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Raízes do Coração

Capítulo 1 – A Última Dança com a Mãe

Parte 1: Doce Ilusão

A brisa suave da noite acariciava as cortinas brancas da sala enquanto a música preenchia o ambiente com um tom suave de saudade antecipada. Isadora, com apenas oito anos, rodopiava de mãos dadas com a mãe ao som de uma canção antiga que ela sempre pedia para tocar quando estavam sozinhas.

— De novo, mamãe! — pediu Isadora, os olhos brilhando de alegria.

Helena riu baixinho, a tosse disfarçada pela melodia. Mesmo com o cansaço estampado no rosto, ela nunca recusava aquele pedido.

— Essa vai ser a última por hoje, combinado?

— Prometo! — respondeu Isadora, cruzando os dedinhos atrás das costas.

A dança terminou com um abraço apertado e um beijo demorado no topo da cabeça da menina. Isadora não sabia, mas aquela seria realmente a última dança.

Nas semanas seguintes, a saúde de Helena piorou. Primeiro vieram as dores de cabeça, depois o cansaço constante, até que ela mal conseguia sair da cama. Os médicos não traziam boas notícias, e o pai de Isadora, Renato, tentava esconder a aflição com sorrisos forçados e presentes cada vez mais caros.

Isadora, confusa com a ausência da mãe nas atividades diárias, sentia-se perdida. Passava horas deitada ao lado da cama, segurando a mão fria de Helena, esperando que ela abrisse os olhos e sorrisse de novo como naquela noite da dança.

— Mamãe... quando você vai melhorar?

Helena forçou um sorriso e acariciou o rosto da filha.

— Meu amor... mesmo que eu não esteja aqui... sempre vou dançar com você. Fecha os olhos, e me sentira por perto.

No dia em que Helena partiu, o céu parecia chorar junto com a casa. Renato se fechou num silêncio pesado, e Isadora, ainda tão pequena, aprendeu o que era a dor de um vazio que não se preenche com palavras.

A menina guardou para si a lembrança da dança os passos suaves, o som da risada da mãe, o calor do abraço. E todas as noites, antes de dormir, fechava os olhos e dançava em pensamento, como um ritual secreto que a ligava à mulher que lhe dera tudo.

Na manhã seguinte o cheiro das flores tomava conta da casa. Rosas brancas, lírios e crisântemos preenchiam cada canto da sala de estar, onde repousava o caixão fechado. A luz da manhã filtrava-se pelas cortinas pesadas, criando um brilho suave, quase irreal. Parecia que o tempo tinha desacelerado, respeitando a dor que pairava no ar.

Isadora estava sentada na ponta de sua cama, vestida com um vestido preto que coçava o pescoço. Seus pezinhos balançavam no ar, e as mãozinhas estavam apertadas no colo. Os olhos grandes e castanhos encaravam o chão, mas sua mente parecia muito distante dali. A boneca de pano que a mãe havia costurado estava esquecida no canto do quarto.

— Está pronta, minha flor? — perguntou a voz rouca do pai da porta, sem conseguir disfarçar o tremor.

Ela não respondeu de imediato. Olhou para ele, para os olhos avermelhados e a gravata torta. Era a primeira vez que via o pai tão descomposto, como se tivesse perdido também a direção.

— Ela vai sentir frio? — perguntou baixinho, com um fio de voz que mal atravessou o quarto.

O pai hesitou. Entrou e ajoelhou-se diante dela, segurando suas mãos pequenas entre as dele.

— Não, meu anjo... onde ela está agora, não existe frio. Nem dor.

Isadora assentiu devagar, mas não parecia convencida. Ele ajeitou a golinha do vestido dela, tentando sorrir.

— Podemos levar a manta azul, a que ela usava no sofá. Só por... segurança — sugeriu , com um nó na garganta.

Ela fez que sim com a cabeça, levantando-se com um suspiro. Caminharam juntos pelos corredores da casa, cada passo pesando mais do que o anterior. Ao passar pela sala, Isadora parou. Seu olhar encontrou o caixão fechado no centro da sala, cercado de flores.

— Papai...

— Sim?

— Eu posso dar um beijo na mamãe?

Ele engoliu em seco, lutando contra as lágrimas. Abaixou-se e a pegou no colo.

— Pode, sim minha pequena .

Aproximaram-se. O pai retirou a tampa de vidro apenas o suficiente para que Isadora se inclinasse e tocasse com os lábios a testa gelada da mãe.

— Eu prometo cuidar do papai como você me pediu mamãe — sussurrou ela, quase inaudível.

Ao colocá-la de volta no chão, o pai a abraçou com força, sentindo o peso da ausência crescer no peito. Naquele momento, não eram apenas pai e filha. Eram dois corações despedaçados tentando se manter de pé, agarrados um ao outro como náufragos em meio à dor.

O silêncio das flores os envolveu de novo. Era hora de dizer adeus.

O céu parecia chorar com eles. Gotas miúdas de chuva escorriam pelas folhas das árvores, e o vento frio soprava entre as lápides dos familiares que ocupavam seu espaço na cripta da familia . Isadora caminhava de mãos dadas com o pai, apertando com força a manta azul dobrada nos braços. Era sua despedida.

Ao redor do túmulo, amigos e parentes falavam em sussurros, como se temessem perturbar o descanso da mulher que agora dormia sob a terra molhada. Mas Isadora não ouvia nada. Seus olhos estavam fixos no buraco aberto, onde o caixão seria descido em breve.

O padre disse palavras bonitas, mencionou paz, eternidade e lembranças. Mas nada disso alcançava o coração da menina. Quando os coveiros começaram a fechar o túmulo, o pai se ajoelhou ao lado dela e, com a voz embargada, murmurou:

— Vamos plantar as flores preferidas dela aqui, tá bem? Vai ser bonito. Vai ser do jeitinho que ela gostava.

Isadora apenas assentiu, ainda abraçada à manta. E quando a última pá de terra caiu, ela soltou um pequeno soluço, abafado pelo barulho da chuva.

Os dias que vieram depois foram estranhos. A casa parecia maior, mais silenciosa. O cheiro do perfume da mãe ainda pairava no ar, como um sussurro esquecido. O pai tentava sorrir para ela nas refeições, mas às vezes esquecia de preparar o café. Outras vezes, chorava baixinho no sofá quando achava que Isadora já tinha dormido.

Ela passava mais tempo no quarto, conversando com a boneca de pano como se fosse uma confidente. Às vezes, deitava-se no sofá e cobria-se com a manta azul, fingindo que era o colo da mãe.

— Quando a mamãe volta? — perguntou ela certa noite, a voz baixa no escuro.

O pai entrou no quarto, sentou-se ao seu lado na cama e acariciou seus cabelos.

— Ela não volta, meu amor. Mas vai estar com a gente de outro jeito. Dentro da gente. No que a gente lembra, no que a gente sente...

Isadora não respondeu. Apenas fechou os olhos, tentando imaginar a voz da mãe cantando sua canção de ninar.

Naquele momento, entendeu que o mundo não era mais o mesmo. Algo dentro dela também havia sido enterrado naquele dia , a inocência tranquila da infância. Em seu lugar, nascia um tipo novo de silêncio: o da saudade.

Capítulo 2 – O Pai Protetor

O luto se instalou na casa como uma nuvem densa. Durante semanas, Renato mal saía do quarto, e quando saía, era para garantir que Isadora tivesse tudo de que precisava. Ele não suportava ver a filha chorar, e fazia de tudo para arrancar um sorriso dela, ainda que momentâneo.

Presentes passaram a se acumular no quarto da menina: bonecas importadas, vestidos bordados, livros ilustrados, brinquedos eletrônicos. Mas nada substituía a presença da mãe. Ainda assim, Renato tentava preencher a falta com afeto exagerado e permissividade.

— Não precisa ir à escola hoje se não quiser, minha pequena. Vamos tomar sorvete no café da esquina? — dizia ele, interrompendo a rotina com escapadas improvisadas.

Isadora aceitava, mas sempre com um olhar distante. Começava a entender que seu pai estava tão perdido quanto ela. Em casa, ele se tornara seu herói silencioso, tentando construir um mundo onde a dor não existisse.

Com o tempo, Renato passou a recusar propostas de viagens a trabalho, delegar funções na empresa e passar mais tempo em casa. Criava um universo onde Isadora fosse o centro de tudo. Mas sem perceber, estava criando uma bolha.

Isadora crescia cercada por cuidados excessivos e poucas regras. O amor do pai era palpável, mas também um escudo que a impedia de conhecer o mundo real. Para Renato, ela era uma flor frágil que precisava ser protegida de todas as formas.

E por um tempo, isso bastava. O vazio deixado por Helena parecia menos dolorido quando pai e filha assistiam filmes juntos, cozinhavam panquecas pela manhã ou liam histórias na varanda enquanto a noite caía.

Mas o tempo não parava. E logo a bolha seria posta à prova.

Na parede do quarto de Isadora, a foto da dança com a mãe permanecia. Ela sorria ao lado de Helena, mas o olhar carregava algo a mais: uma saudade silenciosa, e talvez, uma intuição de que tudo um dia muda mesmo sem o seu consentimento.

– O Peso das Sombras

Dez anos se passaram desde o adeus e do luto.

Isadora agora tinha dezoito anos e chamava atenção por onde passava. Seus traços delicados herdados da mãe contrastavam com a intensidade dos olhos, carregados de vontades e teimosia. Moravam em uma casa ainda mais elegante, resultado dos bons negócios do pai, que depois do luto se dedicara ao trabalho como forma de fugir da solidão e a satisfazer cada desejo da filha única.

A ausência da mãe transformou-se, aos poucos, numa ferida coberta por presentes, permissões e desculpas. O pai fazia o impossível para vê-la sorrir. E Isadora, percebendo isso, aprendeu a usar esse poder a seu favor.

Adolescente, vivia em festas, cercada de amigos superficiais e promessas vazias. Repetia de ano com frequência, trocava de colégio como quem muda de roupa, e acumulava advertências discretas que nunca chegavam a gerar consequências. O pai, influente e determinado a poupá-la de dores, fazia questão de abafar qualquer incidente antes que se tornasse público.

Houve uma vez em que bateu o carro novo numa madrugada, após sair escondida para uma festa. Disse que alguém havia esbarrado no estacionamento. O pai acreditou , ou fingiu acreditar. Pagou o conserto e nunca mais tocou no assunto.

Em outra ocasião, uma funcionária foi demitida por chamar a atenção de Isadora por destratar uma colega na escola. A justificativa oficial foi "reestruturação doméstica". Mas todos sabiam a verdade: ninguém podia contrariar a pequena rainha da casa.

Apesar de tudo, havia algo em Isadora que não se deixava apagar completamente. Um vazio persistente, uma insatisfação constante, como se tudo o que recebia fosse uma tentativa frustrada de preencher o buraco deixado pela mãe. Às vezes, no silêncio da noite, ela ainda segurava a velha boneca de pano ,agora guardada no fundo de uma gaveta , e pensava na mulher que poderia ter lhe ensinado a ser... diferente.

A vida parecia perfeita à primeira vista, mas era uma ilusão sustentada por aparências, dinheiro e segredos. O pai, por sua vez, começava a dar sinais de cansaço. Seus olhos já não escondiam tão bem a culpa por ter transformado o luto em indulgência.

E o destino, silencioso, se preparava para dar o próximo passo.

Porque todo castelo de vidro, mais cedo ou mais tarde, encontra a primeira pedra.

Capítulo 3 – A Nova Esposa

treze anos se passaram desde a morte de Helena. Isadora agora tinha 20 anos e, embora ainda guardasse os vestígios da menina frágil de antes, começava a florescer em uma linda mulher, curiosa e sensível. Renato, por sua vez, parecia ter reencontrado algum sentido na vida ao conhecer uma mulher chamada Regina, uma mulher que ele conheceu em uma das reuniões da alta sociedade.

Regina era bonita, elegante e extremamente articulada. Aparentava empatia e delicadeza nas primeiras conversas com Isadora, mas havia algo no olhar dela que a menina não conseguia explicar. Parecia estudar cada gesto, cada palavra que ela pronunciava.

Renato estava encantado. Depois de tantos anos fechado para o amor, ver-se cativado por Regina foi como respirar depois de muito tempo debaixo d'água. Rapidamente, o relacionamento evoluiu, e em poucos meses, anunciaram o casamento.

— Você vai ter uma nova mãe, Isa. Não para substituir a sua, mas para somar. — disse Renato, com um sorriso emocionado mas cauteloso sabendo dos caprichos de sua filha.

Isadora forçou um aceno de cabeça. Por dentro, algo doía. Não sabia se era ciúmes, medo ou apenas a sensação de que aquele castelo seguro que ela e o pai haviam construído estava prestes a ruir.

No dia em que Regina e sua filha Melissa se mudaram para a casa, Isadora sentiu que seu lugar foi empurrado para um canto.

Melissa tinha a mesma idade que ela, mas não havia traço algum de ingenuidade em seu rosto. Era fria, calculista e, desde o primeiro momento, deixou claro que não estava ali para ser amiga de Isadora.

— Você tem sorte... tem tudo do bom e do melhor, — disse Melissa, no primeiro encontro, com um sorrisinho sarcástico. — Mas isso pode mudar.

E mudaria.

Regina, com sua voz doce e modos delicados, começou a se infiltrar nos espaços da casa como uma sombra. Ela se oferecia para ajudar, fazia pequenos agrados a Isadora, mas cada gesto tinha intenções escondidas.

Com o tempo, Renato começou a ouvir mais a nova esposa. Pequenas sugestões surgiam:

— Isadora parece um pouco mimada, talvez fosse bom impor mais limites...

— Eu sei que ela sente falta da mãe, mas não seria bom incentivá-la a ser mais independente?

Aos poucos, o que era sutil se tornaria evidente. E Isadora não demoraria a perceber que a sua vida não era mais a mesma.

- Entre Duas Mulheres

O relógio da sala marcava quase meia-noite. A casa estava silenciosa, exceto pelo som abafado da chuva batendo contra as grandes janelas. Isadora desceu as escadas descalça, envolta num robe de cetim. Estava com fome e foi até a cozinha, mas parou ao ouvir uma voz conhecida vindo do escritório do pai a voz doce e calculada de Regina, sua madrasta.

— Ela precisa entender que não é mais uma criança — dizia, com um tom baixo, porém firme. — Você não pode continuar protegendo a Isadora de tudo.

Curiosa, Isadora se aproximou discretamente e encostou-se à parede próxima à porta entreaberta.

— Ela perdeu a mãe muito cedo, Regina— respondeu o pai, cansado. — Eu só quero o melhor pra ela.

— Eu entendo, querido. Mas tem uma diferença entre querer o melhor e impedi-la de crescer — insistiu Regina, cruzando as pernas com elegância. — Ela tem vinte anos. Ainda mora aqui, ainda depende de você para tudo. E, sinceramente, parece que ela vive num mundo que você criou só pra ela, onde nada é responsabilidade dela.

O pai suspirou, massageando as têmporas. Regina se levantou e se aproximou devagar e colocou a mão sobre o ombro dele.

— Você está se desgastando. Ela precisa aprender a lidar com limites. Com a vida real. Se continuar assim, vai acabar te arrastando com ela.

Antes que ele respondesse, a porta se abriu com um leve rangido.

— Que interessante ouvir isso de quem chegou nessa casa com um sorriso falso e um plano pronto — disse Isadora, fria, parada no batente com os braços cruzados.

Regina virou-se com um leve sobressalto, mas recompôs o rosto num segundo, como quem coloca uma máscara.

— Isadora... querida. Não era minha intenção!

— Poupe o teatro. Já ouvi o suficiente.

O pai levantou-se imediatamente, apreensivo.

— Filha, não é o que parece. Regina só está preocupada...

— Preocupada em me tirar do caminho — cortou ela, olhando direto para Regina. — Mas eu não sou tão ingênua quanto você pensa. E se acha que vai me tirar da vida do meu pai assim, com sorrisos e veneno, vai precisar de mais do que isso.

Regina manteve a pose, mas havia um brilho nos olhos que não disfarçava o incômodo. sentou-se devagar.

— Não quero te tirar da vida dele, Isadora. Só quero que você cresça. Que entenda que o mundo não gira ao seu redor.

— E você quer ser o Sol? — retrucou ela, com ironia. — Boa sorte com isso.

O silêncio pairou denso entre as três figuras. Era o início de uma guerra silenciosa, com sorrisos cortantes e palavras afiadas. E embora o pai tentasse manter a paz, sabia que, a partir daquela noite, algo havia mudado.

E que, talvez, fosse tarde demais para evitar a tempestade que se aproximava.

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