Amor e Croissants na Sombra e Sabor
Croissants e destinos cruzados
Em uma cidadezinha esquecida pelo GPS e lembrada apenas pelos corvos que se empoleiravam nos fios como sentinelas do tempo, havia uma lanchonete tão peculiar que parecia saída de um conto mal escrito por um poeta deprimido: Sombra e Sabor.
Era um lugar onde a luz do sol entrava de lado, como se tivesse vergonha. As paredes, pintadas em tons claros, abrigavam quadros tristes e frases poéticas escritas com giz, que mudavam conforme o humor da dona. Ali, Madame Nocturna, uma mulher com mais delineador que paciência, reinava entre panelas e tragédias culinárias. Ela não sorria com facilidade, exceto quando alguém elogiava seu “Croissant do Lamento”.
Nocturna era obcecada por romances trágicos e por isso decidiu que o cardápio da lanchonete só teria pratos com nomes deprimidos, como "Café da Angústia" e "Panqueca do Pesar".
Seu companheiro mais fiel era Fantasma, um gato de pelos pretos, como se fosse esculpido à sombra. Tinha o olhar de quem já viveu sete vidas e sabia exatamente onde colocar a pata para causar o caos necessário.
Naquela tarde nublada, dois clientes foram comer na lanchonete — mas como em todo bom conto, o acaso era apenas uma desculpa poética para o destino agir.
Luciano era feito de sombras sutis: cabelos negros sempre despenteados, olheiras que pareciam medalhas de batalhas contra noites insones, e um moletom que gritava "analista financeiro em crise existencial". Ele pedia sempre o “Café da Angústia”, amargo e sem açúcar, como sua visão do mundo.
Verônica, por outro lado, era o caos organizado da arte gótica. Vestia roupas com tons escuro e opacos como quem veste sinceridade, seus dedos manchados de tinta davam vida a histórias que escrevia em uma máquina de escrever portátil, herdada de uma tia misteriosa. Gostava do “Croissant da Solidão” — não tanto pelo sabor, mas pelo nome. Dizia que combinava com suas manhãs.
Os dois estavam ali. Silenciosos. Em mesas separadas.
Foi então que Fantasma, movido por intenções misteriosas e um apetite por entretenimento, saltou com precisão felina. Primeiro, derrubou o café de Luciano, que espirrou na mesa e molhou os papéis que ele tentava organizar. Verônica olhou, tentou esconder o riso. Em resposta ao destino, ou ao gato, empurrou discretamente um guardanapo para ele.
Luciano olhou para ela. Pela primeira vez, como se de fato a visse. Os olhos dela eram de um castanho profundo, como uma floresta em neblina. Ele murmurou:
Luciano
Esse gato acabou de derrubar meu café... de novo!
Verônica
O Fantasma tem o hábito de bagunçar vidas... Mas às vezes ele acerta o alvo.
Verônica
Esse gato tem talento pra isso. Ele só ataca quem ele gosta.
Luciano
Então sou especialmente amaldiçoado.
Verônica
Ou especialmente notável.
Luciano
Ele sempre derrama meu café...
Verônica
Sempre que o destino precisa de uma forcinha.
Luciano
Destino? Achei que ele tivesse se aposentado.
Verônica
Ele só mudou de endereço. Agora atende aqui, na Sombra e Sabor.
(Com um gato como assistente)
Luciano
Isso explica a decoração trágica e os nomes do cardápio.
Aliás, “Croissant da Solidão”? Sério?
Verônica
Melhor do que “Panqueca do Pesar”.
Verônica
Madame Nocturna é meio dramática... ou gênio incompreendido.
Luciano
Ou só uma poetisa que virou cozinheira por acidente.
Verônica
Você parece gostar de acidentes.
Verônica olha de forma indireta para o moletom dele manchado de café
Luciano
Se todos forem como esse... talvez eu esteja começando a gostar.
Verônica
Fantasma aprovaria essa frase.
Fantasma
MIAU!
(tradução: "finalmente, humanos.")
Verônica e Luciano conversaram, aos tropeços, como quem aprende a andar de novo. Ele contou sobre seu trabalho entediante, sobre como planilhas às vezes eram mais fáceis do que gente. Ela, sobre os contos que escrevia sobre amores impossíveis e finais inconclusos. Quando riram juntos, Madame Nocturna ergueu as sobrancelhas do balcão, satisfeita.
Madame Nocturna
(expressão de satisfação)
Fantasma apenas ronronou, vitorioso.
Os dias seguintes repetiram o padrão: Luciano passou a sentar mais próximo da mesa de Verônica; ela, a fingir que não esperava por isso. Ele passou a trazer relatórios só para fingir que precisava ler ali. Ela, novos capítulos do seu romance para compartilhar com ele.
A lanchonete, antes um lugar de lamentos doces, agora tinha um fundo de esperança. Até a “Panqueca do Pesar” parecia menos triste.
E assim, sem promessas ou declarações grandiosas, nasceu algo entre eles. Algo suave, como o aroma de croissant recém-assado misturado com o som das teclas da máquina de Verônica e o tilintar da colher no café de Luciano.
Um romance improvável, tramado por um gato excêntrico, servido com açúcar e tragédia, e polvilhado de segundas chances.
Canela do Destino
Luciano retornou à “Sombra e Sabor” três dias seguidos. Sempre no mesmo horário, sempre pedindo o mesmo croissant de chocolate meio amargo com raspas de laranja. O ritual o acalmava. Era a única coisa previsível em uma semana de planilhas erradas, reuniões vazias e jantares solitários.
Mas naquela quarta-feira, Madame Nocturna o surpreendeu com algo diferente: um croissant de canela e cardamomo. O aroma era mais quente que o habitual, e havia uma delicadeza inesperada no polvilhado sobre a massa.
Madame Nocturna
O destino muda de tempero quando a alma sussurra...
Ela disse, com um brilho no olhar que parecia esconder mais do que revelava.
Luciano hesitou. Sentia-se traindo um hábito ao aceitar aquele novo sabor. Mas Madame Nocturna já havia desaparecido atrás do balcão, deixando apenas a fumaça perfumada de seu incenso cítrico.
Foi quando Verônica apareceu...
Ela estava com o cabelo preso de qualquer jeito, óculos de leitura escorregando pelo nariz e um caderno surrado de capa vermelha nas mãos. Vestia preto dos pés à cabeça, como de costume. Havia manchas de tinta azul nos dedos e um pedaço de folha de louro preso ao cabelo.
Sem pedir licença, sentou-se à frente de Luciano.
Luciano
Está escrevendo de novo?
Ele perguntou, reparando em sua expressão concentrada.
Verônica
Tentando. Fantasma roubou minha caneta ontem. Acho que não quer que eu termine minha história.
O gato preto, enrolado sobre uma poltrona distante, abriu um olho como se entendesse a acusação, depois voltou a dormir. A cena era tão absurda e cotidiana ao mesmo tempo que Luciano teve vontade de rir alto. Mas conteve-se.
Luciano
Talvez ele saiba que o final está ruim.
Ela respondeu com naturalidade, aceitando um pedaço do croissant.
A conversa deslizou com uma fluidez estranha. Luciano, acostumado ao mundo concreto dos números, começou a perceber que gostava da forma como Verônica falava de sentimentos como quem descreve o clima — sem medo de exagerar.
Ela contou sobre uma história que estava escrevendo: uma mulher que acorda todos os dias em uma cafeteria diferente, sem saber como chegou lá.
Ele perguntou se era fantasia. Ela disse que não. Era só solidão metafórica.
Entre garfadas e goles de chá de hibisco, o tempo foi desaparecendo. A chuva que ameaçava desde cedo finalmente caiu, pingando lenta nas janelas embaçadas.
Luciano
Você não tem medo de ser esquisita?
Perguntou Luciano, de repente.
Verônica o encarou com aquela mistura de desafio e charme que parecia fazer parte do seu olhar.
Verônica
Tenho medo de não ser. A esquisitice é a única coisa que me impede de ser comum.
Luciano assentiu, guardando aquela frase em algum canto da mente.
Fantasma levantou-se sem aviso, arqueou o corpo preguiçosamente e caminhou até a janela e sem qualquer cerimônia, saltou para fora — sumindo como se fosse feito de fumaça.
Verônica
Ele nunca faz isso...
Luciano
Talvez tenha ido procurar sua caneta.
Ela não riu. Em vez disso, olhou para fora, onde a névoa começava a se formar entre as pedras do calçamento.
O segredo de Fantasma I
Fantasma começou a agir de forma ainda mais estranha do que o habitual. Desaparecia por horas, às vezes até dias, e quando voltava, sua pelagem parecia mais eriçada, os olhos mais humanos...
Numa noite silenciosa, enquanto folheava um livro antigo na poltrona da sala, Verônica viu algo inacreditável...
De relance, no reflexo da janela, jurou ter visto o corpo esguio do gato se contorcer e se alongar até se transformar em um homem alto de feições afiadas.
Verônica tentou limpar rapidamente seus olhos e quando se virou, Fantasma estava lá novamente, como se nada tivesse acontecido.
Confusa e assustada, ela procurou Luciano no dia seguinte...
Depois de muita hesitação, contou-lhe tudo. Luciano, cético a princípio, percebeu que havia verdade no olhar inquieto de Verônica.
Luciano
Se ele realmente está se transformando… a gente precisa descobrir o que ele é de verdade.
Disse ele, a voz baixa, mas decidida.
Nos dias seguintes, os dois começaram a seguir Fantasma discretamente.
Descobriram que ele desaparecia sempre no mesmo horário — pouco antes do pôr do sol — e que às vezes parecia guiado por um propósito, indo sempre na mesma direção: uma antiga estufa abandonada nos fundos do bairro, coberta por heras e esquecida pelo tempo.
Na noite em que decidiram segui-lo até o fim, o que encontraram mudou tudo...
A estufa abandonada parecia um relicário do tempo, onde o passado sussurrava entre as folhas secas e os vidros embaçados.
Verônica e Luciano, movidos por uma curiosidade que beirava o temor, seguiram os passos silenciosos de Fantasma até aquele lugar...
Ao entrarem, foram envolvidos por um aroma de terra molhada e flores há muito desbotadas.
No centro, sob a luz filtrada pela poeira, Fantasma se sentou, encarando-os com olhos que pareciam conter séculos de segredos.
De repente, uma brisa percorreu o ambiente, e o corpo do gato começou a se contorcer, alongando-se até assumir a forma de um homem — o mesmo que Verônica jurava ter visto naquela noite.
Verônica e Luciano, atônitos, olhavam...
Ambos sem voz. As palavras pairando no ar.
Se entreolharam, tentando confimar o que acabaram de ver.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!