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Capítulo 1 – O Livro Sem Nome
O céu de fim de tarde estava coberto por nuvens espessas, e o vento soprava como um velho segredo que ninguém mais queria ouvir. As calçadas molhadas refletiam a cidade cinzenta, e os passos de Aurora ecoavam entre as ruas estreitas, como se marcassem o compasso de uma melodia triste que apenas ela conhecia.
Aurora tinha vinte e dois anos. Era silenciosa, introspectiva, de beleza discreta e gestos contidos. Seu mundo era feito de páginas amareladas, chá morno e devaneios que pareciam sempre mais seguros do que a vida real. Nunca se permitira amar. Talvez porque, no fundo, sempre achou que amor era coisa para outras pessoas — e não para alguém como ela. Ainda era virgem, não por medo, mas por não encontrar sentido em entregar-se a alguém que não a visse de verdade.
Ela preferia os livros. Nos livros, ela era forte, desejada, admirada. Nas páginas, podia ser uma rainha exilada, uma feiticeira proibida ou uma guerreira sem piedade. Nas páginas, ela vivia.
E foi em busca dessa fuga sagrada que seus pés a levaram até ali: uma livraria esquecida no fim da Rua Ébano, espremida entre prédios que pareciam ter esquecido de respirar. A placa sobre a porta rangia com o vento, e os vidros embaçados escondiam o interior como um mistério antigo. O letreiro, em letras quase apagadas, dizia apenas: Livros & Outras Verdades.
O sino na porta tilintou quando ela entrou.
O cheiro era de madeira velha, papel úmido e algo mais… algo que lembrava a infância e o desconhecido ao mesmo tempo. As estantes subiam até o teto, abarrotadas de títulos que jamais vira, alguns escritos em línguas que pareciam esquecidas pelo mundo. Aurora caminhou sem pressa, como quem entra num santuário. Seus dedos passaram pelas lombadas, acariciando capas como se sentissem o pulso de cada história.
Foi então que algo chamou sua atenção.
No fundo da livraria, entre duas estantes tortas, havia um livro solitário. Era diferente dos outros: sua capa era de couro escuro, quase negro, sem título, autor ou qualquer sinal de identificação. O couro parecia respirar sob seus dedos, morno como pele. Ela o pegou.
Ao abri-lo, o mundo silenciou.
As primeiras linhas a fizeram prender a respiração. Era a história de uma mulher chamada Lyara, uma jovem de aparência comum, considerada feia por muitos, mas que escondia uma habilidade letal com a espada. Ela era subestimada, ignorada — até que mostrava do que era capaz. Aurora se irritou. O desprezo que a personagem sofria a atingiu em cheio, como se fosse uma provocação pessoal.
Mas ao mesmo tempo… havia algo fascinante em Lyara. Ela era forte, mesmo quando não queria ser. Ingênua, sim, mas com um fogo nos olhos que nenhuma armadura podia conter.
Página por página, Aurora mergulhava mais fundo. E então, no final, as palavras que pareciam sussurradas diretamente ao seu ouvido:
"Este livro aparece apenas àqueles que foram escolhidos. Você chegou até aqui porque o destino quer que você veja. Um aviso, no entanto: quem atravessa a última página, nunca mais volta."
O coração de Aurora bateu forte. Um misto de medo e fascínio a atravessou. Aquilo era um jogo? Uma metáfora? Uma brincadeira de autor?
Ela olhou ao redor. A livraria parecia suspensa no tempo.
Fechou o livro com cuidado, segurando-o contra o peito como quem segura um segredo sagrado. E então sussurrou para si mesma:
— Eu nunca quis um amor... mas talvez eu queira uma história.
O livro brilhou. Um clarão dourado escapou pelas bordas da capa. E no instante seguinte, o chão desapareceu.
A livraria se desfez em poeira e luz.
Aurora caía.
Mas pela primeira vez, ela escolhia cair.
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Capítulo 2 – O Outro Lado da Página
Aurora caiu — mas não com medo.
A queda não era como sonhar. Não havia terror, nem gritos, nem vento. Era suave, quase serena. Como se o mundo estivesse desfiando ao redor dela, dissolvendo-se em poeira dourada enquanto uma nova realidade se costurava à sua volta. Sentia-se leve, e pela primeira vez em muito tempo, inteira.
Quando seus pés tocaram o chão, um baque suave e silencioso, ela abriu os olhos.
Estava em uma floresta.
Mas não era uma floresta comum. As árvores eram altas demais, antigas demais. Os galhos dançavam com uma brisa que parecia sussurrar nomes que ela não conhecia. As folhas brilhavam levemente, com um verde tão vívido que beirava o mágico. O céu era de um azul profundo, sem nuvens, e a luz filtrada entre as copas criava reflexos dourados na terra.
Aurora se levantou com dificuldade. O livro havia desaparecido de suas mãos. Ou talvez… tivesse finalmente se tornado parte dela.
Olhou ao redor. O silêncio era espesso, vivo. Ela não sabia onde estava, nem o que deveria fazer. Mas havia algo dentro dela — um instinto antigo, herdado talvez de um sangue que dormia há gerações.
Ela caminhou.
Passos firmes, ainda que hesitantes, a levaram por uma trilha quase invisível entre as árvores. A floresta parecia observá-la, como se esperasse algo dela. E então, à distância, ela o viu.
No alto de uma colina, sob a sombra de uma árvore colossal, havia um homem. Não muito alto, nem muito largo — mas envolto em uma presença que rasgava o ar. Ele vestia uma capa escura, longa, e usava uma armadura leve por baixo. Carregava uma espada nas costas, mas parecia tão natural com ela quanto alguém que carrega a própria sombra.
Aurora parou. Seu coração acelerou.
Ele não se moveu de imediato. Estava de costas, observando o horizonte como se soubesse que o mundo estava prestes a mudar. Quando enfim virou o rosto em sua direção, ela prendeu o fôlego.
Os olhos dele eram escuros. Não negros. Eram olhos de tempestade: profundos, densos, impossíveis de decifrar. E neles, havia algo estranho… como se ele a reconhecesse.
— Você demorou — ele disse, com voz baixa, rouca, marcada pelo tempo.
Ela franziu o cenho.
— Você me conhece?
Ele deu um meio sorriso, sem responder. Depois virou-se por completo, caminhando lentamente em sua direção. Seus passos eram calculados, mas não ameaçadores. Ele parecia mais curioso do que surpreso.
— Você é Lyara? — perguntou.
Aurora hesitou. O nome a atingiu como um eco.
— Eu… não sei mais quem sou.
Ele parou a poucos metros dela. O vento brincava com a capa dele, e com os cabelos de Aurora, criando uma moldura quase poética ao redor daquele momento.
— Então o livro te escolheu — disse ele, mais para si mesmo do que para ela. — Isso muda tudo.
Ela sentiu o frio na espinha voltar, mas junto com ele… algo diferente.
Um calor estranho no peito. Como se o tempo, finalmente, tivesse começado a se mover.
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Capítulo 3 – O Homem Sem Nome
O silêncio entre eles era quase tão espesso quanto a névoa que começava a subir do chão da floresta. Aurora sentia o peso daquele momento nos ombros, como se as árvores, os ventos e até mesmo o tempo segurassem a respiração para ouvir o que viria a seguir.
O homem ainda a observava. Seus olhos, escuros como a noite antes da tempestade, a percorriam com uma atenção desconcertante. Não era desejo, nem julgamento — era como se ele buscasse nela um nome esquecido, uma memória antiga, algo perdido entre as páginas do tempo.
Ela tentou manter a postura firme, mas a verdade é que suas pernas tremiam. Não de medo, mas da sensação de que algo dentro dela havia se quebrado... ou despertado.
— Quem é você? — ela perguntou, enfim. A pergunta saiu num fio de voz, mas havia coragem nela. Havia sede por respostas.
O homem virou o rosto levemente, como se ponderasse se valia a pena dizer a verdade. Quando enfim respondeu, sua voz era grave, arrastada, marcada por algo mais profundo que o cansaço.
— Já tive nomes demais para contar. Fui soldado numa guerra que ninguém lembra. Prisioneiro de um reino que caiu. Fui traído e chamado de traidor. Fui um herói por um único dia... e isso me custou tudo. Agora? Agora sou só uma sombra com lembranças demais e paz de menos.
As palavras dele cortaram o ar como lâminas. Aurora prendeu o fôlego. A cada frase, aquele homem — aquele guerreiro de expressão contida e alma rachada — parecia mais um personagem de um épico que alguém esqueceu de terminar.
— E você? — ele devolveu a pergunta, sem mudar o tom. — Já descobriu quem é neste lado da história?
Aurora hesitou. O nome dela parecia pequeno agora, frágil diante daquele mundo tão grandioso, tão perigoso. Mas também era um ponto de partida.
— Eu sou Aurora... ou, pelo menos, era. O livro me chamou de Lyara. Mas eu não sei o que isso quer dizer.
Ele assentiu lentamente, como quem já esperava essa resposta.
— Quer dizer que você não está mais lendo a história. Você se tornou parte dela.
Um arrepio percorreu sua coluna. Era loucura. Ou talvez... fosse o que ela sempre esperou que acontecesse. Desde criança, ela se via dentro dos livros. Vivendo entre espadas, reis, maldições e promessas antigas. Mas nada a preparou para a sensação de realmente estar ali — viva em um universo que não seguia as leis do mundo que conhecia.
Ela o encarou. Havia mais perguntas queimando em sua língua.
— Você... me conhece?
Por um segundo, ele pareceu congelar. Os olhos escureceram ainda mais, como se uma lembrança o tivesse atravessado. Mas quando respondeu, sua voz era contida, como alguém que andava em um campo minado de palavras.
— Não da forma que você imagina. Mas sei o suficiente. Sei que o livro não aparece por acaso. E que se ele te escolheu... então há algo em você que precisa ser lembrado.
Aurora sentiu algo se agitar em seu peito. Uma chama. Uma força antiga. Ela não sabia empunhar uma espada. Nunca havia sequer segurado uma. Mas algo dentro dela sabia.
— E você? — ela insistiu, com mais firmeza. — Tem nome? Ou vai continuar fingindo que é só um fantasma com uma espada nas costas?
Dessa vez, ele sorriu. Não um sorriso completo — mas um canto de lábio curvado que sugeria ironia, tristeza... e um pouco de admiração.
— Aqui, sou conhecido como Kael. Mas os nomes verdadeiros... eles pertencem a uma vida que já não existe.
Kael.
O nome pousou na mente de Aurora como uma lembrança antiga, embora ela tivesse certeza de que nunca o ouvira antes. Ainda assim, havia algo nele — um som, uma energia — que fazia seu coração bater mais forte.
— Você me conhece — ela disse, quase sem perceber.
— Eu conheço seu destino — ele respondeu, simplesmente.
Antes que ela pudesse questionar mais, um som cortou o ar da floresta: o trotar pesado de cavalos, vindo de leste. Não era um passeio. Era perseguição. Caçada.
Kael ficou tenso num instante. Seus olhos varreram a floresta com precisão militar. Ele se virou para Aurora, e o tom em sua voz mudou — mais urgente, mais afiado.
— Eles te encontraram antes da hora. Isso não deveria acontecer. Rápido — ele estendeu a mão. — Precisamos sair daqui.
— Quem são eles? — ela perguntou, o medo começando a se infiltrar por suas costelas.
— Aqueles que querem que essa história nunca chegue ao fim. Ou que nunca comece.
Aurora hesitou por um segundo. Mas quando seus dedos tocaram os dele, algo dentro dela estalou. Como um selo sendo quebrado.
E naquele toque breve, pele contra pele, ela entendeu.
Kael fazia parte do livro. Da história. E agora, da vida dela.
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