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Entre Sombras e Luar

Capítulo 1 - Além da Fronteira

Capítulo 1 — Além da Fronteira

— Isso é loucura, Lioren — murmurou Erys, apertando o braço do amigo. — Nenhum elfo se aproxima da fronteira à noite.

Lioren soltou o braço devagar. O luar tocava suavemente seu rosto, iluminando os fios dourados de seu cabelo. Seus olhos, de um verde musgo calmo, estavam fixos nas árvores retorcidas que marcavam o fim do território de Sylvaris.

— Tem algo errado — disse ele, em voz baixa. — A floresta está... em silêncio.

Erys olhou ao redor. Nem o vento ousava passar pelas folhas. Nenhum pássaro, nenhum inseto. Só o sussurro da tensão entre mundos.

— Vamos voltar. Se os guardas pegarem a gente aqui, é exílio. Ou coisa pior.

Lioren ignorou. Deu dois passos à frente, atravessando uma linha quase invisível de musgo pálido no chão. A fronteira.

— Lioren!

Foi quando ouviu. Um som fraco. Um gemido. Mais à frente, entre as raízes retorcidas de um carvalho velho, algo se movia. Lioren se abaixou, olhos atentos.

Um corpo.

— Tem alguém aqui! — ele exclamou.

Erys hesitou, depois correu até o amigo. Quando viu a figura caída no chão, empalideceu.

— Isso é... isso é um híbrido.

O rapaz no chão estava inconsciente, o peito subindo e descendo com dificuldade. Seus cabelos negros grudavam na pele pálida, suja de sangue seco. As roupas estavam rasgadas, o tecido encharcado de vermelho. E havia algo em seus olhos — mesmo fechados, algo perigoso, denso. Seus caninos sobressaíam levemente dos lábios entreabertos.

— É um meio-vampiro — sussurrou Erys. — Deixe ele aí. Alguém deve ter feito isso por um motivo.

Lioren tirou a pequena bolsa de ervas do cinto e já começou a preparar uma mistura.

— Ele está morrendo.

— Bom! — Erys se afastou. — Você quer abrigar um monstro agora?

— Ele não é um monstro — disse Lioren, firme. — Está ferido. E alguém tentou matá-lo. Eu não vou virar as costas.

Erys não respondeu. Apenas deu um passo atrás, o olhar entre o medo e a raiva.

— Faça o que quiser. Mas você vai carregar as consequências.

---

Lioren arrastou o corpo pela trilha oculta até sua cabana, a pele úmida de suor e o coração martelando. Assim que trancou a porta atrás de si, deixou o corpo sobre a cama improvisada de palha e madeira.

— Vai dar tudo certo — murmurou, mais para si mesmo.

Começou a limpar os ferimentos com cuidado. A pele do meio-vampiro ardia sob suas mãos, como se o calor fosse rejeitado. Cada toque arrancava um leve estremecer do corpo inconsciente. Quando finalmente terminou, cobriu-o com um tecido leve e se sentou na cadeira, observando.

Foi só horas depois que o estranho acordou.

— Onde... — a voz veio rouca, grave, como pedra arranhando pedra.

Lioren se aproximou. — Está seguro. Você estava ferido. Cuidei de você.

Os olhos abriram, vermelhos como brasas apagadas. Avaliaram Lioren, o teto, as paredes. A mão instintivamente foi ao peito, mas encolheu-se ao sentir a dor.

— Por que não me deixou morrer?

— Porque ninguém merece morrer sozinho — respondeu Lioren com simplicidade.

O meio-vampiro riu fraco, um som cínico. — Você não sabe quem eu sou.

— Ainda não. Mas sei que precisa de ajuda.

Silêncio. O estranho fechou os olhos por um momento.

— Kael — disse por fim. — Meu nome é Kael.

— Lioren.

— Um elfo curandeiro... — Kael abriu os olhos outra vez, agora fixos em Lioren. — E estúpido. Você sabe o que acontece com quem ajuda um híbrido?

— Provavelmente. Mas prefiro saber depois que você estiver bem.

Kael riu de novo, dessa vez com mais dor. Tossiu. Lioren lhe ofereceu uma infusão de ervas, que ele recusou com um gesto de desprezo.

— Não me deve nada — disse Kael. — Pode me entregar amanhã. Não vou lutar.

— Não vou entregar você.

— Então é pior do que eu pensava.

Lioren sorriu de leve. — Você fala muito para alguém que quase morreu.

— Hábito — respondeu Kael, deitando de lado com dificuldade. — Fugir, sangrar e falar. É o que faço melhor.

Lioren observou o silêncio que se seguiu. E algo, bem no fundo, sussurrou que a paz que ele conhecia tinha acabado no instante em que cruzou aquela fronteira.

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Mais tarde naquela noite, Lioren entrou no quarto devagar. Kael dormia, o rosto ainda pálido sob a luz da lua que entrava pela janela. Apesar de tudo, havia algo sereno nele. Uma sombra bonita. Triste.

Lioren se sentou ao lado da cama, tirou seu pequeno diário do bolso e escreveu:

"Hoje, pela primeira vez, vi um inimigo sangrar como um amigo. E não consegui virar as costas. Talvez amanhã eu me arrependa. Mas por hoje, quero acreditar que fiz a escolha certa."

— L.

Capítulo 2 - O Elfo e o Sangue

Capítulo 2 — O Elfo e o Sangue

— Isso ainda é uma péssima ideia — murmurou Kael, apoiando-se na moldura da porta com dificuldade.

Lioren ergueu os olhos do caldeirão onde mexia uma mistura espessa e aromática. — E, ainda assim, você está em pé, vivo e respirando.

Kael passou a língua pelos dentes, como se estivesse prestes a rebater, mas desistiu. Sentou-se na cadeira com um grunhido de dor.

— Você devia me deixar ir.

— Você não consegue dar dois passos sem cair — Lioren retrucou. — E sua febre ainda não passou. Eu sou teimoso, mas você também.

Kael o encarou. Havia algo nos olhos de Lioren que o desarmava. Talvez fosse aquela calma irritante, ou o jeito como não demonstrava medo. Ninguém olhava pra ele daquele jeito há anos.

— Você sempre acolhe monstros na sua casa?

— Só os que não têm onde cair mortos.

Kael soltou uma risada seca. — Generoso. Ou burro.

— Você repete muito isso. Tenta me convencer ou se convencer?

Kael não respondeu. Seus olhos correram pela cabana — simples, mas aconchegante. Ervas secas penduradas, cristais encantados, livros espalhados. E flores. Havia flores em um vaso perto da janela. Pequenas e azuis, quase transparentes.

— Por que você mora sozinho? — perguntou, sem encarar Lioren.

— Curandeiros seguem a trilha dos espíritos. Meu mestre dizia que a cura requer silêncio, distância. E eu gosto de ouvir a floresta.

— Não tem medo?

— De quê?

— Do que existe lá fora.

Lioren parou por um instante. Mexeu a poção mais devagar.

— Medo, às vezes. Mas não deixo que ele me prenda.

Kael o observou em silêncio. A suavidade com que ele falava... era estranha. Quase desconcertante. Depois de tantos gritos e ordens e ameaças, ouvir alguém falar assim parecia errado. Bom demais pra ser verdade.

— E o que você sabe sobre híbridos?

— Quase nada. Só o que os anciãos contam. Que são imprevisíveis, perigosos. Que não pertencem a lugar nenhum.

— E mesmo assim, me trouxe pra cá.

— Trouxe. E vou te manter aqui até melhorar.

— Você é louco.

— Já ouvi isso antes.

Kael desviou o olhar. As flores da janela. O cheiro das ervas. O calor do caldeirão. Tudo era... calmo demais.

— Ninguém nunca cuidou de mim assim — disse, baixo. — Nem quando era criança.

Lioren não disse nada. Caminhou até ele com uma tigela nas mãos.

— Beba. Vai ajudar com a dor.

Kael hesitou. Pegou a tigela. Cheirou o conteúdo. — Isso tem sangue?

— Tem lavanda, raiz de myrn e essência de limão. Você acha que eu teria sangue por aqui?

Kael deu um gole, cauteloso. Depois outro. Fez uma careta. — Horrível.

— Funciona.

— Você devia abrir uma estalagem de tortura.

Lioren sorriu, sem se ofender. Sentou-se à sua frente.

— Me conta... quem tentou te matar?

Kael pousou a tigela, devagar. Olhou fixamente para Lioren.

— Três caçadores. Homens pagos pra caçar criaturas como eu. Me seguiram por dias. Um deles me reconheceu de um retrato. Disseram que havia recompensa.

— E por que você veio para tão perto da fronteira?

— Porque não tinha mais pra onde correr.

Silêncio. Lioren apertou as mãos sobre o colo.

— Você tem família?

— Tive uma mãe. Ela... sumiu. Meu pai era um vampiro da nobreza. Só me usou pra política. Depois me descartou.

— E agora?

— Agora, só sou uma lembrança incômoda para os dois mundos.

Lioren não respondeu de imediato. Pegou a tigela vazia das mãos de Kael e se levantou.

— Aqui, você é só Kael. E está vivo.

Kael observou as costas dele por um longo momento.

— Você não tem ideia do que isso significa.

 

Naquela noite, Lioren acordou com um barulho seco.

Correu até a sala. Encontrou Kael ajoelhado no chão, ofegante, tremendo.

— O que você está fazendo?

— Preciso... sair — Kael gemeu. — Não posso ficar aqui, Lioren.

— Você mal consegue ficar de pé!

Kael olhou pra ele, os olhos vermelhos em fúria e medo.

— Eles vão me achar. Se ficarem sabendo que você me protegeu... você vai morrer. E não por minhas mãos.

— Eu não tenho medo deles.

— Devia ter!

Lioren se ajoelhou à frente dele. Segurou seus ombros.

— Kael, olha pra mim.

Kael hesitou.

— Eu te encontrei. Eu escolhi te salvar. E enquanto você estiver aqui, ninguém vai te tocar.

Kael fechou os olhos. Algo dentro dele se partiu.

— Você é um tolo.

— Talvez. Mas tolos também têm coragem.

O silêncio caiu como um manto sobre os dois. Só a respiração pesada de Kael preenchia a sala. Lioren, firme. Kael, quebrado.

— Volta pra cama — disse Lioren, por fim. — A febre está subindo de novo.

Kael assentiu, com um aceno quase imperceptível.

Enquanto o ajudava a se levantar, Lioren murmurou, como um sussurro para o próprio coração:

— Nenhuma criatura nasce errada. O mundo é que não sabe onde colocá-la.

 

Mais tarde, quando o meio-vampiro dormia novamente, Lioren escreveu:

"Kael. Um nome curto, carregado demais. Ele tem dor no olhar, garras na voz e feridas no silêncio. Mas hoje, mesmo só por um instante... deixou que eu o tocasse."

— L.

Capítulo 3 - Cicatrizes Silenciosas

Capítulo 3 — Cicatrizes Silenciosas

— Você sabe o que é isso? — perguntou Kael, apontando com o queixo para a tigela de madeira nas mãos.

— Mingau de raiz-do-vento — respondeu Lioren, calmamente. — Com mel silvestre.

Kael encarou a massa cremosa como se ela fosse morder de volta. — Isso parece... ofensa culinária.

— Vai ajudar a fortalecer seus músculos. E tem gosto de infância.

— Infância de quem? De um troll?

Lioren riu e empurrou a tigela nas mãos dele.

— Come.

Kael resmungou, mas obedeceu. Entre uma colherada e outra, observava os movimentos precisos de Lioren, que limpava a bancada da pequena cozinha com delicadeza quase ritual. Cada gesto parecia carregado de cuidado.

— Você sempre foi assim? — Kael perguntou de repente.

— Assim como?

— Cuidadoso. Paciente. Irritantemente gentil.

Lioren ergueu uma sobrancelha. — Irritantemente?

— É. Não sei lidar com isso.

— Talvez precise aprender.

Kael bufou. — Não sei se quero.

— Vai ficar aqui tempo suficiente pra tentar.

Kael baixou os olhos pra tigela. Não respondeu. O silêncio que se seguiu foi denso, mas não desconfortável.

— Você sempre viveu sozinho? — perguntou ele, depois de um tempo.

— Desde que meu mestre morreu. Era um elfo velho, carrancudo. Me ensinou tudo. Inclusive a ficar em silêncio quando não há o que dizer.

— Ele teria te batido por me abrigar, né?

— Com um bastão de carvalho. Mas teria deixado o bálsamo depois.

Kael riu, e a risada saiu mais natural do que ele esperava.

— Estranho — disse. — Rir.

— Você devia fazer mais.

— Pode ser perigoso. Vai que começo a gostar.

Lioren o olhou com aquele mesmo olhar calmo de sempre. Mas havia um brilho diferente ali agora. Algo quase cúmplice.

— Quando quiser rir, pode. Aqui, pelo menos.

Kael ficou em silêncio, mordendo a borda da colher.

---

Mais tarde, Kael pediu para sair. Lioren hesitou, mas cedeu. Caminharam devagar pela trilha estreita entre as árvores. A floresta estava viva outra vez — o som dos pássaros, o farfalhar das folhas, o cheiro fresco da terra.

Kael mantinha o capuz baixo, por precaução.

— Nunca pensei que a floresta dos elfos fosse tão... bonita.

— Ela só mostra isso pra quem não quer destruí-la.

— E você acha que eu quero?

— Acho que você ainda está decidindo quem é.

Kael parou. Olhou para Lioren com um sorriso torto.

— Poético.

— Realista.

— Sabe, você é o primeiro elfo com quem eu falo sem levar uma flechada.

— Eu sou o primeiro elfo que conhece que prefere curar a atacar.

— Isso me assusta mais.

Lioren sorriu de canto. — Tem algo que não te assusta?

Kael ficou sério por um instante.

— Sim.

— O quê?

— Me apegar.

Lioren não respondeu. Continuou andando, deixando o silêncio falar.

---

À noite, Kael teve pesadelos. Lioren acordou com os murmúrios roucos vindo do quarto. Entrou sem bater.

— Kael?

O meio-vampiro se debatia levemente, o rosto contraído em dor, os punhos fechados. Sussurrava nomes. Ordens. Pedidos de socorro.

Lioren se aproximou, sentou-se na beira da cama e tocou seu braço.

— Ei, está tudo bem. Você está seguro.

Kael acordou com um sobressalto, o olhar selvagem. Quase acertou Lioren com o cotovelo.

— Calma! — disse Lioren, segurando o braço dele com firmeza.

Kael arfava, os olhos vermelhos arregalados, o peito subindo e descendo com violência.

— Eles estavam aqui... eu senti...

— Era só um sonho.

— Não era só um sonho.

Lioren não soltou seu braço.

— Eu sei. Mas já passou.

Kael fechou os olhos, envergonhado. — Odeio isso.

— O quê?

— Ser fraco.

— Isso não é fraqueza.

— Então o que é?

— É dor. E você tem direito a ela.

Kael o olhou, e havia algo vulnerável demais naquele olhar. Como se tivesse esperado ouvir isso por anos.

— Você devia ter me deixado morrer.

— Nunca.

Silêncio.

Lioren soltou o braço dele com cuidado.

— Quer que eu fique aqui?

Kael hesitou. Depois assentiu, quase imperceptível.

Lioren puxou uma cadeira e sentou-se ao lado da cama.

— Obrigado — Kael murmurou, antes de fechar os olhos de novo.

E Lioren respondeu com um sussurro, quase inaudível:

— Você não precisa agradecer por existir.

---

Na última página do dia, Lioren escreveu:

"As cicatrizes dele não estão só na pele. Estão nos olhos, nas palavras, no silêncio. Mas hoje... ele deixou que eu visse um pouco delas. Talvez confiar seja como curar. Demora. Mas começa assim."

— L.

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