesmo. Você também sentiu?
— Eu sempre sinto quando você sente. Estranho, né?
— Talvez não seja.
— Você é mais estranha que eu.
Ela deu de ombros.
— E você é o único que me entende.
Naquela noite, o refeitório estava mais silencioso que o normal. Ender comia devagar, os olhos fixos na porta. Eduardo fazia batidas com os dedos na mesa. E Ana... Ana olhava para o teto, onde uma rachadura nova desenhava uma curva estranha — quase como um símbolo.
Depois, no dormitório, o sonho voltou. O parque. A voz. O rapaz no carrossel. Mas dessa vez, algo mudou.
Antes de acordar, ele disse:
— Está perto agora. Mas você precisa escolher. Luz ou sombra.
Ana se sentou na cama de supetão. A respiração descompassada. O colar ardendo contra o peito.
Ela não sabia o que significava aquilo. Mas sentia, com todas as células do corpo, que algo estava para acontecer.
E quando, na manhã seguinte, Dona Ivone a chamou em sua sala e disse que um casal estava interessado em adotá-la, Ana não ficou surpresa.
Ficou em silêncio.
— É um casal estranho — confessou Ivone, com o cenho franzido. — Educados, mas... você vai entender quando os vir. Têm filhos, vários. E moram numa casa grande, afastada da cidade. Mas disseram que, quando viram sua foto, sentiram algo.
Ana concordou com o olhar distante.
Como se já soubesse.
O carro preto subia a estrada estreita com lentidão, como se a própria terra resistisse a levá-los até o topo. Ana observava pela janela, o coração em silêncio. As árvores dos dois lados da estrada se inclinavam, formando túneis de sombra e vento. Era como atravessar uma fronteira invisível.
Ela apertava entre os dedos o colar com a pedra azul. Não sabia por que, mas ele parecia... inquieto. Quente. Como se soubesse que estavam chegando perto de algo importante. Cada quilômetro a afastava do orfanato — de Eduardo, de Ender, de tudo o que conhecia.
— Está tudo bem? — perguntou Helena, do banco da frente, virando-se com um sorriso gentil.
Ana assentiu, mas não respondeu. Maurício, o pai adotivo, dirigia com atenção, o rosto sério. Não haviam feito muitas perguntas. Apenas disseram que a escolheram porque algo “nela” chamava a atenção. Como se tivessem esperado por Ana, e não por uma filha qualquer.
A estrada terminou numa clareira cercada por névoa. E lá, no alto da colina, surgiu a casa.
Era grande. Antiga. Feita de tijolos escurecidos pelo tempo. As janelas altas lembravam olhos atentos. Havia vitrais coloridos, uma varanda de madeira com ganchos vazios, e um sino enferrujado pendurado na entrada.
Mas não foi a casa que chamou a atenção de Ana, foi o que estava além da casa: o parque de diversões.
Mesmo à distância, mesmo envolto pela névoa, ela reconheceu os contornos da roda-gigante. Estava lá. Exatamente como nos sonhos. Os brinquedos adormecidos. Os arcos decorativos. O portão de ferro com letras gastas.
— Ele está fechado há muitos anos — disse Helena, notando seu olhar. — Mas a história. Algumas boas. Outras... nem tanto.
Ana não respondeu. Um arrepio percorreu sua espinha.
A casa cheirava a madeira antiga e incenso adocicado. Tudo era limpo demais. Organizado demais. Como se tivessem preparado cada canto para impressionar. Mas havia algo artificial ali. Como um cenário esperando pelos atores certos.
As crianças apareceram logo.
Tereza, a menor, surgiu de trás de uma poltrona. Tinha olhos grandes demais para o rosto pequeno e segurava um urso de pelúcia com força. Olhou para Ana sem dizer nada.
— Essa é a Tereza — disse Helena, orgulhosa. — A caçula.
Depois vieram os outros: Violeta, com oito anos e um olhar julgador. Nicolas, mais velho, calado. Os gêmeos Rafael e Rafaela, espalhafatosos, inquietos. Todos a olharam como se Ana fosse uma peça fora do tabuleiro.
— Ela não parece tão especial assim — disse Violeta, cruzando os braços.
— Violeta! — advertiu Helena, com um olhar duro.
Maurício interveio:
— Eles só precisam de tempo — disse Maurício — Todos temos traumas, Ana.
Ana apenas assentiu. Mas já sabia que o problema não era o tempo. Aquela casa tinha seus próprios segredos. E ela não sabia se estava entrando em uma nova família — ou em uma armadilha bem disfarçada.
Naquela noite, em seu quarto novo, sentou-se na beira da cama e olhou pela janela. A névoa ainda pairava sobre o parque. As luzes estavam apagadas. Mas ela sentia. Algo ali esperava por ela. Algo que já conhecia seu nome.
E antes que adormecesse, a voz sussurrou, como sempre:
— Você está mais perto agora, Ana. Só precisa lembrar...
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