Uma carta para você, meu amor.
> São Paulo, 3 de março
Meu bebê,
Hoje é o dia em que você começou a existir dentro de mim — e o dia em que o mundo ao meu redor desabou.
Eu estava no consultório quando a vida mudou duas vezes. A primeira, com o resultado positivo que eu achei que nunca veria. Meu coração explodiu em alegria. Eu ri, chorei, tremi. Você estava aqui. Um pedacinho de mim e do seu pai, crescendo em silêncio.
A segunda mudança veio minutos depois, em outra sala, com outra notícia: um câncer silencioso, já avançado, que cresceu escondido enquanto eu seguia cuidando da vida sem desconfiar.
Eles disseram que, para viver, eu teria que te perder. Mas se eu te deixar, não sei se ainda vou querer continuar.
Essa carta é o começo de muitas. Quero escrever tudo para você: quem eu sou, quem é seu pai, o que sonhamos para você — mesmo que eu não esteja aqui para contar essas histórias ao seu ouvido.
Eu não sei o que vai acontecer, meu amor. Mas se eu tiver apenas nove meses… então serão os nove meses mais intensos da minha vida.
Com amor,
Mamãe
Helena
Eu sempre achei que fosse lembrar do dia em que descobrisse minha gravidez como um momento de luz. Imaginava um quarto iluminado, uma música suave no fundo, talvez Daniel entrando com flores e um sorriso bobo no rosto. Mas a vida real não tem trilha sonora nem roteiro bonito. Ela tem o som do trânsito lá fora, o cheiro de álcool do hospital e a textura fria do papel do exame nas mãos.
Estava atrasada, e isso já me deixava inquieta. Como pediatra, sempre fui regulada com meu próprio corpo — não por vaidade, mas por necessidade. Sabia que algo estava diferente. Os seios sensíveis, o cansaço, a náusea leve de manhã. Mas eu tinha medo de acreditar.
Foi numa sala de plantão, entre uma troca de prontuário e um telefonema, que a enfermeira amiga me entregou o resultado. Positivo. Grávida. Duas linhas. Aquelas benditas duas linhas cor-de-rosa que eu já tinha tentado encontrar tantas vezes antes. O coração disparou. Pela primeira vez em muito tempo, eu me permiti sorrir sem medo.
"É real", sussurrei, como se dissesse a mim mesma para acreditar. "Você está aqui."
Meu primeiro impulso foi ligar para Daniel, mas alguma coisa me travou. Não queria contar por telefone. Queria ver o rosto dele, o susto nos olhos, a alegria atravessando o corpo. Queria guardar aquela reação para sempre.
Voltei ao meu consultório e me sentei ali, sozinha, por alguns minutos. Observei meu reflexo no vidro da janela. Os olhos brilhando. As mãos tremendo. Por mais que estivesse feliz, algo pesava em mim. Um incômodo estranho na região lombar que já se arrastava há semanas. Eu vinha atribuindo à rotina puxada, noites mal dormidas e estresse.
Mas naquele dia, talvez guiada por um sexto sentido — ou por aquele pressentimento mudo que só as mulheres têm — pedi para um colega dar uma olhada. Era só para garantir.
O doutor Álvaro, clínico experiente e amigo desde os tempos de residência, me atendeu com aquele sorriso calmo que sempre usava com os pacientes. Fez algumas perguntas, pediu exames. Achou que valia a pena fazer uma ultrassonografia abdominal.
Fui para a sala de imagem sem muito alarde. Estava cansada, sim, mas grávida. Provavelmente meu corpo só estava se adaptando. Quando deitei na maca e senti o gel frio espalhar-se pela pele, pensei no bebê. Será que já estava implantado? Será que era por isso que o corpo reclamava?
O silêncio durante o exame me incomodou. Vi Álvaro franzir o cenho, o movimento lento da sonda se repetindo sobre a mesma área. Conhecia aquele tipo de hesitação. E quando ele tirou os olhos da tela e olhou para mim, soube. Antes mesmo de ouvir qualquer palavra, soube.
"Helena… a gente vai precisar conversar."
Sentei na sala dele com as pernas bambas. Ele me explicou devagar, com cuidado. Achara uma massa. Uma formação densa, mal delimitada. Os exames de sangue mostravam marcadores alterados. As chances de ser maligno eram altas.
"É o tipo silencioso, infelizmente. Cresce sem muitos sintomas até estar em estágio avançado."
Minhas mãos suavam. As palavras dele ricocheteavam dentro da minha cabeça. Câncer. Grávida. Tratamento. Escolha.
"O protocolo recomenda ação imediata, Hel. Quimio, talvez cirurgia. E você sabe… não dá para manter a gravidez nessas condições."
Eu ouvia tudo, mas não ouvia nada. Só via o rosto de Daniel, sua expressão ao receber a notícia. Só sentia o pequeno coração que, talvez, já batia dentro de mim.
Voltei pra casa em câmera lenta. O caminho até o metrô parecia mais longo, o barulho das buzinas mais alto. Lembrei de uma senhora que segurava uma flor na mão. Do menino que cantava no vagão. Do cheiro de pão de queijo vindo de uma padaria na esquina da Paulista. O mundo seguia. Mas o meu mundo parava ali.
Daniel estava em casa mais cedo, como num alinhamento de destino. Estava sentado no sofá, com um processo jurídico espalhado no colo. Leu a mesma frase três vezes sem perceber minha presença. Quando me viu, sorriu. E esse sorriso quase me desmoronou.
"Oi, meu amor. Chegou cedo."
"Precisava falar com você."
Sentei ao lado dele. As palavras se engasgaram na garganta, mas consegui começar pela única parte boa.
"Estou grávida."
Ele congelou. O processo caiu do colo. Depois, os olhos se arregalaram e ele me puxou num abraço apertado, como se não fosse me soltar nunca mais.
"Meu Deus… Helena. Sério? A gente conseguiu?"
"Sim. Nós conseguimos."
Ele chorou. Eu também. Foi o momento mais puro da nossa história. Mas durou pouco.
"Daniel… também descobri hoje que estou doente. Um tumor. Avançado."
A alegria se desfez no rosto dele. Parecia que tinham arrancado o ar da sala. Expliquei tudo. Os exames. A urgência. As opções.
"Se eu quiser viver, preciso tratar agora. Mas isso significa interromper a gravidez."
Ele não respondeu. Se afastou um pouco. Passou as mãos pelo rosto. Depois me olhou.
"Você tem que viver. A gente pode tentar de novo."
"Não é tão simples. E se esse for o único filho que eu puder ter?"
"Mas você é mais do que uma gestação, Helena. Você é tudo pra mim. Não posso te perder."
Respirei fundo. Já sabia que seria assim. Daniel era razão, lógica, sobrevivência. E eu… eu era emoção, vínculo, instinto. Olhei para ele, com lágrimas nos olhos.
"Mas e se eu quiser ficar com ele até o fim, mesmo que seja o meu fim?"
Daniel me encarou em silêncio. O mesmo silêncio que carregava desde que saí do consultório.
E naquele instante, talvez, um pedaço de nós dois tenha começado a se romper.
Helena
O silêncio depois da minha pergunta foi tão pesado que doeu no peito. Daniel não respondeu. Apenas me olhou — um olhar que eu conhecia tão bem, mas que agora era diferente. Tinha medo. Tinha incredulidade. Tinha raiva contida.
— Helena… — ele começou, mas a voz falhou. Ele passou as mãos pelo cabelo e se levantou, caminhando de um lado para o outro da sala como se as palavras estivessem presas em algum lugar do corpo. — Você não pode estar falando sério.
— Eu estou.
— Você tá me dizendo que vai escolher... — ele engoliu seco —... morrer? Pra carregar uma gravidez que pode não dar certo? Que pode te matar antes de nascer?
— Estou dizendo que eu não sei ainda o que fazer. Só que... eu senti. Daniel, eu senti esse bebê dentro de mim. É pequeno, quase nada, mas é vida. É o nosso filho.
Ele se virou pra mim. Os olhos vermelhos, mas secos. Daniel não chorava fácil. Quando fazia, era de dor profunda.
— E você é a minha esposa. A mulher que eu amo. A mulher que eu planejei envelhecer ao lado. E você tá me dizendo que prefere morrer... — ele baixou a cabeça, frustrado — ...do que tentar lutar?
— Eu não prefiro morrer. Mas eu não sei se consigo tirar essa vida de mim. Você entende? Não é simples. É como se eu já estivesse ligada a ele.
Daniel se ajoelhou à minha frente. Pegou minhas mãos com força, quase como se quisesse me segurar aqui na Terra.
— Amor, você é médica. Sabe como isso funciona. O tratamento é urgente. Cada dia que passa, esse tumor cresce. Cada dia sem agir é um passo mais perto de...
— Da morte. Eu sei. Eu sei muito bem.
Ele se calou. E naquele silêncio, eu senti: ele estava desesperado. Mas, ainda assim, racional. Porque era assim que ele lidava com o mundo. Resolvia problemas, pesava prós e contras, fazia o que precisava ser feito. E agora ele me via como o problema que precisava resolver.
— Eu... preciso pensar — sussurrei, levantando do sofá.
— Não temos muito tempo, Helena.
— Eu sei.
Fui para o quarto e fechei a porta devagar. Não dormi. Apenas fiquei ali, deitada, encarando o teto, com a mão sobre o ventre, como se pudesse proteger aquela pequena existência dentro de mim.
---
O dia seguinte chegou como um peso nos ombros. O céu cinza de São Paulo parecia acompanhar o clima dentro de casa. Levantei cedo, preparei café em silêncio. Daniel entrou na cozinha com olheiras e camisa amarrotada. Nos olhamos, mas nenhum de nós disse “bom dia”.
Ele pegou uma caneca, se sentou e finalmente falou:
— Marquei uma consulta com o oncologista para amanhã. A primeira que consegui.
Meu coração apertou.
— Você marcou?
— Sim. Eu sei que você ainda não decidiu, mas isso não pode esperar. A gente precisa entender o estágio, o tipo exato, as chances.
Assenti com a cabeça. Tinha razão. Saber mais não significava escolher ainda.
— Eu vou — respondi.
Daniel parecia aliviado por um segundo, mas o clima entre nós ainda era denso, quase irrespirável.
— E você contou pra alguém? — ele perguntou.
— Ainda não. Não quero ninguém opinando. Já tem você pra isso.
A resposta saiu mais dura do que deveria. Ele me olhou, ferido.
— Eu não tô opinando, Helena. Eu tô tentando te salvar.
Fechei os olhos, respirei fundo. Minha cabeça latejava. Cada palavra trocada entre nós virava uma rachadura. E por mais que ainda estivéssemos ali, casados, havia uma distância nova e dolorosa se formando.
— Desculpa. Eu sei que você quer o melhor. Mas... às vezes parece que você já decidiu por mim.
— Porque é óbvio. Eu não tô falando de egoísmo, tô falando de sobrevivência. A gente pode ter outro filho, adotar, fazer tratamento depois. Mas você não é substituível.
— E se for o único? — perguntei. — E se, ao escolher me salvar agora, eu nunca mais puder gerar outra vida?
— E se você morrer tentando mantê-lo e eu tiver que enterrar você? Você quer isso?
— Eu quero que alguém pense no que eu sinto! No que esse bebê já representa pra mim!
— Eu penso. Mas eu também tenho que pensar no depois. No que sobra.
Silêncio de novo. Terminamos o café sem mais palavras. Cada um se vestiu e foi para o trabalho como se fosse um dia normal. Mas não era. Nunca mais seria.
---
No hospital, tudo parecia mais frio. Os corredores, as luzes, os sorrisos dos colegas. Os pacientes infantis continuavam me chamando de “tia Helena”, mas eu não conseguia sorrir da mesma forma. O mundo não parava porque eu estava em crise.
Na hora do almoço, me tranquei na sala de descanso. Peguei meu celular e comecei a gravar uma nota de voz, sem pensar muito. Era como se eu estivesse falando com alguém que entendesse.
— Oi, meu amor... — minha voz saiu trêmula. — Eu ainda não sei seu nome, seu rosto, seu som... mas sei que você tá aqui. Dentro de mim. E é estranho, porque eu ainda não te conheço, mas já amo você como se conhecesse. Estou com medo. Muito medo. Porque pra te manter, posso ter que me perder. E eu não sei se sou forte o suficiente pra isso. Mas você precisa saber... eu estou tentando. Por nós dois.
Parei a gravação. Salvei. Talvez um dia ele ouvisse. Talvez nunca. Mas naquele momento, eu precisava falar.
O resto da tarde passou arrastado. Antes de ir embora, passei na maternidade e observei, pela janela, uma mãe embalando seu recém-nascido. Era uma cena tão cotidiana, mas agora, parecia quase inalcançável pra mim.
---
À noite, em casa, Daniel estava no quarto, mexendo no notebook. Me aproximei devagar, sentei ao lado dele.
— Desculpa por mais cedo.
Ele fechou o computador. Virou-se pra mim.
— Eu também. Eu tô tentando lidar com isso, Hel. Mas... a ideia de te perder me destrói.
— E a ideia de perder esse bebê me despedaça também.
Ficamos em silêncio. Ele estendeu a mão e tocou minha barriga. Foi a primeira vez que ele fez isso desde a notícia.
— Eu queria que isso fosse mais simples.
— Também queria.
Nos abraçamos, mas havia algo novo entre nós: o peso da dúvida, da urgência, da escolha.
E o tempo — cruel e impiedoso — seguia passando.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!