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O Escriba dos Deuses

Prólogo O Escriba e a Luz Silenciosa

A argila sob os dedos de Endubsar era fria, quase como a própria noite que se derramava pelas ruas de Eridu, a cidade amada do deus Enki. Lá fora, para além das paredes de tijolos cozidos ao sol de sua humilde câmara, o mundo ainda respirava com dificuldade, como um homem que acorda de um pesadelo febril e encontra os lençóis encharcados de um suor que não reconhece. Gerações tinham se esvaído desde que o Grande Dilúvio lavara a face de Ki, a Terra, mas a memória mais recente, mais pungente, era a do Vento Maligno – aquela praga invisível nascida da fúria dos próprios deuses em suas disputas por poder, uma poeira de morte que silenciara a Suméria e deixara um gosto de cinzas na boca dos sobreviventes.

Endubsar, o escriba, era um homem de poucas palavras faladas, mas de muitas palavras gravadas. Sua vida era um rio tranquilo de observação e registro: as contas do templo, os éditos dos sacerdotes, as genealogias dos reis humanos que agora governavam sob a sombra distante dos Anunnaki. Ele vira a reconstrução lenta de Eridu, o retorno hesitante da vida aos campos outrora férteis, a persistência teimosa da humanidade em face da indiferença cósmica ou da ira divina. E em seu coração, carregava o peso das histórias não contadas, dos segredos sussurrados nas noites de vigília, da verdade fragmentada que se escondia por trás dos hinos e das lendas.

Naquela noite em particular, o ar parecia mais denso, o silêncio, mais profundo. A lamparina a óleo sobre sua mesa de trabalho lançava uma luz trêmula sobre a tabuleta de argila onde ele acabara de inscrever um inventário de grãos para o templo de Enki. Um trabalho mundano, um contraponto à vastidão do céu estrelado que ele podia vislumbrar pela estreita abertura na parede – um céu que, segundo os sacerdotes mais velhos, já fora o lar de deuses que caminhavam abertamente entre os homens.

Foi então que o mundo exterior emudeceu. O coaxar dos sapos nos canais próximos, o latido distante de um cão, o murmúrio do vento nos juncos do rio – tudo cessou, como se uma mão invisível tivesse abafado a respiração de Eridu. Endubsar ergueu a cabeça, o estilo de junco ainda em sua mão, o coração subitamente alerta. Uma estranha quietude se instalou, uma quietude que precedia não a paz, mas o espanto.

E com o silêncio, veio a luz.

Não a luz familiar da lua ou das estrelas, nem o brilho avermelhado das tochas nos muros da cidade. Era uma luz que não pertencia àquele mundo. Começou como um pulsar fraco no horizonte, para além dos telhados baixos de Eridu, na direção do deserto. Depois, cresceu, expandiu-se, tornando-se um rodamoinho de cores impossíveis – verdes fosforescentes, azuis elétricos, violetas que pareciam roubados do coração de uma tempestade cósmica. Girava sobre si mesma, silenciosa, hipnótica, uma aparição de néon líquido contra o negrume da noite mesopotâmica.

Endubsar, paralisado, observava da soleira de sua porta. A luz se aproximou, majestosa e terrível, até pairar sobre o distrito dos templos, banhando as paredes de tijolo e os degraus do zigurate de Enki numa claridade espectral que não lançava sombras, apenas revelava tudo com uma nitidez dolorosa. Era uma luz que parecia perscrutar, que talvez lesse a alma da cidade adormecida.

O escriba sentiu um medo primordial subir pela espinha, um medo que seus ancestrais deviam ter sentido diante das primeiras manifestações dos Anunnaki. Aquilo não era obra de homens. Era poder divino, ou algo ainda mais estranho, vindo dos confins do céu.

Tão subitamente quanto surgira, o rodamoinho de luz se contraiu sobre si mesmo, implodindo numa piscadela silenciosa que deixou atrás de si apenas a escuridão normal da noite e a imagem residual das cores impossíveis queimando em suas retinas. Por um instante, Endubsar pensou ter sonhado, ter sido vítima de uma febre ou do cansaço.

Mas a escuridão não estava vazia. Onde antes a luz dançara, agora erguiam-se duas formas. Imensas. Silenciosas. Suas silhuetas escuras recortadas contra o véu de estrelas, que pareciam recuar diante de sua magnitude. Eram altas como as palmeiras mais antigas do Eufrates, talvez mais. Moviam-se com uma lentidão fluida, quase como se não tocassem o chão, ou como se o próprio chão se curvasse sob seu peso invisível. Delas emanava um brilho pálido, prateado, como o da lua refletida em obsidiana, que delineava vagamente seus elmos altos, talvez adornados com chifres ou cristas, e suas vestes longas que pareciam tecidas de sombra e metal líquido.

Gigantes. Anunnaki. Deuses.

O ar estalou com uma energia palpável. Endubsar não conseguiu mais sustentar o olhar. O medo, a reverência, o terror absoluto diante do numinoso o dominaram. Seus joelhos cederam, e ele caiu, prostrando-se com o rosto contra a poeira da soleira de sua casa, o corpo tremendo como um junco na tempestade. Não ousava respirar, não ousava pensar. Esperava o toque da aniquilação, ou a palavra que selaria seu destino.

O silêncio se estendeu por um tempo que pareceu uma eternidade. Então, sentiu. Não um som, não um toque físico inicial, mas uma presença. Uma força que o envolvia, que o sondava. E então, a sensação de ser levantado.

Não por mãos rudes, não com violência. Foi como se o próprio ar ao seu redor se tornasse sólido e o erguesse do chão, gentil mas irresistivelmente. Seu corpo flutuou, deixando para trás a poeira de sua soleira, sua lamparina bruxuleante, suas tabuletas de contas. Atravessou o vão da porta, depois o teto de sua câmara, como se as paredes de tijolo fossem feitas de névoa.

O medo deu lugar a um assombro paralisante. Abaixo dele, Eridu se afastava, um emaranhado de luzes fracas e sombras na escuridão. Viu o zigurate de Enki diminuir, o traçado escuro do Eufrates serpenteando pela planície. A viagem era incrivelmente rápida, mas não havia sensação de vento ou movimento brusco. Era um transporte silencioso, suave, como se estivesse sendo carregado num sonho, ou no ventre de uma nuvem. "Erguido aos céus", a frase dos antigos textos sobre os profetas e os escolhidos ecoou em sua mente atordoada. Para onde o levavam?

A escuridão do espaço pareceu envolvê-lo por um instante, as estrelas mais próximas e mais brilhantes do que nunca. E então, tão subitamente quanto a viagem começara, ela terminou. Foi depositado com a mesma suavidade sobre um piso liso e frio ao toque, feito de um material escuro e polido que parecia beber a luz.

Piscou, tentando se acostumar ao ambiente. Estava numa câmara imensa, cujas paredes curvas se perdiam na penumbra acima. Não havia janelas, mas as próprias paredes pareciam pulsar com linhas de luz azulada e prateada, formando padrões geométricos complexos que se moviam e se reconfiguravam lentamente, como pensamentos congelados. O ar era fresco, carregado com um odor sutil de ozônio e de algum incenso metálico desconhecido. Um zumbido baixo e profundo permeava tudo, a respiração de uma máquina colossal ou de um poder ancestral. No centro da câmara, talvez, erguia-se uma coluna de luz suave, ou um arranjo de cristais multifacetados que refratavam a luz em arco-íris impossíveis. Era um lugar de poder, de conhecimento, de uma beleza alienígena e terrível.

As duas figuras gigantescas que o haviam trazido estavam ali, diante dele, suas formas agora mais nítidas sob a iluminação interna da câmara. Uma delas, a que parecia ligeiramente mais alta, a que emanava uma aura de sabedoria antiga e uma tristeza profunda como as águas do Abzu, deu um passo à frente. Seus olhos, como poços de estrelas, fixaram-se em Endubsar. E o escriba soube, com uma certeza que não vinha da razão mas da alma, que estava diante do próprio Enki, o Senhor da Terra, o Deus da Sabedoria. A outra figura, igualmente imponente mas com uma aura mais reservada, talvez mais técnica, permaneceu um passo atrás, em silêncio, observando com uma intensidade fria – seria Ningishzidda, o filho de Enki, Mestre dos Segredos Genéticos? Endubsar não ousava especular.

Prostrou-se novamente, o rosto contra o piso frio, o medo agora tingido de um temor reverente que lhe roubava as palavras.

"Levante-se, Endubsar, escriba de Eridu." A voz de Enki preencheu a câmara, não como um trovão, mas como o ressoar profundo de um sino de bronze, cada sílaba vibrando no ar e na mente do escriba. "Não tema em demasia. Você não foi trazido aqui para sua destruição, mas para o início de um grande trabalho."

Com dificuldade, lutando contra o tremor em seus membros, Endubsar se pôs de pé, mantendo os olhos baixos.

Enki o contemplou, e em seu olhar havia o peso de éons, a tristeza das estrelas e a fagulha da curiosidade científica que nunca se apagava. "Você tem testemunhado os tempos sombrios em Ki, Endubsar. O eco do Vento Maligno ainda envenena a terra e a memória dos homens. A história de nossa vinda, da criação de sua espécie, das grandes catástrofes e das pequenas esperanças… tudo isso se perde, se fragmenta, é recontado de forma incompleta pelos sacerdotes e pelos contadores de histórias, cada um adicionando ou omitindo segundo seus próprios medos ou ambições."

O deus fez um gesto, e uma pequena mesa flutuante, feita do mesmo material escuro das paredes, surgiu ao lado de Endubsar. Sobre ela, um pão de cor escura, quase negra, e uma taça de metal que continha uma água que parecia brilhar com luz própria.

"Coma e beba," ordenou Enki, a voz agora mais suave, quase gentil. "Pois o corpo mortal precisa de sustento para a tarefa que tenho para você, e sua mente precisa da clareza que apenas o néctar dos deuses pode oferecer. Este pão é feito dos grãos de Nibiru, esta água vem das fontes primordiais. Eles o fortalecerão."

Obedientemente, Endubsar comeu um pedaço do pão. Tinha um sabor terroso, denso, e uma energia vital que ele nunca provara. Bebeu da água, que era fria como gelo estelar e desceu por sua garganta como luz líquida, clareando sua mente, afastando os últimos vestígios do medo e da confusão. Sentiu-se revigorado, alerta, como se tivesse acabado de despertar de um longo sono.

"Você é um escriba, Endubsar," continuou Enki, sua voz retomando a gravidade. "Sua vida tem sido dedicada a transformar o pensamento em registro, a memória em permanência. É uma arte nobre, e uma responsabilidade imensa. E é por isso que você foi escolhido, dentre todos os escribas de Ki."

Ele se aproximou, e Endubsar pôde sentir a aura de poder e conhecimento que emanava do deus. "A história verdadeira de nossa presença em Ki, a crônica de Nibiru, a criação do Lulu e do Adamu, as guerras entre nós, os deuses, e as catástrofes que se abateram sobre este mundo… tudo isso precisa ser registrado. Sem floreios, sem omissões, sem as interpretações dos sacerdotes ou as distorções dos medos humanos. A verdade, Endubsar. A verdade como ela foi, como eu a conheço."

Enki fez outro gesto, e sobre a mesa flutuante, ao lado do que restara do pão e da água, surgiram novas ferramentas: um estilo de um metal prateado que parecia brilhar por si mesmo, e uma pilha de tabuletas de uma argila fina, de cor marfim, cuja superfície parecia viva, quase respirando.

"Com este estilo," disse Enki, "e sobre estas tabuletas preparadas, você anotará cada palavra que eu lhe ditar. Não perca um detalhe. Não altere um significado. Seja o canal, o registrador fiel. Pois estas crônicas não são para o seu tempo apenas. Serão seladas, guardadas em um lugar onde nem o tempo nem os elementos possam destruí-las. E em um ciclo futuro, quando a humanidade estiver madura para tal conhecimento, ou talvez quando estiver novamente à beira de um grande perigo, ‘escolhidos’ virão. E encontrarão estas palavras. E talvez, apenas talvez, aprendam com elas."

A magnitude da tarefa era quase inconcebível. Ser o confidente de um deus, o registrador da história secreta dos mundos. Endubsar sentiu seus joelhos fraquejarem novamente, mas desta vez não era apenas medo. Era o peso esmagador da responsabilidade.

"Mas por que eu, Senhor dos Segredos?" perguntou ele, a voz ainda trêmula, mas agora com uma nota de aceitação. "Há escribas mais habilidosos nos templos, mais próximos dos segredos dos deuses..."

Os olhos de Enki pareceram suavizar por um instante. "Porque você, Endubsar, possui algo que muitos deles perderam, ou nunca tiveram: um coração que ainda busca a verdade por trás das aparências, e uma mão que não treme ao registrar o que é difícil. Você é um filho de Eridu, a cidade da sabedoria. E carrega em si a antiga centelha."

O deus fez uma pausa, e o silêncio na câmara pareceu preenchido pela própria respiração do cosmos. "A tarefa será longa, escriba. Exigirá toda a sua habilidade, toda a sua concentração, toda a sua vida. Mas seu nome será lembrado, não entre os reis, mas entre os guardiões da memória. Você está pronto para começar?"

Endubsar olhou para o estilo prateado, para as tabuletas de argila luminosa. Olhou para o rosto insondável de Enki, e para a figura silenciosa de seu companheiro. Sentiu o fio da história, vasto e terrível, esperando para ser tecido através de sua mão. Não havia como recusar. Não havia como voltar atrás. Sua vida como um simples escriba de contas terminara no momento em que a luz neon tocara o céu de Eridu.

Ele se curvou profundamente. "Estou pronto, Senhor Enki. Que suas palavras fluam através de mim."

Enki assentiu, um leve sorriso, talvez de satisfação, talvez de uma tristeza antiga, tocando seus lábios divinos. "Então prepare a primeira tabuleta, Endubsar. Pois a história é longa, e começa muito antes de Ki, muito antes do Sol que agora os aquece. Começa na escuridão fria do espaço profundo, em nosso lar errante, quando o primeiro suspiro de Nibiru já anunciava a necessidade de uma grande jornada..."

Capítulo 1: O Suspiro do Planeta Vermelho

A câmara onde Enki ditava suas memórias a Endubsar era um bolsão de silêncio e luz suave, um contraponto à vastidão escura do passado que suas palavras evocavam. O escriba, após o choque inicial e o sustento divino, encontrou em si uma concentração febril, a ponta de seu estilo de metal prateado pairando sobre a argila luminosa, pronta para capturar cada sílaba, cada imagem que o deus da sabedoria projetava em sua mente.

“Nossa história em Ki, a Terra,” recomeçou a voz mental de Enki, após uma pausa que pareceu conter o peso de milênios, “é apenas um capítulo tardio, Endubsar, na longa e muitas vezes dolorosa crônica de Nibiru, nosso mundo natal. Para entender por que viemos, por que nos empenhamos em arrancar ouro das entranhas de seu planeta, é preciso primeiro olhar para o nosso próprio céu enfermo, para o suspiro frio de um gigante que adoecia.”

E as imagens fluíram, densas e melancólicas. Endubsar viu Nibiru não como o Planeta da Travessia em seu breve e glorioso periélio, mas em sua longa e árdua jornada pelo espaço profundo, o apogeu de sua órbita elíptica. Era um mundo que passava a maior parte de seu imenso ano – um shar de três mil e seiscentos ciclos terrestres – imerso numa penumbra gelada, onde o Sol de vosso sistema era apenas a mais brilhante entre miríades de estrelas distantes. A vida em Nibiru, para os longevos Anunnaki, era uma adaptação constante a esses extremos cósmicos.

Mas mesmo essa adaptação milenar encontrava seus limites. “Por incontáveis shars,” continuou Enki, “nossa atmosfera, um escudo dourado e complexo que nos protegia do frio do vácuo e filtrava as radiações hostis, vinha se tornando mais tênue. Um afinamento lento, quase imperceptível a cada geração, mas inexorável na escala dos éons. Como um velho cobertor que se esgarça, já não conseguia reter o calor do núcleo do planeta, nem o pouco que recebíamos do Sol em nossa breve passagem pelo seu reino.”

O resultado era um resfriamento global progressivo. Geleiras antes confinadas aos polos avançavam sobre as terras temperadas. As grandes cidades Anunnaki, construídas em vales profundos ou sob cúpulas de cristal que tentavam maximizar a luz e o calor, tornavam-se mais frias, mais sombrias. A agricultura nos biodomos exigia cada vez mais energia para manter as temperaturas ideais, e a produção diminuía. A própria vitalidade Anunnaki parecia afetada; os nascimentos eram mais raros, as doenças da velhice, mais frequentes. Nibiru suspirava, um longo e gelado suspiro de exaustão planetária.

No trono de Agade, a capital ancestral, o Rei Lahma personificava essa lenta decadência. Sua barba era branca como as geadas que agora cobriam as planícies do norte, seus movimentos, lentos e hesitantes como os de um planeta perdendo seu momento angular. Lahma era um rei de tempos passados, um guardião de tradições e protocolos que já não ofereciam respostas para a crise presente. Seus conselhos eram dominados por sacerdotes que interpretavam a crise como um desfavor dos Deuses Criadores Primordiais, ou por cientistas idosos cujas teorias eram tão antigas e cristalizadas quanto as formações rochosas de Nibiru.

“Lahma ouvia os relatórios sobre a perda atmosférica com uma tristeza passiva,” narrou Enki. “Ordenava mais rituais, mais estudos, mas pouca ação efetiva. Para ele, talvez, o destino de Nibiru estivesse selado, e restava apenas administrar o declínio com dignidade. Mas a dignidade não aquece um mundo que congela, Endubsar.”

O descontentamento crescia, especialmente entre os Anunnaki mais jovens e enérgicos, aqueles cujas vidas ainda se estendiam por muitos shars futuros. Viam a inação de Lahma não como sabedoria, mas como fraqueza, como uma sentença de morte lenta para sua civilização. E dessa frustração, ergueu-se Alalu.

Príncipe de uma linhagem real colateral, mas com o fogo da ambição e a força da convicção em seus olhos escuros, Alalu era um orador carismático, um líder nato. Ele não se conformava com o declínio. Percorria os salões do poder, as academias de ciência, os quartéis militares, sua voz ecoando com urgência e promessa.

"Até quando permitiremos que Nibiru se transforme num mausoléu de gelo?", ele questionava. "As soluções existem! Nossos arquivos antigos falam de tempos em que nossa atmosfera era densa e quente! Nossos cientistas mais ousados têm teorias, planos! Mas o trono está ocupado por um rei que teme a mudança mais do que teme o esquecimento! Eu digo que o tempo da hesitação acabou! Nibiru precisa de um líder que ouse agir, que ouse salvar nosso mundo!"

Suas palavras encontraram um eco profundo. Ele reuniu ao seu redor uma facção poderosa: generais que ansiavam por um comando forte, cientistas cujas ideias radicais eram ignoradas por Lahma, nobres que viam em Alalu a chance de restaurar a glória de suas próprias linhagens. A tensão entre o partido de Alalu e a corte estagnada de Lahma tornou-se uma fenda que ameaçava dividir o planeta.

A transição, quando veio, foi envolta na névoa da intriga palaciana e da política de poder Anunnaki. Não houve, segundo a memória velada de Enki, uma guerra civil aberta que devastasse o que restava de Nibiru. Mas houve um confronto de vontades, uma luta nos bastidores do poder. E numa noite em que os ventos solares sopravam com particular intensidade, interferindo nas comunicações e nos sensores, os guardas leais a Alalu cercaram o palácio real.

O destino exato de Lahma permaneceu um segredo bem guardado, um sussurro nos cantos escuros da história. Teria sido forçado a abdicar e enviado para um exílio discreto, para passar seus últimos ciclos contemplando o frio que não conseguiu deter? Ou seu fim teria sido mais... expedito, uma necessidade trágica aos olhos de Alalu para consolidar seu poder e evitar uma resistência prolongada? Alguns murmuravam sobre um "tio" da linhagem de Anu, um conselheiro fiel a Lahma, que desaparecera sem deixar vestígios durante aqueles dias turbulentos. A acusação, embora nunca provada, mancharia para sempre a ascensão de Alalu.

O fato é que, na manhã seguinte, era Alalu quem se sentava no trono de Nibiru, a coroa pesada sobre sua cabeça, os símbolos da realeza em suas mãos. Proclamou o início de uma nova era, uma era de ação e salvação. "O verdadeiro herdeiro do futuro de Nibiru sou eu!", declarou ele, não tanto para justificar a quebra da linhagem, mas para inflamar a esperança de seu povo.

Mas a coroa, ele logo descobriria, era mais um fardo do que um adorno. A crise atmosférica era real, profunda, e não se resolveria com discursos inflamados. Pressionado a entregar resultados, a provar que sua usurpação fora um mal necessário, Alalu mergulhou nos arquivos mais secretos de Nibiru, buscando soluções que Lahma temera ou ignorara.

Foi lá, em tabuletas de cristal que registravam conhecimentos de eras esquecidas, que ele encontrou a teoria sobre os vulcões adormecidos de Nibiru e o poder das "Armas de Terror". Eram artefatos de um passado bélico, dispositivos de energia concentrada capazes de feitos terríveis ou, quem sabe, milagrosos. A teoria era simples em sua audácia: usar essas armas para perfurar a crosta do planeta em pontos estratégicos, sobre as imensas caldeiras vulcânicas que dormiam há éons. As erupções resultantes, se controladas, poderiam liberar calor e gases do interior de Nibiru, adensando a atmosfera, criando um efeito estufa artificial, um escudo temporário contra o frio do espaço.

Era uma aposta desesperada, um plano que fazia os cientistas mais conservadores tremerem. As Armas de Terror eram proibidas, seladas por juramentos antigos feitos perante o próprio Anu em tempos de paz, após conflitos que quase destruíram a civilização Anunnaki. Despertá-las era um sacrilégio, um risco incalculável.

Mas Alalu, consumido pela urgência e pela necessidade de um feito grandioso que legitimasse seu reinado, não se deixou deter. "A necessidade quebra todas as leis!", teria dito ele a seus conselheiros hesitantes. "Se há uma chance, por menor que seja, de reaquecer nosso mundo, de dar um novo sopro de vida à nossa atmosfera, então devemos arriscar! Ordeno que se preparem as armas! Ordeno que se lancem nos vulcões do próprio Nibiru as suas velhas armas de terror!"

E assim foi feito. As armas foram retiradas de seus cofres blindados, sua energia antiga e perigosa pulsando na penumbra. Foram posicionadas sobre os vulcões escolhidos. E Alalu deu a ordem.

Endubsar viu, na mente de Enki, o céu escuro de Nibiru sendo rasgado por feixes de luz ofuscante. Ouviu o gemido profundo do planeta sendo ferido em seu âmago. E viu as montanhas cuspirem fogo. Colunas de fumaça e cinzas subiram até a alta atmosfera, bloqueando ainda mais a pouca luz solar. Rios de lava escorreram pelas encostas, engolindo paisagens antigas. O chão tremeu com terremotos que abalaram as cidades subterrâneas.

Por um breve ciclo, houve um aumento na temperatura superficial. Alguns gases foram de fato liberados. Alalu, em seu palácio, talvez tenha permitido um sorriso de triunfo. Mas o triunfo foi ilusório, e a realidade, brutal.

Os gases expelidos não eram os que poderiam criar um efeito estufa estável; eram, em sua maioria, sulfurosos, tóxicos, envenenando o pouco ar respirável que restava. A nuvem de cinzas e poeira tornou-se um véu ainda mais espesso, mergulhando Nibiru numa escuridão fria e prolongada. Os terremotos danificaram as estruturas das cidades, os sistemas de suporte de vida, as reservas de energia. O planeta, em vez de reviver, parecia ter recebido um golpe quase mortal.

O erro de Alalu fora catastrófico. Seu plano desesperado não apenas falhara, mas agravara a crise a um ponto crítico. O rei que prometera salvação agora era visto como o arauto da destruição final. Seu poder, construído sobre promessas e força, desmoronou sob o peso de sua própria e terrível imprudência.

Foi nesse vácuo de esperança, nesse cenário de um Nibiru ferido e de um rei desacreditado, que a sombra de Anu começou a se alongar sobre o trono de Agade. Anu, o descendente da linhagem primordial, cuja legitimidade era incontestável segundo as leis mais antigas dos Anunnaki. Ele, que talvez tivesse observado de longe, de um exílio autoimposto ou de um centro de poder alternativo, a ascensão e a queda de Alalu. Agora, com Nibiru à beira do colapso e o povo clamando por uma liderança que oferecesse não apostas insanas, mas sabedoria e estabilidade, Anu decidiu que seu tempo de silêncio terminara. O ciclo de Alalu se fechava. Um novo ciclo, e uma nova confrontação pelo destino de Nibiru, estava prestes a começar. O suspiro do planeta vermelho agora se misturava ao temor de uma guerra civil iminente.

Capítulo 2: Carruagens Partindo na Penumbra

A poeira tóxica do experimento vulcânico de Alalu ainda pairava na atmosfera rarefeita de Nibiru, um véu fúnebre sobre um mundo que já definhava. Nos grandes salões do palácio de Agade, o silêncio era denso, quebrado apenas pelos relatórios sombrios dos cientistas e pelos murmúrios de descontentamento que nem mesmo a guarda real conseguia abafar completamente. Alalu, o rei que prometera salvação através do fogo, encontrava-se isolado em seu trono, sua autoridade desmoronando como as encostas instáveis dos vulcões que ele despertara em vão. O calor artificial que suas erupções trouxeram fora breve e enganoso; o frio que se seguiu, intensificado pela mortalha de cinzas que obscurecia o sol distante, era mais profundo, mais desesperador.

Foi nesse cenário de fracasso e medo que Anu fez sua entrada. Não como um conquistador à frente de exércitos, pois sua legitimidade não precisava de armas para se anunciar, mas como a própria personificação da Lei Anunnaki, antiga e imutável. Sua chegada ao Grande Salão do Conselho, onde Alalu presidia uma reunião tensa e infrutífera, foi como a de uma estrela fria e distante que subitamente se materializa, irradiando uma autoridade que silenciava qualquer oposição. Os membros do Conselho, antes divididos entre o apoio relutante a Alalu e o temor do futuro, curvaram-se instintivamente diante da figura alta e ancestral de Anu, cuja barba branca como a neve dos pólos de Nibiru contrastava com a energia sombria que emanava de seus olhos profundos.

Alalu, em seu trono, enrijeceu. A chegada de Anu era o golpe de misericórdia em seu reinado já moribundo.

"Alalu, filho de Anshargal," a voz de Anu ecoou pelo salão, calma, mas com um poder que fazia os cristais de iluminação vibrarem sutilmente. "Você se sentou neste assento sagrado, o Trono de Nibiru, através de métodos que a Lei questiona e que a história julgará. Prometeu restaurar a glória de nosso mundo. Em vez disso, mergulhou-o em mais escuridão."

Anu caminhou lentamente em direção ao trono, cada passo ecoando a gravidade de eras. "Você ousou despertar os poderes primordiais da criação, usando as Armas de Terror que nossos ancestrais selaram com juramentos de sangue, para seus experimentos irresponsáveis. Olhe ao redor, Alalu! Olhe para o céu de Nibiru, envenenado por sua arrogância! Olhe para o desespero nos olhos de nosso povo! Você não apenas falhou; você profanou!"

Alalu tentou encontrar palavras, uma justificativa para suas ações desesperadas. "Eu agi pela sobrevivência de Nibiru! Lahma nos levaria à extinção com sua inércia!"

"Você, meu primo," – a forma de tratamento soou quase como um escárnio na boca de Anu, lembrando a todos da linhagem questionável de Alalu em comparação com a sua própria, descendente direta dos primeiros reis divinos – "quebrou a lei sagrada, desonrou a coroa com loucura e precipitação! Você fala em sobrevivência, mas trouxe apenas mais morte e desolação!" A voz de Anu elevou-se, não em fúria descontrolada, mas na indignação fria da autoridade incontestável. "Vou lhe mostrar que para ser o rei, é preciso conhecer a lei! A Lei que nos rege, a Lei que mantém o equilíbrio dos mundos! Eu, Anu, descendente de An, protetor da Lei Eterna de Nibiru, reclamo este trono que me é devido por direito ancestral e pela necessidade premente de nosso planeta!"

O desafio estava lançado. Alalu olhou para os rostos dos conselheiros, buscando um último vestígio de apoio. Encontrou apenas o vazio, o medo, a condenação silenciosa. Sua base de poder, construída sobre promessas vazias e medo, desmoronara sob o peso de seu próprio fracasso. Com um suspiro que pareceu carregar toda a amargura de sua ambição frustrada, ele se encolheu no trono. A luta, se alguma vez houve chance de uma, terminara.

O Conselho Anunnaki, com uma unanimidade que beirava o alívio, aclamou Anu como o novo Rei de Nibiru. Guardas leais a Anu, que surgiram como que por magia dos cantos sombrios do salão, avançaram. Alalu foi despojado de suas insígnias reais – a coroa, o cetro, o selo – e conduzido para fora, não para a morte imediata, pois Anu era um rei de leis, não de vingança cega, mas para um confinamento seguro em seus aposentos, onde aguardaria o julgamento formal do Conselho sobre seus crimes contra Nibiru.

Anu assumiu o trono, e uma sensação de ordem, ainda que sombria e frágil, começou a retornar a Agade. Sua primeira tarefa foi confrontar a realidade aterradora da crise atmosférica, agora agravada pela aventura vulcânica de Alalu. Convocou Enki, seu filho, cuja sabedoria científica era sua maior esperança.

"Pai," disse Enki, após apresentar os dados desoladores sobre o estado da atmosfera e as parcas reservas de energia do planeta, "a situação é mais grave do que quando Alalu tomou o poder. Suas ações selaram qualquer esperança de uma solução interna a curto prazo. Precisamos olhar para fora, e rapidamente."

Ele então reapresentou, com novos dados e uma urgência renovada, a antiga proposta – talvez baseada em fragmentos de pesquisa do próprio Alalu antes de sua ascensão, ou em conhecimentos mais profundos dos arquivos de Eridu em Nibiru – sobre o potencial aurífero de Ki, a Terra. O ouro, em quantidades massivas, pulverizado e espalhado na alta atmosfera, era a única tecnologia viável que os Anunnaki conheciam para criar um escudo térmico duradouro.

Anu ouviu, o rosto uma máscara de concentração. A ideia de uma missão interestelar para minerar um planeta primitivo era de uma complexidade e um risco assustadores. Mas os dados de Enki eram convincentes. As alternativas eram a morte lenta de Nibiru ou apostas ainda mais perigosas do que a de Alalu.

"Assim será feito," declarou Anu finalmente, sua voz ecoando com a autoridade de quem toma uma decisão que definirá o destino de sua raça. "A Grande Expedição a Ki será lançada! Enki, meu filho, você, com sua sabedoria e sua perícia, liderará a vanguarda. Vá à Terra. Estabeleça nossa base. Confirme as fontes de ouro. E inicie a extração que trará a salvação a Nibiru. Faça-o sob a Lei, com ordem, com propósito. Que esta missão seja o símbolo da restauração de nossa esperança e de nossa honra."

A notícia do decreto real espalhou-se por Nibiru. Uma nova e cautelosa esperança começou a substituir o desespero. As grandes docas espaciais subterrâneas, silenciosas por tanto tempo, voltaram à atividade. Naves de exploração e transporte, as "Carruagens Celestiais", começaram a ser preparadas, revisadas, equipadas para a longa e perigosa jornada. Cientistas, engenheiros, geólogos, pilotos e trabalhadores foram convocados, selecionados, preparados para a maior empreitada da história Anunnaki.

Enquanto Nibiru fervilhava com os preparativos da missão de Enki, Alalu, em sua reclusão vigiada, não se entregara ao desespero. Seu corpo podia estar preso, mas sua mente astuta ainda trabalhava. Sabia que seu tempo em Nibiru estava contado. Anu, embora justo, não poderia permitir que um usurpador que quase destruíra o planeta permanecesse impune ou como um foco de futuras conspirações. O exílio final, ou a morte, eram seus destinos mais prováveis.

Mas Alalu não era homem de aceitar o fim sem lutar. Ele ainda tinha alguns lealistas, aqueles que se beneficiaram de seu breve reinado ou que temiam represálias sob Anu. E ele tinha conhecimento de locais secretos, de arsenais esquecidos onde as Armas de Terror remanescentes – aquelas não usadas em seu plano vulcânico – ainda poderiam ser encontradas.

Numa noite escura, enquanto a maior parte da atenção de Agade estava voltada para os preparativos da partida da frota de Enki, Alalu pôs seu plano de fuga em ação. Os detalhes se perderam nas sombras, mas o resultado foi claro: ele escapou de sua prisão, conseguiu acesso a uma nave menor e mais rápida – talvez um antigo cruzador pessoal que mantivera escondido – e, crucialmente, carregou consigo um punhado daquelas armas proibidas, seu último e terrível trunfo.

“Ele partiu na calada da noite cósmica,” narrou Enki a Endubsar, a voz carregada de um pressentimento sombrio. “Um lobo solitário escapando do julgamento, uma sombra veloz e silenciosa cortando o negrume entre as estrelas. Seu destino: Ki. A Terra. O mesmo planeta para onde nossa frota se preparava para ir em missão de salvação. Mas Alalu não ia para salvar Nibiru. Ia talvez para salvar a si mesmo, ou para encontrar um novo reino onde pudesse ser rei, ou talvez, em sua amargura, para usar o poder que carregava para fins que nem mesmo eu ousava imaginar.”

E assim, enquanto as grandes Carruagens Celestiais de Enki, pesadas com equipamentos, pessoal e a esperança de um planeta inteiro, alinhavam-se nas rampas de lançamento, prontas para partir na penumbra da longa noite nibiruana, a pequena e rápida nave de Alalu já estava muito à frente, uma estrela cadente de ressentimento e poder proibido, rasgando o vazio em direção ao mesmo ponto azul e distante no firmamento.

A história dos Anunnaki na Terra, Endubsar compreendeu, não começaria com um único propósito, mas com dois. A missão oficial de Enki, ordenada por Anu para buscar a salvação através da ciência e da lei. E a jornada não oficial de Alalu, nascida do desespero, da ambição frustrada e do poder roubado. Duas carruagens partindo na mesma penumbra, carregando destinos que se entrelaçariam e colidiriam de formas trágicas e inesperadas no novo mundo que os aguardava.

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