O plantão da emergência estava uma verdadeira tempestade de caos. O ambiente, já abafado pelas tensões, parecia se transformar em um campo de batalha onde a vida e a morte se enfrentavam sem piedade. Gemidos ecoavam pelos corredores, misturados aos gritos desesperados de "vaga zero". As sirenes cortavam o ar, como se o tempo estivesse se esvaindo junto com as esperanças das pessoas que ali estavam. Aurora, a estagiária discreta, permanecia na sombra. Não se arriscava a intervir, apenas observava, aprendia, aguardava. Sabia que seu lugar era aquele, onde os outros bradavam por socorro, e ela apenas se mantinha invisível, como uma sombra na margem de um oceano tempestuoso.
Mas, naquele momento, o destino decidiu que não haveria mais espera. A técnica de enfermagem apareceu, correndo, o rosto marcado pela urgência:
— Queda de altura! Criança, oito anos! Saturando mal! — sua voz cortava o ar com uma precisão que refletia a gravidade da situação.
O menino chegou à sala de emergência com um tom roxo, os lábios quase negros, os olhos sem vida. Sua respiração era uma luta, fraca e irregular, cada tentativa de respirar parecia um esforço insano. O lado esquerdo do seu tórax estava imóvel, como se o pulmão estivesse mudo, preso em um grito silencioso. O monitor apitou, e os números fizeram o estômago de Aurora revirar. Saturação a 78%. Pressão despencando. Era um pesadelo, um conto de terror para qualquer médico. Ela sabia o que estava acontecendo: pneumotórax de tensão. Não havia dúvida. A gravidade da situação não deixava espaço para outra explicação. Mas o que faltava era o médico. Não havia ninguém disponível, ninguém que pudesse assumir o controle.
Aurora olhou para os lados, seus olhos buscando uma liderança que não existia. Nada além de pânico e desespero em cada rosto. Os outros profissionais estavam tão perdidos quanto ela. Nenhuma voz firme, nenhuma ordem que pudesse acalmar a tempestade. O menino estava morrendo diante dela, e ela sentiu um peso insuportável no peito.
— Cadê o Dr. Sampaolli? — ela perguntou, mais por instinto do que por esperança.
— Está na cirurgia da UTI, não vai conseguir vir agora! — alguém respondeu, a voz carregada de impotência.
O tempo estava se esvaindo, e o menino estava lutando contra ele. Não havia tempo para esperar. Aurora sentiu o calor crescente em suas palmas, seus dedos tremendo, mas seus olhos estavam focados, implacáveis. A decisão foi tomada, e não havia retorno. Ela sabia que ali, naquele momento, a única coisa que poderia salvar a vida da criança era ela.
— Me dá uma agulha 14G. Agora. — Sua voz não vacilou.
Uma residente olhou para ela, os olhos arregalados, a incredulidade estampada no rosto.
— Você tá louca?! — sussurrou a residente, a voz baixa, como se tentasse apagar o que acabara de ouvir.
— Você é estagiária! Vai acabar com tudo! — alguém mais gritou, mas Aurora já estava além da dúvida. O medo não era mais uma opção.
Ela pegou a agulha, sentindo a frieza do metal contra a palma de sua mão. O som do ambiente parecia diminuir, como se o mundo estivesse esperando. Ela se posicionou com calma, sua mente clara como cristal. No segundo espaço intercostal, a agulha entrou com precisão. Um assobio de ar escapou, como se a própria vida tivesse voltado para o corpo do menino. O pulmão se expandiu, e a criança respirou, ainda fraca, mas viva.
Aurora trabalhou com uma precisão que ela mal reconhecia em si mesma. Instalou o dreno com a mesma destreza, cada movimento uma ação calculada, fria, enquanto o resto da equipe estava paralisada. Não houve aplausos, não houve comemoração. O menino foi levado rapidamente para o centro cirúrgico, e ela permaneceu ali, o peso da responsabilidade ainda no ar.
E então, o silêncio. O tipo de silêncio que se segue a uma tempestade. Os passos firmes no corredor quebraram o clima pesado, e ele entrou na sala, como uma sombra que ofuscava tudo à sua volta. Dr. Artur Sampaolli. Sua presença era um peso, uma força que parecia deslocar o ar. O olhar dele, afiado como lâminas, percorreu cada canto da sala, e a tensão aumentou. Ele era o tipo de homem que parecia não ter sentimentos, só exigências e resultados. E, naquele momento, os olhos de todos estavam nele, esperando o veredicto.
Ele parou diante de Aurora. Os outros, em silêncio, recuaram, seus corações batendo mais rápido. A expectativa era insuportável, mas ela não vacilou. Ela olhou para ele com um frio controle, seu coração acelerado, mas suas mãos firmes. Ele a analisou, como se pesasse cada átomo de sua existência.
— Quem foi que fez a descompressão? — Sua voz era profunda, com aquele tom cortante que sempre a deixava nervosa.
Aurora hesitou por um instante, mas não vacilou. Era a hora de assumir.
— Fui eu, senhor. — Sua voz soou clara, firme, apesar da tempestade interna que ainda tentava controlar.
O silêncio na sala foi esmagador. O mundo parecia ter parado. Ela esperou a condenação, o olhar desdenhoso, a bronca que ela sabia que estava prestes a receber. Mas não veio. Em vez disso, a expressão de Artur Sampaolli se manteve inalterada por um segundo que pareceu durar uma eternidade. E então, ele fez algo que ninguém jamais imaginaria: cruzou os braços, ergueu uma sobrancelha, e o impossível aconteceu. Sua voz, que sempre soara fria e distante, agora carregava algo diferente.
— Coragem. Técnica impecável. E raciocínio clínico rápido.
Ele virou a cabeça levemente, e pela primeira vez, alguém viu o que parecia ser… um elogio. Ele continuou, em um tom direto, mas com uma leveza quase imperceptível:
— Excelente trabalho, Aurora.
O mundo congelou. As respirações ficaram suspensas no ar. Ninguém jamais imaginara ouvir aquelas palavras saírem de sua boca. Artur Sampaolli, o mestre implacável, acabara de elogiar alguém. E não qualquer um. Aurora, a estagiária. Ela sentiu o coração bater forte, rápido demais, como se o universo inteiro tivesse se alinhado naquele momento. Ela tentou não corar, mas a sensação era incontrolável. Seu corpo estava em chamas, mas seus olhos não desviavam do homem que, até aquele instante, havia sido apenas uma figura distante e inatingível.
Ele se virou, sem dizer mais nada, e saiu da sala, deixando a equipe atônita e o ambiente completamente em silêncio. O eco de suas palavras ainda reverberava na mente de Aurora, como uma melodia suave, impossível de esquecer.
— Ele elogiou ela... — murmurou uma colega, a incredulidade clara na voz.
— Pela primeira vez na vida... — outra completou.
Aurora sentiu um sorriso tímido ameaçar surgir em seus lábios. Mas não era apenas o orgulho do trabalho bem feito que a consumia. Era algo mais. Algo profundo. Algo que ela mal sabia definir. O nome dele ecoava em sua mente, martelando a cada batida do seu coração.
Artur Sampaolli. E, agora, ele sabia o nome dela também.
Enquanto isso, do outro lado da cidade...
O cheiro de sangue misturado a óleo queimado pairava espesso no ar, como uma neblina invisível que se entranhava nos pulmões. O galpão abandonado, com suas paredes descascadas e pilares corroídos pelo tempo, estava mergulhado em penumbra. A única iluminação vinha de lâmpadas industriais penduradas por fios retorcidos, que oscilavam com o vento, lançando sombras inquietas pelo chão rachado de concreto.
Correntes tilintavam ao menor movimento, como sinos fúnebres anunciando o inevitável.
No centro do cenário de tortura, envolto por ferramentas enferrujadas, manchas antigas e novos respingos de sangue fresco, estava Lucca De Rossi.
Alto, de ombros largos, ele parecia esculpido em granito. A camisa social branca, outrora impecável, estava agora manchada de sangue nas mangas arregaçadas. As tatuagens em seus antebraços — símbolos da velha Sicília, serpentes entrelaçadas em rosas sombreadas com datas e nomes apagados — pareciam pulsar à luz trêmula, como vivas. Como se cada linha contasse uma história que só ele sabia. Uma história de promessas quebradas e justiça feita pelas próprias mãos.
No chão, acorrentado à estrutura metálica, o homem gemia entre espasmos de dor. O rosto inchado era uma massa irreconhecível de hematomas, cortes e sangue. Um dos olhos estava completamente fechado. Ainda assim, ele resistia. Recusava-se a falar.
Lucca o encarava com um misto de desprezo e paciência doentia. Os olhos azul-gelo estavam fixos nele, e sua respiração era controlada — como um animal predador aguardando o momento exato do ataque final.
— Chi era il tuo capo? — sua voz soou como metal sendo arrastado no concreto. Grave, rouca, arranhando sílabas como lâminas afiadas. O sotaque siciliano dava peso a cada palavra, como se cada som estivesse impregnado de sangue.
O homem respondeu cuspindo no chão. Um ato de desafio. Ou de desespero.
Lucca não hesitou. O soco veio direto, preciso, no estômago. O baque abafado foi seguido por um som úmido, e o corpo do prisioneiro arqueou, perdendo o fôlego, quase desmaiando. Ele tossiu sangue, tremendo.
Lucca se aproximou, a mandíbula cerrada com tanta força que os músculos da face saltavam sob a pele. Os dedos grandes apertaram seu próprio maxilar antes de se soltarem, e então ele se abaixou lentamente, até ficar cara a cara com o inimigo, tão perto que podia sentir o cheiro azedo do medo.
— Tu hai ucciso la mia promessa... Tre anni fa… E io ti ho trovato. Ora mi dici chi l’ha ordinato, o giuro su tutto ciò che ho che ti spezzo un osso alla volta.
(“Você matou minha noiva... Três anos atrás... E eu te encontrei. Agora me diz quem mandou, ou juro por tudo que tenho que vou quebrar um osso por vez.”)
A voz saiu grave, quase carinhosa. Como se estivesse contando uma história de ninar. Mas era uma história sobre morte. Sobre dor. Sobre promessas não cumpridas.
Os olhos de Lucca ardiam. Mas não de lágrimas. Eram brasas congeladas. O tipo de dor que não grita — consome. Silenciosa. Mortal.
Ele ficou ali, frente ao homem que um dia ajudou a arrancar dele a única coisa que amava. Não era apenas uma busca por justiça. Era pessoal. Era íntimo. Era ela.
E ela estava em tudo. No cheiro do sangue. No eco dos gritos. No silêncio que sobrava depois da violência.
Lucca se inclinou mais uma vez. Seu rosto à sombra. A voz saiu baixa, quase um sussurro:
— Dimmi... o la tua morte sarà lenta, dolorosa… e completamente solitaria.
(“Fala... ou sua morte será lenta, dolorosa... e completamente solitária.”)
O homem o fitou por um instante. Os olhos desfocados e enevoados pela dor. E então murmurou com os lábios partidos, quase sem ar:
— Lei ha implorato… pietà...
("Ela implorou... por piedade...")
Lucca congelou.
O mundo parou por um instante. Seu estômago revirou. O ar se tornou denso, difícil de puxar. A imagem dela veio com força. O vestido branco, os olhos cheios de vida. O riso que ecoava na varanda. O toque da pele dela sob a dele na última noite. E agora… essa frase.
Ela implorou.
A raiva subiu como uma onda. Mas ele a segurou. Não por controle — mas por cálculo. Aquela dor não o faria perder a clareza. Só o tornava mais cruel.
A porta do galpão se fechou atrás dele com um estalo metálico. Ecoou como um sino de sentença.
Ele se afastou, pegou o paletó da cadeira e puxou o maço de cigarros. Acendeu com calma. Tragos longos. A fumaça dançava no ar como espectros.
Foi então que o celular vibrou no bolso da calça escura.
Ele viu o nome na tela e congelou de novo.
Renato Smitch.
Seu irmão de alma. Amigo de infância. O único homem a quem devia mais do que a própria vida.
Atendeu sem dizer uma palavra. Só silêncio.
Do outro lado, a voz tensa soou firme, mas trêmula:
— Lucca... preciso de você.
— Parla.
(“Fala.”)
— É Aurora.
A simples menção daquele nome fez o sangue de Lucca gelar. Por fora, permaneceu imóvel. Mas por dentro... tudo desabou. Uma lembrança adormecida se ergueu como uma chama esquecida.
— O que tem ela? — perguntou, a voz baixa, contida.
— Precisa de proteção. Por seis meses. Só isso.
— Por quê?
— Porque o que está pra acontecer vai atrair inimigos. Gente perigosa. Sem honra. Sem regras. E ela... ela é a única coisa que me mantém são.
Lucca fechou os olhos. Uma respiração profunda escapou, trazendo com ela um eco antigo de lembranças enterradas. Aurora. Os olhos dela. O jeito como o olhava sem medo, mesmo quando criança. A coragem que ela carregava. A doçura teimosa. A mulher que ele acompanhou de longe por tantos anos, sem nunca ultrapassar os limites que traçou para si mesmo.
Errado. Perigoso. Mas real.
— Perché io?
(“Por que eu?”)
— Porque você não falha. Porque é o único em quem confio. E porque sei... que você nunca deixaria nada acontecer com ela.
Silêncio.
Lucca caminhou devagar pelo galpão vazio. O cigarro queimava em seus dedos. Ele encarou o teto metálico e pensou na última vez em que tentou proteger alguém. No corpo sem vida da noiva nos braços. No sangue quente manchando sua camisa. Na promessa que fez, entre gritos e lágrimas, de nunca mais deixar alguém entrar.
Mas Aurora...
Aurora era um capítulo que ele nunca escreveu, mas nunca esqueceu.
— Vai ter alguém atrás dela? — sua voz saiu rouca.
— Ainda não sei. Mas vai ter. E quando tiver... eu não vou conseguir chegar a tempo. Você vai. Você é o tempo, Lucca.
Ele deixou o cigarro cair no chão e o pisou com fúria contida. O silêncio era uma tempestade prestes a explodir.
— Seis meses?
— Só seis.
Ele pensou em negar. Em dizer que já estava quebrado demais para tentar de novo. Que prometer proteção era como cavar outra cova.
Mas então, em sua mente, viu o rosto dela. O sorriso. Os olhos. A esperança que ela carregava.
E ele sabia.
Nada seria simples.
Nem seguro.
Muito menos... impessoal.
— Manda o endereço. — disse, por fim. — A partir de agora... Aurora é minha responsabilidade.
E desligou.
O motor do jatinho particular roncava como um predador pronto para caçar. Lucca estava recostado na poltrona de couro preto, com um copo de uísque na mão, mas os olhos... estavam distantes. A cidade abaixo era só um borrão de luzes, e o relógio em seu pulso marcava o tempo como uma contagem regressiva.
Aurora.
O nome ecoava em sua mente como um sussurro persistente.
Ele já tinha feito segurança para políticos, empresários e mafiosos poderosos. Mas essa missão era diferente. Porque ela era diferente. Porque no fundo do peito — no lugar onde ele jurava que não existia mais sentimento — algo começou a pulsar. Algo que ele não queria nomear.
Ele revisou mentalmente tudo o que sabia sobre ela.
Vinte e três anos. Se formando em Medicina. Inteligente, discreta, boa demais para o mundo sujo. E naquela noite, ela estaria... em uma boate?
Lucca franziu o cenho e apertou o copo com força. Não parecia o tipo de coisa que Aurora faria. E justamente por isso... algo o incomodava.
Ele pousaria em menos de duas horas.
E enquanto voava em direção ao desconhecido, ela... já estava dentro dele.
Na cidade...
Aurora se olhava no espelho do banheiro da boate com uma expressão de quem claramente não pertencia àquele ambiente. Os olhos bem delineados com rímel, o batom vermelho mais ousado do que o habitual e o vestido justo até o joelho eram uma tentativa frustrada de parecer à vontade.
Ao lado dela, Fernanda, sua melhor amiga desde o colégio, ajeitava os óculos e passava um pouco de brilho labial com as mãos trêmulas.
— A gente vai embora daqui a pouco, né? — Fernanda perguntou, olhando de canto para Aurora.
— É claro. Só precisamos... fingir por uma hora que somos sociáveis. — Aurora sorriu nervosa, tentando parecer confiante.
— Nerds infiltradas em território inimigo. — Fernanda disse, e as duas riram.
Aurora respirou fundo. Não estavam ali por escolha. Estavam por Natan, o irmão mais velho de Aurora — e dono da boate mais badalada da cidade. Ele praticamente implorou para que ela fosse naquela noite de reinauguração.
Aurora topou... por ele.
Mas agora, cercada por luzes estroboscópicas, música alta e corpos suados dançando, ela se sentia deslocada. Ainda assim, mantinha o queixo erguido. Porque mesmo com o salto incomodando e o vestido a sufocando, ela era teimosa. E Fernanda também.
As duas saíram do banheiro e voltaram para o camarote reservado por Natan. Um segurança enorme com cara de poucos amigos fazia guarda à porta. Elas entraram. Era um espaço um pouco mais afastado da pista, com sofás pretos, uma mesa com bebidas caras e uma vista privilegiada da boate.
Natan ainda não havia aparecido, mas ela sabia que ele estava de olho.
Aurora se sentou, cruzando as pernas, e tentou se distrair observando as pessoas. Era um mundo diferente do que ela conhecia. Mas havia algo naquela noite... uma sensação estranha no ar. Como se algo estivesse prestes a acontecer. Como se os olhos de alguém a observassem de longe.
— Você tá com cara de quem tá sentindo a Matrix colapsar — Fernanda comentou, abrindo uma garrafinha de água com gás.
Aurora riu baixo.
— Não sei... só tô com uma sensação esquisita. Tipo... pressentimento.
Fernanda a olhou de lado.
— Você sabe que isso nos filmes sempre significa que alguém vai morrer ou se apaixonar.
Aurora revirou os olhos.
— Ótimo. Espero que seja a segunda opção. Porque eu não tô com paciência pra lidar com cadáver hoje.
As duas riram, mas Aurora voltou a olhar para a multidão. E seus olhos pararam... sem saber por quê.
No aeroporto...
Lucca desceu do jatinho, o paletó pendurado no braço, e o olhar gelado. Um SUV preto o aguardava na pista. Ele entrou, deu o endereço da boate de Natan e cruzou os braços.
A noite estava apenas começando.
E ele mal sabia... que a mulher que jurou proteger estava prestes a balançar seu mundo inteiro.
Aurora ajeitou o cabelo com dedos trêmulos, os olhos varrendo o camarote com inquietação. Vestia um vestido vinho, colado ao corpo, mas sem exagero — elegante, como ela. O salto lhe dava postura, mas também dor. Nada daquilo fazia parte de quem ela era, e ainda assim, ali estava.
Estava prestes a se formar em medicina — o orgulho da família, a mais nova entre os internos do hospital universitário. Passava os dias em plantões exaustivos, anotando prontuários, atendendo pacientes, lidando com a morte de frente. A boate parecia um universo paralelo.
Ao lado, Fernanda sorvia a água com gás, abraçada a uma almofada do sofá como se aquilo a protegesse da selva lá fora.
— Você acha que o Natan chamou a gente pra essa boate só pra vigiar? — Fernanda perguntou, com um sorrisinho desconfiado.
Aurora bufou.
— Conhecendo meu irmão? Cem por cento de certeza. Ele quer me manter por perto. Mesmo sabendo que a gente vai embora em menos de duas horas.
— Não culpo ele. Você vive no hospital. Já viu mais traumas que eu em todos os episódios de Grey's Anatomy.
Aurora sorriu. Mas o sorriso durou pouco. Algo na atmosfera mudou. Um arrepio lhe subiu pela nuca. Ela se virou instintivamente para a entrada da boate, mesmo sem saber por quê.
E foi quando o viu.
Lucca.
Entrando como se pertencesse à noite.
Paletó escuro, olhar afiado como lâmina. O segurança da porta falou algo, mas ele nem respondeu. Apenas passou, com a postura de quem sabe que ninguém tem coragem de impedi-lo. O blazer pendia do ombro com descuido, revelando os braços fortes sob a camisa. O cabelo castanho escuro estava levemente bagunçado pelo vento do aeroporto, e a barba por fazer reforçava o ar perigoso.
Aurora congelou.
O mundo inteiro pareceu silenciar.
Ela não o via há anos. Desde aquele verão em que ele sumiu da vida dela — depois de trabalhar um tempo para Natan como segurança. Na época, ela era uma garota de 17 anos que olhava para ele como quem olha para um herói de filme de ação. Ele a ignorava com perfeição. Sempre cortês, sempre distante.
Mas agora... ele estava ali. Mais homem, mais sombrio. E os olhos dele — aqueles olhos cinzentos, gélidos — pararam diretamente nos dela.
Ela prendeu a respiração.
O coração, traidor, deu um salto dolorido no peito.
Lucca também parou por um instante. Como se o universo tivesse dado um comando silencioso de pausa. Só os dois. Só aquele olhar. O tempo entre eles parecia não ter passado.
Mas passou.
E cada segundo pesava como chumbo nos ombros de Lucca.
Ele se aproximou devagar, como um predador estudando o território. Aurora tentou desviar o olhar, mas não conseguiu. Era como se os olhos dele tivessem grilhões.
— Aurora — ele disse, com aquela voz grave que ela reconheceria em qualquer lugar, mesmo no meio do caos.
— Lucca. — Ela respondeu, tentando soar firme. Mas havia um tremor em sua voz. E em sua alma.
Fernanda, muda ao lado, parecia hipnotizada com a cena, segurando o copo como se fosse sua única defesa.
Lucca a olhou de cima a baixo, sem esconder. Não como um homem qualquer. Mas como alguém que precisava ter certeza de que ela estava bem. De que ninguém a tocou. De que ela era intocável.
— Seu pai me chamou. Disse que você precisava de proteção.
Aurora ergueu o queixo.
— Proteção de quê?
— Ainda não sei. Mas se alguém quiser encostar em você... vai ter que passar por mim.
Ela engoliu seco. O coração em disparada, a cabeça em confusão.
Afinal, quem era Lucca agora?
E por que, depois de todos esses anos, ele ainda causava esse efeito nela?
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