Há mundos em que a magia é um dom raro.
Gaedhar não é um desses mundos.
Neste planeta vivo, todos — absolutamente todos — nascem com um poder único. Chamam isso de Dom Primário, uma centelha moldada pela própria alma ao nascer. Existem aqueles que invocam chamas com um estalar de dedos, outros que dobram a gravidade, falam com feras ou controlam o tempo de uma semente. Os dons são infinitos. Nenhum é igual ao outro.
Essa magia flui através da Energia Primária, uma força invisível que pulsa no solo, no ar, no sangue dos seres. É ela quem sustenta os Reinos de Gaedhar, terras mágicas tão belas quanto perigosas. E é dela que nascem também as ameaças mais terríveis: as Raids.
Raids são surtos de energia corrompida. Elas abrem fendas nos céus, nas montanhas ou até no fundo do mar, liberando monstros selvagens e insanos, criaturas de puro caos. Algumas duram minutos. Outras, semanas inteiras. Quando uma Raid acontece, os Reinos tremem.
Mas Gaedhar não está indefeso.
Foram criados os Breaks, guerreiros mágicos treinados para combater as Raids. Cada Break carrega um Dom poderoso e um espírito indomável. Eles são os heróis do mundo. Os ídolos. Os intocáveis.
E é exatamente por isso que Neko nunca foi um deles.
O cheiro de cebola caramelizada e especiarias flutuava pela casa como um feitiço acolhedor. Panelas tilintavam, colheres dançavam sozinhas e uma garrafa de óleo deslizava pelo ar como se tivesse asas.
Na cozinha do restaurante da família, magia era parte do tempero. Literalmente.
Lira — Neko! Os pedidos da praça! — gritou a tia Lira, sua voz abafada pelas chamas azuis que queimavam sob o caldeirão.
Ele pegou a bandeja com agilidade e saiu sem dizer nada, atravessando o salão repleto de clientes encantados — alguns literalmente. Um homem com barba feita de fumaça soprou bolhas de fogo por acidente, fazendo um casal de elfos rir. Uma mulher de asas douradas agradeceu com um aceno elegante, seus olhos brilhando como cristais.
E Neko... apenas sorriu de canto.
Entregou os pratos. Limpou as mesas. Engoliu a sensação de estar fora de lugar.
A casa ficava no andar de cima do restaurante. Pequena, acolhedora, mas cheia de barulho.
Seus três irmãos estavam em casa. E isso sempre fazia parecer que o mundo inteiro estava ali, menos ele.
Jorin — Viu o que eu fiz hoje na aula? — dizia Jorin, o mais velho, com orgulho. — Teleporte de sombra em tempo real. Três metros em menos de meio segundo.
Lysa — Impressionante, irmão — respondeu Lysa, girando no ar com fios de água flutuando ao seu redor como serpentes líquidas. — Mas acho que você ainda não viu isso...
Ela estalou os dedos e fez a água se transformar em pássaros de cristal. Os pássaros bateram asas, soltando um brilho arco-íris e sumindo em fagulhas. Nayel, o caçula, riu encantado.
Nayel — Um dia eu vou invocar meu próprio guardião etéreo! Vou virar Break antes dos dezoito!
Neko escutava tudo da cozinha. Lavava pratos. Não por obrigação, mas por costume.
Era o único momento em que as vozes se tornavam ruído de fundo.
Ele amava seus irmãos. Sempre amou.
Mas era impossível não sentir o peso da comparação.
Todos eles despertaram seus dons ainda crianças.
Jorin criava portais sombrios. Lysa controlava água com precisão cirúrgica. Nayel conseguia conversar com criaturas mágicas e invocá-las por instinto.
E Neko...
Micael — Você já tentou de tudo, meu filho — dissera o pai certa vez, com pesar. — Talvez seu dom seja... invisível.
Invisível era uma palavra bonita para “inexistente”.
Naquela noite, como todas as outras, Neko ficou acordado até mais tarde, olhando o céu pela janela do quarto. Do alto da Travessa dos Sabores, as estrelas pareciam dançar entre as torres encantadas de Vandros. Algumas luzes, lá longe, eram de Breaks em patrulha. Outras, apenas faróis de magia.
Ele se deitou sem dizer boa noite.
Ouvia os irmãos rindo no quarto ao lado. Falavam sobre treinamentos, conquistas, futuros grandiosos.
E ele... sonhava pequeno. Sonhava em sentir algo. Qualquer coisa.
Até mesmo uma faísca que doesse, só pra provar que ele ainda podia brilhar.
Mas nenhuma estrela caiu naquela noite.
Só o silêncio caiu sobre ele. Pesado, conhecido.
No dia seguinte, como sempre, ele acordou antes do sol. Preparou os ingredientes. Organizou os talheres. E saiu para comprar pão na rua de trás, como fazia toda manhã.
Mas algo mudou.
No beco entre as lojas encantadas, havia um brilho estranho sob a pilha de caixas. Um reflexo, como se algo respirasse no escuro.
Curioso, Neko se aproximou.
Ali, coberta por poeira e envolta em um padrão de símbolos antigos, estava uma chave preta com detalhes roxos. O metal parecia vivo, pulsando devagar — como um coração adormecido.
Neko segurava a chave entre os dedos, franzindo a testa enquanto o brilho roxo pulsava com mais intensidade, como se respondesse à sua presença. O metal era frio, mas algo dentro dele queimava — uma ansiedade antiga, selvagem, incômoda.
Ele a ergueu, aproximando do rosto, tentando entender... até que sentiu.
Uma dor aguda no peito.
Neko cambaleou para trás quando um símbolo em forma de cadeado surgiu bem no centro do seu tórax, feito de energia negra, coberto por circuitos e glifos arcanos. A chave reagiu. Vibrou como se estivesse viva, liberando ondas de calor que faziam o ar ondular ao redor.
Seu corpo começou a suar. O peito queimava.
Neko — Q-que chave é essa...? Que cadeado é esse...? — murmurou ofegante, os pensamentos correndo em desespero.
As perguntas batiam uma nas outras em sua mente. O medo dizia “solte isso”. A lógica gritava “fuja”.
Mas algo... mais profundo dizia: "coloque".
Com o coração disparado, os olhos fechados e a garganta seca, Neko encaixou a chave no cadeado.
Por um instante, o mundo parou.
Nada. Nenhum som. Nenhum vento. Nenhum brilho.
Até que a chave desapareceu no ar como poeira cósmica, e o cadeado estalou com um som seco, destravando com um clique que reverberou dentro do corpo de Neko.
Foi então que veio a luz.
Seu corpo foi envolvido por uma energia dourada e roxa, seus batimentos se tornaram ensurdecedores, como trovões em seu próprio peito.
Símbolos começaram a se formar ao seu redor, girando, codificando. Linhas de código e runas dançavam como serpentes em sua pele.
E então, um som cortou o silêncio:
[ SISTEMA DE CRESCIMENTO ATIVADO ]
[ PORTAL DE ACESSO INICIAL – ABRINDO... ]
Um rasgo surgiu no espaço à sua frente. Um portal com bordas instáveis e núcleos brilhando em espirais o sugou antes que ele pudesse sequer reagir.
O mundo desapareceu.
E Neko... também.
O som... não existia.
Neko abriu os olhos devagar, sentindo a cabeça latejar como se tivesse sido arrancado da realidade à força. Não havia teto. Não havia céu. Somente um vazio branco, eterno, onde o chão parecia feito de água, mas firme o suficiente para sustentar seu corpo.
Ele se apoiou com dificuldade, a mão afundando levemente naquela superfície líquida-luminosa. Um arrepio percorreu sua espinha. Não era frio — era medo.
Um medo antigo.
Instintivo.
Algo estava errado.
Ele tentou se levantar, mas seu corpo parecia mais pesado ali. Os movimentos estavam lentos, como se o próprio ar fosse denso. Manteve a cabeça baixa, os cabelos cobrindo parte do rosto, enquanto respirava fundo tentando entender onde estava.
E foi então que algo surgiu.
Na sua frente, o espaço se distorceu como um tecido sendo rasgado. Um ser começou a se formar — branco e preto, oscilando como fumaça sólida, sem forma definida. Suas bordas se quebravam como vidro, refazendo-se logo em seguida. Um rosto... ou o que parecia ser um rosto, girava em ângulos errados.
Neko congelou.
Tentou recuar, mas seus pés afundaram levemente no chão líquido, como se algo o estivesse segurando.
Tentou puxar, tentou gritar. Nada.
Seu braço direito começou a tremer e, diante de seus olhos aterrorizados, uma das mãos se deformou, tornando-se translúcida por um instante, como se estivesse sumindo da existência.
Neko — O... o que é você...? — disse ele com a voz embargada, tentando manter o controle.
A entidade não respondeu.
Apenas levantou uma das mãos, onde um buraco negro se formou, girando devagar.
A cada passo que dava, o mundo ao redor invertia de cor: o branco virava negro, o negro voltava a ser branco, como se a realidade estivesse sendo reescrita atrás de seus passos.
A criatura se aproximava.
Neko puxava o pé com desespero, mas o chão — ou água — o prendia como um imã arcano.
Ele sentia a pressão no peito crescer.
E então, o ser parou.
O buraco negro sumiu.
Seu corpo disforme se estabilizou por um instante, revelando dois olhos vazios e uma boca que não se movia, mas sussurrava direto dentro da mente de Neko, como uma presença invadindo seus pensamentos:
??? — Cadeado: liberado.
??? — Sistema: sincronizado.
??? — Confirmação de origem... aceita.
A voz continuava, sem emoção, profunda e dissonante:
??? — Você nasceu sem um Dom, Neko. Não por erro. Mas por proteção.
??? — Seu corpo... sua alma... não eram compatíveis com a Energia Primária deste mundo.
A criatura pairava à sua frente, a luz e sombra vibrando em sua pele:
??? — Em vez disso, você foi selado. Um cadeado ancestral te protegeu.
??? — Pois dentro de você, adormecia algo que nenhum dom poderia conter:
O Sistema de Crescimento Infinito.
As palavras ecoaram como um trovão no fundo da mente de Neko.
??? — Crescimento... infinito...? — sussurrou ele, incrédulo.
??? — Seu potencial não tem forma. Não tem limite.
??? — Por isso foi escondido.
??? — Por isso foi temido.
A entidade ergueu novamente a mão.
Um holograma surgiu no ar — linhas, números, símbolos desconhecidos — girando ao redor de Neko.
[ SISTEMA ATIVADO ]
[ NIVEL: 0 ]
[ STATUS: DESCONHECIDO ]
[ POTENCIAL: ??? ]
Neko engoliu seco, sem saber o que aquilo significava.
??? — Você é o primeiro de sua espécie, Neko.
??? — Um corpo sem dom... mas com acesso ao Código Base.
??? — A partir de agora... você não crescerá por talento. Crescerá por escolha.
A entidade então começou a se dissolver.
??? — Prepare-se. O Teste Inicial começará.
??? — Se sobreviver... o crescimento será seu.
??? — Se falhar... voltará ao esquecimento.
O mundo estremeceu.
O chão sob seus pés se fragmentou, revelando um abismo escuro.
E Neko caiu.
Ou pensou que caiu — já não sabia distinguir o que era físico e o que era mental.
Quando abriu os olhos novamente, estava deitado num chão áspero e rachado. O céu acima era de um tom escuro e apodrecido, coberto por nuvens pesadas que se moviam como se estivessem vivas. A névoa ao redor era espessa, sufocante. Tudo parecia... errado.
Ele se levantou devagar, olhando ao redor. Ruas quebradas, prédios derretidos pelo tempo, postes inclinados como se tivessem sido arrancados e replantados ao contrário. As cores do mundo estavam mortas — era como viver dentro de uma fotografia queimada.
"Estou de volta?" — pensou. Mas não sentia o cheiro do vento, nem o som familiar da cidade.
As vozes começaram.
Sussurros. Gritos abafados. Risadas distorcidas.
Eram como memórias quebradas, ecoando diretamente em sua mente.
Sem saber para onde ir, ele começou a andar. Cada passo produzia um som seco, como se pisasse em ossos. O caminho à frente parecia não ter fim, até que... ele viu.
O restaurante da sua família.
Ou o que sobrou dele.
Metade do prédio estava destruída, a outra pegava fogo lentamente, como se as chamas não tivessem pressa. As janelas estavam estilhaçadas, as portas pendendo das dobradiças.
Um sentimento quente explodiu dentro dele: esperança misturada com pânico.
Neko — Pai? Mãe? Jorin?! Nayel?! Lysa?! — gritou correndo em direção ao prédio em chamas.
A emoção falou mais alto que o medo.
Ao atravessar os escombros, tossindo com a fumaça, ele parou de repente.
Eles estavam ali.
Sentados à mesa como se nada tivesse acontecido: Jorin, Nayel e Lysa.
Neko — Vocês... estão bem! Que alívio... — disse Neko, com os olhos marejados.
Mas... algo não estava certo.
Quando ele se aproximou, as silhuetas se tornaram mais claras.
Os rostos estavam distorcidos.
Olhos demais. Sorrisos largos demais. Pele que parecia... derreter.
Eles se viraram em sincronia, encarando Neko com rostos que eram quase humanos, mas não o suficiente. Havia algo... monstruoso ali.
Algo profundamente errado.
Jorin — Neko... — disse Jorin com uma voz que reverberava em camadas — …você finalmente está crescendo?
Lysa — Veio se juntar a nós...? — sussurrou Lysa, com a cabeça inclinada em um ângulo impossível.
Nayel — Você nunca pertenceu à nossa família... — completou Nayel, abrindo lentamente um sorriso que se rasgava até as orelhas.
Neko recuou, o coração disparado.
O restaurante começou a se desfazer ao redor deles. As paredes choravam sangue escuro. O chão se partia como vidro rachado.
Ele caiu de joelhos, tomado por um pânico que há muito havia enterrado.
Neko — N-não... isso não é real... isso não pode ser...
[ ALERTA: DESAFIO INICIAL EM PROGRESSO ]
[ TESTE DE IDENTIDADE: "ENFRENTAR A RAIZ DO MEDO" ]
[ OBJETIVO: REJEITE A FALSIDADE. ACEITE SUA ESSÊNCIA. ]
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