O gosto amargo e metálico do sangue se espalhava pela minha boca. Meu corpo doía como se estivesse sendo esmagado, e a cada golpe de Ethan, a dor se tornava insuportável. Meus olhos estavam turvos, lacrimejando, mas eu não podia fechar os olhos. Eu não podia ceder.
— Por favor... — murmurei, minha voz falhando, fraca.
Eu supliquei. Implorei. Mas Ethan não parou. Como um animal raivoso, ele continuou. Seus punhos eram como martelos pesados atingindo meu corpo sem piedade. Cada soco arrancava o ar dos meus pulmões, cada chute fazia minha visão piscar.
— Eu não vou assumir essa porra! — ele gritou, antes de desferir mais um golpe.
A dor rasgava minha carne, mas meu medo era maior do que qualquer hematoma ou osso quebrado. Eu carregava uma vida dentro de mim. Apenas dois meses, mas eu já amava aquele bebê com tudo o que tinha. Meu instinto materno gritava dentro de mim, ordenando que eu protegesse meu filho a qualquer custo.
Com as mãos trêmulas, abracei meu ventre. Tentei me encolher, minimizar os danos, mas Ethan era muito maior, muito mais forte. Ele queria me destruir.
Meu rosto latejava. O calor do sangue escorrendo pela minha testa se misturava ao suor frio da dor. Minha respiração era irregular, entrecortada por soluços e tentativas desesperadas de permanecer consciente.
Mas eu não podia morrer ali.
Com um último resquício de força, empurrei Ethan com tudo o que tinha. Ele cambaleou para trás e caiu. Era minha chance.
Corri.
Corri como nunca. Corri pela minha vida. Corri pela vida do meu bebê.
Meus pés descalços encontravam o asfalto gelado da rua. O frio cortante da madrugada castigava minha pele, mas eu mal sentia. O medo era mais forte que qualquer dor.
Ofegante, fui batendo de porta em porta, esmurrando madeira, tocando campainhas.
— Por favor, me ajudem! — minha voz era um grito desesperado, mas ninguém abriu.
As luzes tremulavam dentro das casas, sombras se moviam atrás das cortinas, mas as portas permaneciam fechadas. O silêncio me esmagava tanto quanto os socos de Ethan.
Eles tinham medo.
Eu também tinha.
Minhas pernas fraquejavam, mas eu não podia parar. Cada passo era uma luta contra o próprio corpo, contra o cansaço, contra a dor latejante que insistia em me puxar para baixo.
A delegacia mais próxima ficava longe, longe demais para alguém na minha condição. Mas não importava. Eu precisava chegar lá.
Sangue pingava de meus lábios cortados, minhas roupas estavam rasgadas, minhas mãos tremiam, mas eu continuei. Um passo de cada vez.
Quando finalmente avistei o prédio da polícia, senti minhas forças falharem. Minhas pernas cederam, e caí de joelhos no asfalto áspero.
— Ajuda... — murmurei, sem fôlego.
A última coisa que vi foram policiais correndo na minha direção antes de minha visão escurecer completamente.
A escuridão me envolveu como um manto pesado, e por um momento, não havia mais dor, nem medo, nem frio. Apenas o vazio.
Então, uma voz distante me puxou de volta.
— Senhorita! Você pode me ouvir? — A voz masculina soava preocupada.
Minha cabeça latejava, meus membros estavam pesados, mas tentei abrir os olhos. As luzes fortes da delegacia fizeram minha visão arder, me forçando a piscar algumas vezes até que tudo ficasse menos embaçado.
Um policial uniformizado estava ajoelhado ao meu lado. Havia outros ao redor, suas expressões uma mistura de urgência e compaixão.
— O que aconteceu com você? Quem fez isso? — ele perguntou, sua voz mais branda agora.
Minha garganta queimava. Tentei falar, mas tudo o que saiu foi um gemido fraco.
Outra policial, uma mulher de olhos gentis, ajoelhou-se perto de mim e pousou uma mão leve no meu ombro.
— Você está segura agora. Nós vamos ajudar. Respire fundo.
Seguro.
A palavra ecoou na minha mente, mas parecia tão distante da realidade. Minha pele ainda ardia, minha cabeça girava, e o gosto de sangue persistia em minha boca. Meus braços ainda protegiam instintivamente meu ventre.
O bebê.
— Meu bebê... — murmurei, os olhos marejados de pavor.
A policial imediatamente se inclinou, entendendo minha preocupação.
— Você está grávida?
Assenti com a cabeça, os soluços começando a escapar da minha garganta.
— Por favor, salvem meu bebê. Ele me bateu muito... — minha voz falhava, meu corpo tremia.
Os policiais se entreolharam, e um deles rapidamente chamou uma ambulância.
— Vamos levá-la ao hospital agora. Você precisa ser examinada.
As sirenes soaram ao longe, e em poucos minutos, paramédicos me colocaram em uma maca. Meus olhos começaram a se fechar novamente, mas dessa vez, não era o desespero me puxando para a escuridão. Era o cansaço. O esgotamento absoluto.
Enquanto era levada para a ambulância, senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto. O medo ainda estava ali, mas, pela primeira vez em muito tempo, também havia uma centelha de esperança.
Eu sobrevivi. Meu bebê ainda tinha uma chance.
E Ethan...
Ele nunca mais me tocaria.
A dor veio como uma onda avassaladora. Primeiro, uma pontada no baixo ventre, uma fisgada incômoda que me fez franzir a testa. Mas logo se tornou algo pior. Algo insuportável.
Eu estava deitada na cama do hospital, ainda tonta, meu corpo fraco depois de tudo o que havia acontecido. Mas quando a dor aumentou, um aperto gélido tomou conta do meu peito. Algo estava errado.
— Ahn... — gemi baixinho, minhas mãos instintivamente indo até minha barriga.
Meu coração começou a bater forte, rápido demais. Não, não, por favor, não.
Um calor estranho se espalhou entre minhas pernas. Meu corpo gelou. Algo estava muito errado.
Com o coração disparado, olhei para baixo. Meu sangue pareceu evaporar quando vi o lençol branco tingido de vermelho.
Sangue.
Muito sangue.
O grito escapou da minha garganta antes mesmo que eu percebesse.
— Não! Meu bebê! — A angústia cortou minha voz, e as lágrimas desceram em cascata pelo meu rosto ferido.
O desespero me sufocava. Eu queria segurar, impedir, proteger, mas tudo o que sentia era o calor do sangue escorrendo. Meu bebê...
Uma enfermeira entrou correndo ao ouvir meu grito. Seu olhar arregalado confirmou o que eu já sabia, mas me recusava a aceitar.
— Precisamos de ajuda aqui! — ela gritou, apertando o botão de emergência na parede.
Minha respiração estava errática, descontrolada. Meu peito subia e descia em soluços de puro desespero.
Não pode estar acontecendo. Não agora. Não assim.
Meu corpo se contorceu quando mais uma onda de dor me atingiu. Algo dentro de mim estava errado... algo estava se desfazendo.
— Não tirem ele de mim... — implorei, minha voz rouca, meu corpo tremendo.
Mais pessoas entraram no quarto. Médicos. Enfermeiros. Todos falando ao mesmo tempo, vozes apressadas e preocupadas que se misturavam num ruído distante.
Alguém me virou de lado. Alguém espetou meu braço com algo. Eu tentei lutar, tentei dizer que meu bebê precisava de mim, que eles tinham que fazer algo, mas a dor me engoliu.
Então, veio a escuridão.
Quando meus olhos se abriram novamente, o quarto estava mergulhado em silêncio. O ar frio fazia minha pele arrepiar, mas o que me incomodava não era isso.
Era o vazio.
Minha mão trêmula deslizou até minha barriga. Meu coração parou por um segundo.
Ainda estava ali. Mas vazia.
Uma sensação horrível se espalhou por mim, um frio cortante, um pavor tão grande que me tirou o ar.
Uma sombra se moveu ao meu lado. Levantei os olhos e vi uma enfermeira me observando. Seu rosto carregava um olhar que eu nunca mais queria ver na vida.
Pena.
Eu não queria pena.
Eu queria meu filho.
— Sinto muito... — a enfermeira começou.
Mas eu já sabia.
O ar me faltou. Meu peito se apertou, como se mãos invisíveis esmagassem meu coração.
E então, a dor veio. A pior de todas.
Um soluço escapou dos meus lábios antes que eu pudesse contê-lo. Meus olhos se encheram de lágrimas, e o choro veio sem controle, sufocante, inescapável.
Meu bebê se foi.
E junto com ele, uma parte de mim morreu também.
Minha vida estava um completo caos. Meu corpo ainda carregava marcas dos hematomas, mas as feridas mais profundas não eram visíveis. O que Ethan fez comigo não ficou apenas na minha pele, estava gravado na minha mente, no meu coração, na minha alma.
O tratamento psicológico havia se tornado parte da minha rotina, mas por mais que tentasse seguir em frente, um medo constante me assombrava. Ethan estava preso. Por enquanto. Mas eu sabia que não ficaria assim para sempre. Com um bom advogado, ele voltaria para as ruas, e quando isso acontecesse... ele voltaria para me encontrar.
- Kiara?... Kiara.
A voz suave da psicóloga me trouxe de volta. Pisquei algumas vezes, tentando afastar os pensamentos que me envolviam como um pesadelo interminável.
- Sim? - murmurei, sentindo minha perna balançar inquieta.
Ela me observou por alguns segundos antes de perguntar:
- O que planeja fazer?
Respirei fundo. Minha garganta estava seca, mas eu não hesitei.
- Ele vai voltar. Mais cedo ou mais tarde, ele vai sair daquela prisão.
A psicóloga manteve a calma, como sempre fazia.
- Kiara, Ethan está preso. Ele não pode te machucar.
Soltei uma risada amarga, sem humor.
- Ele vai. - Minha voz saiu firme, determinada. Mas dessa vez, eu não vou deixar.
Seus olhos demonstravam preocupação quando ela inclinou levemente a cabeça.
- O que pretende fazer?
Eu já sabia a resposta. Já havia pensado nisso inúmeras vezes. Era a única opção.
- Sumir. Ninguém nunca mais ouviria falar de Kiara.
A psicóloga respirou fundo, avaliando minha expressão. Então, com um tom cuidadoso, disse:
- Se essa é realmente a sua decisão, existe um recurso policial que pode te ajudar. Ele permite que vítimas sob risco recebam uma nova identidade. Você poderá recomeçar do zero, como quiser.
Meus dedos apertaram o tecido da calça. Um novo nome. Uma nova vida.
- Mas para isso, eu preciso mudar de faculdade... - minha voz saiu hesitante. Estudar sempre foi meu sonho, meu único plano para um futuro melhor. Eu perderia tudo?
A psicóloga sorriu, um sorriso encorajador.
- Isso não será um problema. Suas notas são excelentes, Kiara. E com o dinheiro da indenização, você poderá pagar uma boa faculdade.
Olhei para minhas mãos trêmulas. Uma parte de mim ainda tinha medo, mas outra... outra começava a sentir algo novo.
Esperança.
Eu teria que deixar tudo para trás. Meu passado. Meu nome. Minha história.
Mas era um preço que eu estava disposta a pagar. Porque dessa vez, ninguém mais me encontraria.
[...]
O zíper da mala deslizou com um som seco enquanto eu a abria sobre a cama. O quarto estava silencioso, mas na minha cabeça, as vozes do passado ainda ecoavam.
Minhas mãos tremiam levemente enquanto dobrava uma blusa e a colocava dentro da mala. Meu corpo ainda doía. Cada movimento lembrava os hematomas espalhados pelos meus braços, minhas costelas, meu rosto. Marcas que Ethan deixou em mim.
Passei os dedos sobre o roxo no meu pulso, onde ele me segurou com força na última vez. A dor já não era tão intensa, mas as lembranças eram.
Eu amei Ethan. Ou pelo menos, achei que amava.
Nos primeiros meses, ele era perfeito. Atencioso, carinhoso, dizia que eu era tudo para ele. Fazia planos, falava sobre o futuro, sobre como eu nunca estaria sozinha.
E eu me agarrei a isso.
Meus pais haviam morrido quando eu ainda era nova. Eu não tinha irmãos, não tinha parentes próximos. Passei a vida me sentindo sozinha, sem ninguém para me proteger. Então, quando Ethan apareceu, eu quis acreditar que ele era minha segurança.
Mas com o tempo, as palavras doces viraram gritos. O carinho virou controle. E o amor... o amor virou medo.
Coloquei um jeans na mala e fechei os olhos, respirando fundo. Lembrei da primeira vez que ele me empurrou. Foi um acidente, ele disse. Eu acreditei.
Depois veio o tapa. O puxão de cabelo. As desculpas. Os presentes depois das brigas. A culpa era minha, ele dizia. Eu o fazia ficar bravo. Eu o provocava.
E eu... eu pedi desculpas.
Abri a gaveta e peguei algumas fotos. Fotos antigas. Fotos onde eu sorria sem medo. Eu não era mais aquela garota.
Mas eu poderia ser.
- Não dessa vez. - murmurei para mim mesma, dobrando os papéis e colocando dentro da bolsa.
A pior parte foi quando descobri que estava grávida. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti feliz de verdade. Eu teria alguém. Não estaria mais sozinha.
Mas Ethan não pensou da mesma forma. Ele me bateu. Ele me espancou.
E eu perdi meu bebê.
Minha garganta apertou, e pisquei rapidamente para afastar as lágrimas. Não. Eu não choraria mais por ele.
Peguei os últimos pertences e fechei a mala. O peso dela parecia pequeno comparado ao peso que eu carregava dentro de mim.
Abaixei-me e puxei o zíper até o final, ouvindo o som do tecido se fechando. Assim como eu estava fechando essa parte da minha vida.
Ethan ainda estava preso, mas um dia sairia.
E quando esse dia chegasse... ele nunca mais me encontraria.
Eu estava indo embora. Para sempre.
Os dias seguintes foram preenchidos com a burocracia do meu desaparecimento. Documentos, assinaturas, reuniões com policiais. Mas entre tudo isso, eu continuava indo à terapia.
Era um compromisso silencioso que eu fazia comigo mesma.
Na sala aconchegante da terapeuta, me sentava sempre na mesma poltrona, cruzava os braços sobre o peito e tentava ignorar o aperto no estômago.
- Como está se sentindo hoje, Kiara? - a voz calma dela me alcançou.
Pensei por um instante. Como eu estava me sentindo? Exausta? Perdida? Talvez um pouco menos assustada.
- Ainda meio confusa. Parece que minha vida inteira está se desfazendo.
Ela me observou com paciência, esperando que eu continuasse.
Suspirei, deslizando as mãos sobre os joelhos.
- Ethan nem sempre foi assim, sabe? - minha voz saiu mais baixa do que eu esperava. - No começo... ele era incrível.
Fechei os olhos e me permiti voltar no tempo.
Lembro da primeira vez que o vi. Ele era forte, bonito e tinha aquele sorriso fácil, do tipo que fazia qualquer um se sentir à vontade perto dele. E o humor dele... sempre leve, sempre brincalhão. Eu me apaixonei tão rápido.
Ele me fazia rir, me fazia sentir especial. Lembro das mensagens de bom dia, dos beijos roubados enquanto caminhávamos pela rua, das noites em que assistíamos filmes e ele me puxava para perto, me envolvendo nos braços como se eu fosse a coisa mais preciosa do mundo.
- Morar com ele era bom, no começo. - continuei, sentindo um nó na garganta. - Eu nunca me senti tão segura antes. Ele dizia que me protegeria de tudo, que eu era o amor da vida dele.
A terapeuta assentiu levemente, me incentivando a continuar.
- Eu acreditei em cada palavra.
Abri os olhos e encarei as próprias mãos. Meus dedos apertavam o tecido da calça sem que eu percebesse.
- Era tudo perfeito, até que... começou a mudar.
A primeira vez que ele gritou comigo, eu gelei. Mas ele se desculpou depois, me abraçou, beijou meus cabelos e disse que estava estressado.
Depois veio a primeira vez que ele me segurou com força demais. Os dedos dele ficaram marcados no meu braço por dias, mas ele me trouxe flores, chorou, disse que nunca mais faria aquilo.
E então, um dia, ele bateu em mim.
A terapeuta manteve seu olhar sereno em mim, mas eu vi a sombra de tristeza nos olhos dela.
Engoli em seco.
- Eu sabia que estava presa em algo errado. Mas cada vez que ele dizia que me amava... eu queria acreditar.
Pisquei rapidamente, sentindo a dor se misturar com a saudade do que um dia foi bom.
Porque, no fundo, não era só o medo que eu sentia.
Era o luto.
O luto pelo homem que eu achei que ele fosse.
O silêncio se estendeu entre mim e a terapeuta. Minha respiração estava pesada, como se cada palavra dita tivesse drenado um pouco da minha força.
Ela não me pressionou, apenas me deu espaço para processar tudo o que eu acabara de dizer.
- É difícil aceitar que ele nunca foi quem eu pensei que fosse. - minha voz saiu quase como um sussurro.
Ela inclinou levemente a cabeça, me observando com empatia.
- Talvez ele tenha sido essa pessoa, no começo. Mas o amor de verdade não se transforma em medo, Kiara. Amor não machuca.
Olhei para minhas mãos, tentando absorver aquilo.
- Eu ainda me pergunto... se eu tivesse feito algo diferente, será que ele não teria mudado? Será que ele ainda me amaria do jeito que eu o amei?
- Você deve aprender a se amar, antes mesmo de amar outra pessoa, aprendendo isso, você vai aprender a não receber o mínimo. Você se contenta com migalhas de amor, Kiara, e não é assim que o amor funciona.
- E como é?
- Kiara, quando você aprender a se amar, você vai descobrir.
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Fugi como um criminoso, como um rato se esgueirando pelos becos escuros de uma cidade que não queria mais me reconhecer. Mas, no fundo, quem não queria ser reconhecida era eu.
Ganhei uma nova identidade, um novo nome. Odessa Gray.
Era estranho me chamar assim, estranho olhar no espelho e ver o reflexo de alguém que não existia antes. Kiara Gray estava morta. E talvez fosse melhor assim.
O passado ficou para trás, enterrado junto com as cicatrizes que Ethan deixou em mim. Mas, mesmo com um novo nome, um novo lugar, o medo ainda rastejava pela minha mente. Eu era livre, mas nunca deixaria de estar fugindo.
[...]
O relógio marcava duas da manhã quando finalmente pude embarcar. O voo deveria ter saído há uma hora, mas os atrasos eram apenas mais um detalhe em meio ao caos que minha vida havia se tornado.
Caminhei pelo corredor estreito do avião, segurando firme minha bolsa contra o peito, como se aquele pequeno peso pudesse me ancorar na realidade. Meu coração batia rápido demais, uma mistura de ansiedade, medo e um fio de esperança quase imperceptível.
Quando encontrei meu assento, me afundei nele, exausta. O avião ainda não havia decolado, mas eu já sentia o peso da viagem em meu corpo. Respirei fundo, tentando manter a calma.
Eu precisava ser forte.
Fechei os olhos por um momento. Minha mente insistia em revisitar tudo o que eu estava deixando para trás. O medo. A dor. O passado que me assombrava. Mas eu não poderia permitir que esses pensamentos me dominassem.
Eu precisava ser mais forte do que nunca.
Como mulher. Como vítima de violência doméstica. Como uma pessoa negra.
Nascemos na luta, crescemos na resistência. Carregamos o peso do mundo nas costas, e mesmo quando tentam nos quebrar, nós continuamos em pé.
Nada pode me fazer desistir.
Abri os olhos e olhei pela janela. As luzes do aeroporto cintilavam na escuridão da madrugada, refletindo meu próprio estado: frágil, mas ainda brilhando.
O piloto anunciou que em breve decolaríamos. Meu corpo se enrijeceu quando as turbinas ganharam força e o avião começou a se mover. Minhas mãos apertaram os braços da poltrona instintivamente. O medo de voar não era o problema, o verdadeiro medo era do que viria depois.
O avião decolou, e eu senti a pressão em meus ouvidos enquanto subíamos ao céu. Lá embaixo, Oregon se tornava apenas um conjunto de luzes distantes, cada vez menores.
Era isso. Eu estava partindo.
A viagem até Chicago levaria cerca de quatro horas. Quatro horas sozinha com meus pensamentos.
A primeira hora passou lentamente. Meu corpo estava cansado, mas minha mente se recusava a desligar. Será que fiz a escolha certa? Será que um dia vou conseguir me sentir segura de verdade?
Na segunda hora, tentei dormir, mas o sono não vinha. Toda vez que fechava os olhos, flashes do passado voltavam. O olhar de Ethan quando ficava com raiva. O som da sua voz gritando comigo. O impacto dos socos. O sangue. O choro. O bebê que nunca conheci.
Minha respiração ficou irregular. Minhas mãos estavam suadas. Me forcei a abrir os olhos e encarar a realidade ao meu redor. Passageiros dormindo. O barulho suave do avião cortando o céu. Eu estava segura. Pelo menos por agora.
Na terceira hora, senti um aperto no peito. Eu estava realmente sozinha no mundo. Sem pais. Sem família. Sem amigos. Era assustador perceber que, se eu sumisse, ninguém sentiria minha falta.
E, ao mesmo tempo, era libertador.
Eu podia recomeçar. Criar uma nova versão de mim, uma que não fosse feita apenas de medo e cicatrizes.
A quarta hora chegou, e com ela, um cansaço absoluto. A cidade de Chicago apareceu no horizonte, suas luzes brilhando como uma promessa de um futuro incerto.
O avião pousou suavemente, mas dentro de mim, uma tempestade continuava.
Respirei fundo.
Era só uma fase.
E eu precisava seguir em frente.
Cheguei a Chicago por volta das seis da manhã. O ar gelado cortou minha pele assim que desci do ônibus, e a cidade parecia respirar ao meu redor, com suas luzes neon e ruas ainda movimentadas, mesmo naquela hora.
O inverno estava à espreita, e eu me encolhi no casaco fino que vestia. Todo mundo ao meu redor parecia preparado para o frio—cachecóis grossos, luvas, gorros cobrindo as cabeças. Eu não.
Mas eu tinha uma missão: seguir em frente.
Chamei um táxi e dei o endereço rabiscado no papel. O motorista não perguntou nada. Apenas dirigiu em silêncio enquanto eu olhava pela janela as ruas desconhecidas que, a partir de agora, seriam minha nova casa.
Quando o carro parou, desci carregando minha mala e encarei o prédio à minha frente. Não era grande, nem luxuoso. Mas era meu.
Passei os dedos trêmulos pelo bolso e peguei as chaves. O ferro gelado queimou minha pele, mas ignorei e destranquei a porta. O interior do pequeno apartamento estava escuro e vazio. As paredes eram simples, sem enfeites. Havia um colchão jogado no canto do quarto preciso comprar um novo...
Mas havia potencial.
Joguei minha mala no chão e soltei um suspiro longo, finalmente sentindo o peso da jornada que fiz até ali.
Eu poderia transformar aquele lugar em um lar.
Eu iria transformá-lo.
Porque, pela primeira vez em muito tempo, esse espaço era só meu.
Fechei a porta atrás de mim e soltei um suspiro. O apartamento parecia frio e vazio, mas ainda assim, havia algo nele que me fazia sentir um resquício de segurança.
Minha mala estava jogada no chão, mas eu não tinha forças para desarrumá-la agora. Meu corpo implorava por descanso, minha mente pulsava com a exaustão da viagem e dos pensamentos que me assombravam.
Mas antes de dormir, eu precisava de um banho.
Passei a mão pelo interruptor e a luz fraca piscou antes de finalmente iluminar o pequeno espaço. A cozinha e a sala eram praticamente um só ambiente, e havia uma porta que eu imaginava levar ao banheiro.
Caminhei até lá, sentindo o piso gelado sob meus pés. O espelho acima da pia refletiu meu rosto e, por um instante, eu hesitei em me encarar. Mas não consegui evitar.
A mulher que me olhava de volta parecia uma estranha. Olheiras profundas escureciam meus olhos cansados. Meu rosto ainda estava marcado com pequenos hematomas, sombras dos golpes de Ethan. Meu lábio inferior tinha um corte quase cicatrizado, e minha pele parecia mais pálida do que nunca.
Odessa Gray.
Era esse o nome da mulher no espelho.
Suspirei e abri a torneira do chuveiro, esperando a água esquentar. O banheiro era pequeno e simples, com azulejos brancos um pouco desgastados. Mas eu não me importava.
Tirei minhas roupas devagar, sentindo o peso da viagem e das lembranças em cada movimento. Entrei debaixo da água e fechei os olhos.
O calor deslizou pela minha pele, e, por um momento, senti como se pudesse lavar não só a sujeira da viagem, mas tudo o que ainda pesava dentro de mim.
O medo. A dor. A culpa.
Encostei a testa contra a parede fria e respirei fundo.
Está tudo bem. Você está segura.
Mesmo que eu ainda não acreditasse totalmente nisso, repeti essas palavras na minha mente como um mantra.
Fiquei ali por vários minutos, deixando a água quente acalmar meus músculos tensos. Mas o cansaço logo falou mais alto.
Fechei o chuveiro e saí, me enrolando em uma toalha. Meus cabelos pingavam água no chão, mas eu não me importei, mas coloquei a toalha e dei uma checada no celular novo que comprei.
Vesti uma camiseta larga e uma calça de moletom, roupas confortáveis que ainda tinham o cheiro do meu antigo apartamento. Algo familiar em meio ao desconhecido.
Caminhei até o colchão no chão e me deitei, puxando o cobertor fino sobre meu corpo. O colchão era velho, um pouco duro, mas, naquele momento, parecia o lugar mais confortável do mundo.
Meu corpo afundou no tecido, e eu senti minhas pálpebras pesarem.
Fechei os olhos.
O relógio marcava quase sete da manhã. O mundo lá fora começava a ganhar vida, mas, para mim, o tempo parecia suspenso.
Apenas algumas horas de descanso, pensei.
E então, finalmente, me permiti dormir.
[...]
Acordei com o som insistente do celular vibrando ao meu lado. Pisquei algumas vezes, ainda meio perdida entre o sono e a realidade, até perceber que era uma mensagem.
"Kiara, como está longe, passarei o seu caso para minha irmã. Ela é uma ótima profissional. Por favor, vá a todas as consultas. O consultório dela fica próximo ao seu novo apartamento. A partir de hoje, deixei de ser sua médica e passei a ser sua amiga."
Fiquei encarando a tela por alguns segundos antes de soltar um pequeno sorriso. Minha psicóloga—agora amiga—era a única pessoa que tinha meu novo número.
Me espreguicei no colchão, ouvindo minhas costas estalarem. Eu precisava levantar. Precisava comprar algumas coisas para o apartamento e, mais importante, algo decente para comer. Meu estômago já estava começando a se manifestar.
Levantei ainda vestindo as mesmas roupas que dormi, porque, sinceramente, quem se importa? Peguei minha bolsa e fui para a rua sem pensar muito.
Assim que abri a porta do prédio, me deparei com um enorme doberman bem na minha frente. Um monstro de quatro patas. Um verdadeiro cão do inferno.
Ele rosnou.
Eu congelei.
Foi como se, de repente, minha alma tivesse saído do corpo para me observar lá de cima. "É assim que eu morro?", pensei.
— Vance, quieto. — A voz masculina soou atrás do cachorro.
O tal Vance latiu. Alto. Com força. Com o puro desejo de arrancar minha alma pela boca.
— DEUS! — soltei, já me preparando para aceitar meu destino.
— Oh, Vance, caralho, quieto! — O homem resmungou, desta vez com mais firmeza.
Finalmente, tive coragem de olhar para cima e encarei o dono da fera. Ele estava distraído digitando um código na porta do prédio, sem nem se preocupar que o cachorro estava prestes a me devorar.
— Desculpe, ele sempre age assim com desconhecidos. — Ele lançou um olhar para o cão. — Pode passar, ele não tá num surto de te morder, não.
Hesitei. Como assim "não tá num surto"? Então existe a possibilidade de surto?!
O homem notou minha expressão e suspirou.
— Vance, você assustou a moça.
Ele então olhou diretamente para mim pela primeira vez. Era alto, tinha ombros largos e um cabelo bagunçado de quem claramente não se preocupava muito com a aparência. Seu olhar era intenso, mas havia um certo cansaço ali.
— Oliver.
— Odessa Gray... — murmurei, aproveitando que Vance agora estava mais interessado em receber carinho do que me transformar no café da manhã.
Sem dar chance para a conversa continuar (ou para o cachorro mudar de ideia sobre o surto), virei nos calcanhares e fui direto para a saída do prédio.
— Até! — me despedi por cima do ombro, praticamente marchando para longe dali.
Só depois de virar a esquina percebi que meu coração ainda estava disparado.
Bem-vinda ao bairro, Odessa. Aqui, os vizinhos são simpáticos e os cachorros te colocam à beira de um infarto antes das 11h da manhã.
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