Gabriela jurava que seu coração tinha pulado dentro da barriga — ou talvez fosse só o terceiro pedaço de lasanha que ainda não tinha digerido desde Florença. Ela parou no meio da ruazinha de pedra e soltou um suspiro quase teatral.
— Meu Deus... eu tô na Itália. Na. I-tá-lia. — murmurou, agradecendo como fazia desde que havia chegado em solo italiano há alguns dias atrás. — E eu nem precisei vender um rim pra isso. Mas se eu ficasse mais um dia nesses lugares turísticos, talvez eu precisasse para poder ir embora quando chegar a hora.
A viagem era um sonho antigo. Não daqueles com roteiro bonitinho de agência e café da manhã em hotel três estrelas. Era o tipo de sonho de quem cresceu vendo novela com personagens que se apaixonavam em pizzarias em Nápoles e falavam “mamma mia” sem sotaque nenhum. Ela queria viver a Itália de verdade: comer pizza, pegar italianos e tirar uma foto dramática segurando uma taça de vinho em algum lugar onde o Wi-Fi fosse fraco e o carboidrato forte.
Missão parcialmente cumprida.
Ela já tinha conhecido os principais pontos turísticos: Roma, Florença, Veneza, passeou de gôndola com um gondoleiro que tentou cobrá-la o triplo por cantar “Volare”, fez selfie com três diferentes tipos de gelato na mão, havia até mesmo recebido cantadas em três línguas diferentes (inclusive uma que ela achava que era grego) tinha tirado fotos suficientes pra alimentar o feed por um ano inteiro. Mas agora... agora era hora da parte real da viagem.
— Chega de gastar 12 euros num capuccino e 20 num pedaço de pizza gourmet com folhas que parecem mato de calçada — resmungou. — É hora de ir pro outro lado da Itália. O lado raiz. O lado barato. O lado que respeita o bolso da brasileira média.
Com o mapa torto nas mãos e a internet oscilando como sua sanidade, Gabriela seguia em direção à vila onde alugara uma hospedagem simples, barata e com o charme duvidoso de quem foi anunciada como “rústica e acolhedora” (o que geralmente significava que a descarga funcionava com balde e o wi-fi era lenda urbana).
Foi então que ela virou uma esquina e sentiu o universo sorrir pra ela. Ou talvez tenha sido só o cheiro do molho de tomate fresco.
Ali, no coração da vila, entre vasos de manjericão e uma brisa perfumada de alho e manjerona, estava um restaurante que parecia cena de filme.
“Casa Gonzales: il meglio della tradizione italiana con un tocco messicano."
Gabriela parou, emocionada.
— Toque mexicano? Na Itália? — sussurrou, colocando a mão no peito. — É aqui que meu estômago encontra sua alma gêmea, certeza.
Ela olhou para o restaurante como quem jura amor eterno. Se tivesse tempo, energia e uma lavagem estomacal para liberar espaço, teria entrado naquele instante. Mas a prioridade era encontrar a hospedagem. Afinal, carregar mochilas com cara de quem fugiu de casa e estômago pedindo arrego de tanta comida, nunca foi combinação boa pra paquerar garçons e experimentar novos pratos.
— Mas eu volto — prometeu, em voz alta. — Volto e peço tudo o que couber na mesa. E se couber um italiano também, melhor ainda.
Com essa promessa, Gabriela seguiu seu caminho. Mal sabia ela que, aquele restaurante traria belos capítulos na sua viagem.
Gabriela se afastou do restaurante como quem se despede de um crush platônico: virando pra trás a cada três passos, como se os aromas pudessem puxá-la de volta.
— Eu volto. Juro por Deus, por Nossa Senhora do Glutamato Monossódico e por todas as calorias da Itália — murmurou, enquanto seu estômago fazia um ruído dramático de despedida.
Alguns metros depois — que pareciam muitos só porque o sol estava batendo bem no meio da cara e as mochilas pareciam carregar o peso emocional de todos os términos de relacionamento de sua vida — ela finalmente viu a plaquinha pendurada numa casa cor de chá com leite: “Casa di Fiore – La tua casa in Italia
— Minha casa na Itália é... Vamos ver se é lar ou cilada, né? — disse, encarando a fachada com desconfiança curiosa.
A casa era pequena, de dois andares, com janelas floridas, uma varanda torta mas charmosa, e um cheiro no ar que misturava bolo assando com lavanda e um leve toque de... gato molhado? Ou seria manjericão velho? Não importava. Gabriela já estava encantada.
Empurrou a portinha de madeira que rangeu de um jeito dramático — quase um "bem-vinda, forasteira" — e deu de cara com um hall apertado decorado com quadros de flores secas, guarda-chuvas antigos e um sino pendurado com fita vermelha escrito "Toque se for feliz".
Ela tocou.
Ding-ding!
Nada aconteceu.
Tocou de novo. E mais uma vez. Até que ouviu passos apressados e uma voz feminina gritando em italiano algo que parecia uma bronca, seguida de um som que só podia ser uma travessa caindo.
Do corredor saiu uma mulher baixinha, com bochechas coradas, um avental florido e olhos tão brilhantes quanto os da sua avó quando via novela mexicana.
— Ciao, bella! Gabriela, vero? A brasiliana!
— Sim! Gabriela! — disse ela, tentando sorrir com o fôlego que ainda tinha. — E você deve ser... a dona?
— Fiorella. Ma tutti mi chiamano mamma. Porque aqui, quem se hospeda, ganha comida, conselho e um pouco de drama — disse ela, rindo alto e puxando Gabriela para um abraço apertado, com direito a tapinha nas costas e cheiro de molho de tomate no cabelo.
— Meu Deus, eu nem fiz check-in e já ganhei uma mãe italiana. Isso aqui é um filme da Disney?
— Vieni, vieni! Te mostro sua stanza! Leonardo! Ajuda com a mala da signorina!
Um adolescente surgiu das sombras, com fones no ouvido e expressão de quem preferia estar jogando FIFA do que carregando mochilas de turistas suadas. Ele deu um sorriso educado — ou talvez entediado, não dava pra saber — e pegou a mochila de Gabriela como se fosse feita de chumbo.
— Cuidado com essa mochila aí que tem coisa frágil... tipo minha dignidade. — Ela tentou brincar, mas Leonardo só fez um joinha e saiu escada acima.
O quarto era surpreendentemente adorável. Paredes em tom pêssego-claro, cortinas rendadas, cama com colcha florida e um ventilador de teto que girava com o esforço de quem está tentando se aposentar. Na mesinha de cabeceira, um bilhetinho escrito à mão dizia: “Se precisar de algo, bata palmas duas vezes. Ou grite. Preferimos que grite.”
Gabriela se jogou na cama com um suspiro longo e feliz.
— Eu consegui. Tô hospedada, viva, e ainda tenho um restaurante alma gêmea a poucos — mas nem tanto — metros de distância. Isso sim é viver o sonho europeu com orçamento controlado para não ter que economizar o resto do ano.
Ela ficou ali, deitada, observando a luz dourada entrando pela janela, ouvindo o som de pratos batendo na cozinha e uma ópera italiana tocando baixinho no andar de baixo. Era como estar dentro de uma caixinha de música italiana, só que com um leve cheiro de alho e promessas de carboidrato.
Estava em casa. Ou quase isso.
Ela sorriu, fechou os olhos e pensou: agora sim... que comecem os capítulos bons dessa viagem.
Mal sabia ela que a receita dessa história estava só começando.
O banheiro era do tamanho de um segredo mal contado, mas Gabriela já tinha se hospedado em lugar pior — uma vez dormiu num hostel onde o chuveiro era sobre o vaso sanitário. Pelo menos ali havia uma cortina, e o chuveiro cuspia água quente com esforço, como quem diz "vai ser rapidinho, né?".
Depois de se lavar com um sabonete que cheirava a lavanda e sabedoria de vó, Gabriela vestiu um pijama leve, deitou na cama e soltou um longo suspiro de alívio. Estava finalmente limpa, fresca e minimamente parecida com uma pessoa civilizada.
O celular vibrou. Era chamada de vídeo.
— Ai, meu Deus... — murmurou, ajeitando o cabelo com os dedos e tentando encontrar um ângulo que não mostrasse sua olheira do tamanho da dívida pública brasileira.
Atendeu. E, como sempre, foi um caos instantâneo.
— GABIIIIII! — gritaram cinco vozes masculinas em coro, cada uma em um tom diferente, enquanto a câmera tremia como se estivesse sendo operada por um terremoto.
— Aponta isso direito, Pedro! — ralhou a voz da mãe, Maria, do fundo.
A tela se dividiu em vários rostos que tentavam caber ao mesmo tempo. Parecia uma reunião de condomínio em alta definição.
— Ai, meu Deus, olha essa cara! Tá comendo direito, menina? — perguntou Maria, com os olhos marejados e um sorriso de mãe que já dizia: "tô com saudade demais".
— Tô sim, mãe. Só não tô digerindo direito. Acho que comi uma lasanha com alma de cimento.
— Ah, foi a lasanha de Florença que você mandou a foto, não foi? Aquilo ali engana, viu? — comentou Carlos, o pai, com ares de quem já sabia tudo da culinária italiana sem nunca ter pisado fora do Brasil.
— Pai, o senhor nunca saiu do bairro...
— Mas tenho estômago de viajante. Isso é quase a mesma coisa!
— Fala sério, Gabi — interrompeu Pedro — já beijou algum italiano ou só o garfo até agora?
— Que garfo, Pedro? Tu acha que ela tá num rodízio?! — gritou Rafael, rindo.
— Ei, respeita a princesa! — entrou Wesley, com uma camiseta do Atlético toda torta. — Ela tá em missão cultural.
— Missão nada — disse João. — Tá é se achando a Lizzie McGuire. Faltam só os duetos.
Gabriela ria tanto que a barriga doía.
— Gente! Eu tô aqui só tem alguns dias, nem deu tempo de me apaixonar, só de me arrepender de ter comido três pedaços de lasanha em jejum.
— Isso é estratégia de guerra — falou Eduardo. — Se for correr perigo, ao menos morre feliz.
— Vocês são doidos — ela disse, enxugando uma lágrima de riso. — Mas obrigada por me ligarem. Já tava começando a sentir falta do caos.
— Falta? — a mãe arqueou uma sobrancelha. — Amanhã a gente faz uma chamada só com os cachorros latindo e o liquidificador ligado, pra matar essa saudade de verdade.
— Manda beijo pro Nonô e pro Fubá — pediu Gabriela.
— Eles tão aqui! — gritou Pedro, apontando a câmera pra dois vira-latas sonolentos que nem se moveram.
— Amo vocês — disse Gabriela, de coração cheio.
— Também te amamos, filha — respondeu Maria. — Se cuida. E nada de trazer italiano metido, hein?
— Mãe... eu tô na Itália. Metido é o que mais tem.
— Então traz um humilde. E bonito. Se for possível, com pão de alho.
Após mais algumas risadas, acenos e ameaças de print vergonhoso, a chamada finalmente chegou ao fim. A tela voltou ao silêncio, e Gabriela sentiu o quarto parecer um pouco mais quieto do que antes. Mas um tipo bom de silêncio. Aquele que vem depois de risadas barulhentas e amor demais para caber numa tela.
Ela se levantou, esticou o corpo e foi até a janela.
A vila parecia uma pintura. As luzes acesas nos postes baixos, as janelas iluminadas das casas, o som distante de risadas e pratos batendo. Era como se alguém tivesse borrifado poesia no ar. Por um segundo, pensou em descer, caminhar um pouco, talvez até encarar o restaurante mágico que ela se apaixonou no caminho.
Mas então lembrou.
— A lasanha de Florença ainda tá aqui... — disse, olhando pro próprio estômago com certo rancor. — Aquilo não era molho branco. Era cimento afetivo.
Riu sozinha, pegou o celular e abriu suas redes sociais. Deslizou pelo feed, curtiu três gatinhos, uma frase motivacional e ignorou os stories da ex-colega que agora vendia batons com nomes de frutas exóticas.
Colocou um filme de comédia romântica qualquer - algo com cara de sessão da tarde e trilha sonora otimista — e se aninhou nos lençóis.
Meia hora depois, com um riso bobo nos lábios e uma cena congelada na tela onde os protagonistas iam se beijar debaixo da chuva, Gabriela já estava dormindo.
E nos seus sonhos, talvez já estivesse jantando com alguém que falava italiano com aquele sotaque que arrepia e cozinhava como quem sabe que comida boa se mede pelo silêncio à mesa e pela briga pelo último pedaço de pão.
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