Capítulo 1 – A Herdeira do Norte
Os ventos do Norte jamais se calam. Eles sussurram pelos salgueiros e arranham os vitrais do antigo castelo de Urzath como se quisessem lembrar aos vivos os feitos dos que já partiram. E foi em meio a esses ventos que nasceu Kátyra — filha do ar, do fogo e da terra.
Neta de Adam, o Rei dos Ursos, descendente direto dos antigos Nefilins, seu nome era entoado em cânticos de poder e profecia desde antes de seu nascimento. Dizem que Adam carregava em seus ossos a sabedoria de Salomão, e nos olhos, a lembrança das estrelas que caíram. Seu trono, esculpido em pedra negra e salmo vivo, era mais que um símbolo: era um selo sobre segredos que os séculos não ousaram desvendar.
De Moira, a Rainha do Sul, Kátyra herdou o sangue dos dragões e a língua antiga das feiticeiras de Corinto. Moira falava com o tempo como quem conversa com o espelho. Suas palavras, em grego ancestral, moldavam as marés e convocavam os ventos. Era ela quem caminhava sobre brasas para ensinar à neta que o verdadeiro poder não reside na força, mas no silêncio entre um feitiço e outro.
Seu pai, o Príncipe Dimitry, era a imagem viva da mãe: olhos tempestuosos, beleza cortante como uma lâmina do Éter. Guerreiro relutante, estrategista por natureza, ele era o escudo de Kátyra. E sua mãe, Cora, da Casa do Grifo, soprava liberdade em cada passo da filha. Do Clã do Ar, ela trouxe leveza à linhagem dos reis — e asas invisíveis ao espírito inquieto de Kátyra.
Mas nem mesmo linhagens tão puras estão livres da sombra.
Na véspera do seu décimo sétimo ciclo, quando o sangue desperta e os dons se manifestam por completo, Kátyra teve um sonho que não era seu. Uma floresta que queimava sem fogo, olhos que choravam sal, e um nome esquecido sussurrado ao vento: "Bardaxa..."
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Ponto de vista de Kátyra.
Despertei com um solavanco, o coração martelando no peito como se tentasse escapar. O quarto estava silencioso, exceto pelo som insistente das janelas batendo com o vento do norte — sempre o mesmo vento. Passei a mão no rosto suado, tentando apagar a floresta em chamas que ainda ardia dentro de mim. Aqueles olhos... ainda estavam comigo. E o nome — Bardaxa — ecoava em minha mente como uma palavra proibida que nunca aprendi, mas que parecia tatuada na alma.
Levantei antes que as criadas viessem me chamar. Vesti o manto azul-escuro bordado com fios de prata do Clã do Ar, presente da minha mãe, e prendi o cabelo com a presilha de cristal lapidado — herança da Casa dos Dragões. Era manhã, mas a luz era pálida e o castelo parecia mais velho do que o habitual. Talvez fosse apenas o peso do sonho.
No salão de mármore do alto da torre sul, encontrei minha avó, como sempre, rodeada de livros e pergaminhos. A pele dela tinha o brilho opaco das pérolas antigas, e os cabelos brancos e longos estavam trançados com pequenas pedras encantadas que pulsavam uma luz tênue. Quando me viu, Moira sorriu de lado, como se já soubesse do que eu vinha falar.
— Tiveste um sonho, não foi? — ela perguntou em grego antigo, como sempre fazia quando o assunto era sério.
Assenti em silêncio.
Ela fez um gesto com os dedos, e as tochas do salão se apagaram. Ficamos só nós duas e a luz do dia filtrada pelas vidraças coloridas.
— A floresta que queima sem fogo... olhos que choram sal... e um nome que jamais devias ouvir — ela murmurou, andando em círculo ao meu redor. — Teu sangue começa a se mover, Kátyra. E com ele, os véus entre os mundos.
Senti um arrepio correr pelas costas. Mas antes que pudesse responder, ela mudou de tom. Um brilho malicioso dançou em seus olhos.
— Mas não foi só isso que me trouxe até aqui hoje.
Ela estendeu a mão, e uma pequena caixa surgiu entre seus dedos. Dentro, um colar de ouro branco com um pingente em forma de serpente enrolada em torno de uma pedra âmbar.
— O que é isso?
— Um presente... do príncipe do Leste.
Meu estômago afundou.
— Erizy... — disse, com a voz falhando.
— A cerimônia do Desabrochar será em três dias. Teu nome será proclamado como herdeira diante dos quatro grandes clãs. E como manda a Tradição dos Antigos, o prometido será apresentado. Erizy vem da Casa de Nymeris, do Clã dos Sheaui.
Fechei os olhos. O Clã dos Sheaui. Serpentes gigantes que viviam sob as águas das ilhas do Leste. Guerreiros temidos. Feiticeiros silenciosos. Diziam que seus olhos podiam envenenar a mente de quem os encarasse por muito tempo.
— Ele é um... desconhecido. — murmurei.
— Todos os destinos o são, até que escolhemos caminhar por eles — respondeu minha avó com firmeza. — Mas Erizy não é um monstro, apesar do que ouvirás. E tu, minha pequena Kátyra, estás destinada a algo que vai além de alianças. Vai além do que eu posso ensinar.
Ela colocou o colar em minhas mãos. A pedra estava fria. Mas vibrou, por um instante, como se tivesse vida própria.
— E se eu não quiser? — perguntei, finalmente.
Moira se aproximou e tocou minha testa com os dedos.
— Então haverá guerra.
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Capítulo – O Chamado da Linhagem
As neves do Norte nunca dormem. Nem mesmo no silêncio das madrugadas, quando o mundo parece suspenso entre os sussurros do vento e o ruído distante das criaturas que vivem entre véus.
Naquela noite, Kátyra despertou suada, a respiração entrecortada. O sonho havia voltado, mais vívido do que nunca.
> "Χάτυρα... Χάτυρα εἶ... Θυγάτηρ τοῦ Φωτός..."
Kátyra… Kátyra és… Filha da Luz…
A voz ecoava em sua mente como um trovão suave, carregada de poder e dor. Era a mesma voz das últimas noites, mas agora havia um nome diferente: Thygátēr tou Phōtós.
Ela levantou-se, ignorando os olhares dos guardas à porta do salão de inverno. Havia uma atração irresistível em direção aos limites do reino — ao Vale das Almas Adormecidas, onde nenhum sangue real havia pisado desde o tempo de Moira.
Caminhou sozinha até a cripta ancestral, onde as estátuas dos antigos se alinhavam como sentinelas esquecidas. Ali, entre espelhos cobertos por gelo eterno, encontrou um de cristal puro. Ao tocá-lo, ele a reconheceu.
No reflexo, viu todas as linhagens que habitavam seu sangue: o fogo dos Dragões, o sopro dos Grifos, a firmeza dos Ursos, a sombra dos Darxas… e algo mais. Um sexto traço, oculto, que pulsava em tons dourados.
Uma inscrição surgiu no espelho, em grego antigo:
"Aquela que é de todas as casas será a última luz ou a primeira sombra."
Ela agora sabia: os Darxas buscavam o Coração de Éter, e seu sangue era a chave.
– O Olhar do Bardaxa
As geleiras tremiam com o peso dos passos de Kátyra. Ela seguia por trilhas abandonadas ao tempo, onde nem os corvos ousavam voar. A procura por respostas a levou a uma antiga biblioteca enterrada sob os escombros de um templo Ataxa.
Mas antes que pudesse decifrar os sigilos nas paredes, foi emboscada. Três Ataxas surgiram das sombras com suas lâminas negras, olhos incandescentes.
A batalha foi breve, brutal. Ela teria perecido… se não fosse por ele.
Tharion.
Um Bardaxa. Alto, pele marcada por runas antigas, olhos com reflexos âmbar e roxo — um sinal da mistura de Guardião com Darxa. Ele lutava com ferocidade e beleza. Quando os corpos tombaram, ele se virou para ela, arquejando:
— "Você é a filha do Norte… Mas também é herdeira de algo que ninguém entende. Os Ataxas não a querem morta. Querem usá-la."
Caminharam juntos. Ele revelou ter fugido das minas de ônix, onde os Bardaxas eram escravizados. Trazia consigo parte de um mapa que levava à relíquia sagrada.
Durante a jornada, Kátyra começou a ouvir sussurros nos ventos — vozes que Tharion também escutava. Eram memórias. Vidas antigas que vibravam entre os dois, como se o destino deles estivesse preso por fios tecidos antes mesmo do tempo.
Ela não sabia se confiava nele. Mas em seus olhos havia algo que ela reconhecia: dor, resistência… e algo mais perigoso — verdade.
A Torre de Ébano
Erguendo-se no coração da Floresta dos Ecos, a Torre de Ébano parecia viva. Feita de um metal negro e liso, pulsava com energia sombria. Diziam que nela repousavam os ecos dos Guardiões originais, que um dia caminharam entre os mundos.
Kátyra e Tharion chegaram ao portão ao cair da noite. As runas na entrada reagiram ao toque da princesa, abrindo passagem. Mas só ela pôde entrar.
> "Três espelhos. Três escolhas."
Primeiro espelho: Coragem.
Ela foi confrontada com uma versão de si mesma — uma Kátyra cruel, dominadora, que aceitara o trono das sombras. Lutou contra essa visão, negando-a… mas compreendendo que a força também era parte dela.
Segundo espelho: Verdade.
Mostrou-lhe Moira em Corinto, conjurando feitiços proibidos para proteger o Clã de Cristal. Mostrou Cora sendo traída pelos próprios guardiões. Mostrou Adam selando pactos com forças ocultas. Kátyra entendeu que todos haviam mentido. E que ela era o resultado dessas mentiras.
Terceiro espelho: Sacrifício.
Ela viu Tharion aprisionado por Ataxas. Do outro lado, o Fragmento do Coração de Éter flutuava. Mas ela só poderia escolher um: salvá-lo… ou cumprir sua missão.
Com lágrimas nos olhos, ela virou as costas para o cristal e quebrou o espelho. A torre tremeu. O coração desapareceu, e Tharion foi libertado.
Uma voz antiga ecoou:
> "Aquela que renuncia ao poder por amor… carrega o poder que não se pode roubar."
A Família Reunida
Ao lado do trono, estava seu pai: Príncipe Dimitry, com os cabelos brancos ondulados e olhos suaves. Parecia um eco gentil da mãe de Kátyra, Cora, que estava mais afastada, vestida em dourado leve, como o ar que representava. Os olhos dela, cor de âmbar, observavam a filha com misto de afeto e preocupação.
> "Minha menina…" — murmurou Cora, quando Kátyra se aproximou — "O que aconteceu contigo além das montanhas?"
> "Escolhi… perder para entender o que nunca me ensinaram." — respondeu a princesa.
Dimitry tocou a mão da filha discretamente.
> "O que quer que tenhas vivido, trouxeste algo novo nos olhos. Como se uma estrela tivesse se apagado… e outra, nascido."
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O Prometido
Quando os aplausos da entrada cessaram, um novo som encheu o salão: passos firmes, seguros, acompanhados por dois Guardiões. Ele surgiu envolto em uma túnica escura bordada com fios de ouro: Kael Erizy herdeiro da Casa do Serpente, e prometido de Kátyra.
Alto, belo e perigoso como um lobo de inverno, Erizy se aproximou com um sorriso encantador. Seus olhos castanhos tinham algo de predador contido.
> "Finalmente… juntos." — disse ele, beijando a mão de Kátyra com um toque exagerado.
> "Erizy." — ela respondeu, sem sorrir.
> "O mundo inteiro aguarda o que construiremos juntos. Só espero que os ventos do norte não tenham te feito... hesitar."
Ela respondeu com ironia velada:
> "Os ventos me ensinaram a voar. Não a obedecer."
Erizy sorriu, mas os olhos apertaram por um instante. Havia rivalidade ali — e um jogo perigoso em curso.
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Tharion Observa
Na sombra da coluna ocidental, Tharion observava tudo. Seus olhos cruzaram com os deErizy ,por um instante. Ele viu o aviso nos gestos. Ele era um intruso. Um Bardaxa. Um risco.
Mas então, os olhos de Kátyra encontraram os seus. E ela assentiu discretamente, como quem diz: "Não estás só."
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A cerimônia prosseguirá. Mas há uma semente de rebelião no coração da princesa. E o trono do Norte... talvez tenha menos controle sobre seu destino do que imagina.
Capítulo – O Baile das Estações
Quando o dever se mascara de celebração, o coração dança entre verdades e ilusões.
Após o discurso do rei e os votos de união entre as Casas, o salão foi transformado. Cortinas translúcidas e velas flutuantes davam ao ambiente um brilho etéreo. Os instrumentos antigos ecoavam uma melodia ancestral, que parecia invocar lembranças de vidas passadas.
Kátyra, vestida agora com uma túnica leve de prata e safira, caminhava entre sorrisos e saudações com a serenidade de uma princesa. Mas por dentro, seu coração pesava como uma espada no frio.
Ela sabia que não era o momento de romper. Seu avô, o lendário Rei Adam, o Sábio, observava tudo como se enxergasse não apenas os gestos, mas as intenções por trás deles. Seu pai, Dimitry, o Vencedor, era amado e temido entre os clãs — e ele havia selado alianças que manteriam o norte estável por gerações.
Moira, sua avó, observava à distância. Seus olhos de dragão transmitiam uma certeza silenciosa. Ela jamais me forçaria, mas sabe quando devo ceder para não me perder.
Kátyra respirou fundo e decidiu: seguiria o fluxo… por enquanto.
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A Aparição de Erizy
Foi então que ele surgiu. Entre as colunas do leste, onde o luar beijava o chão de mármore. Os olhos de Kátyra o encontraram antes mesmo que ela percebesse. Era como olhar para um eco de si mesma em forma masculina: pele clara, cabelos negros como tempestade, olhos prateados — olhos que ela já tinha visto em sonhos desde a infância.
Erizy.
Ela nunca o vira antes — mas reconhecia cada gesto, como se suas almas tivessem sido escritas no mesmo verso de um poema antigo.
> "Por que sei teu nome?" — ela murmurou sem perceber, ao vê-lo se aproximar.
> "Porque antes de nascermos, já havíamos sido prometidos. Não pelos reis… mas pelas estrelas." — respondeu ele, com a voz grave e macia.
Erizy estendeu a mão. E Kátyra, sem hesitar, aceitou.
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A Dança
A música mudou. Um antigo canto ancestral entoou, e os pares se afastaram discretamente quando perceberam o que se formava ali.
Kátyra e Erizy dançaram como se o mundo tivesse desacelerado ao redor deles. O salão desapareceu. As dores desapareceram. Os jogos, os tronos, as alianças — tudo sumiu por um instante.
> "Tu és como imaginei." — disse ele, girando-a com leveza.
"Mas tua energia... é maior do que previram. A profecia não contou tudo."
> "Que profecia?" — ela perguntou, encostando a testa na dele.
> "Aquela que me mandou para perto de ti… e que talvez me obrigue a partir."
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A Quebra da Harmonia
Kátyra se afastou um passo, o coração acelerado.
> "Não entendo."
> "Há coisas que não posso contar. Ainda não. Mas preciso saber se tua luta... é contra o que está errado, ou contra tudo." — a voz dele carregava uma dor real, como quem ama e teme ao mesmo tempo.
> "Eu luto por algo novo. Por algo que ainda nem sei nomear. Mas não aceito mais o que me é imposto com fitas douradas." — respondeu ela, firme.
Erizy segurou sua mão com ternura.
> "Então talvez eu tenha que escolher entre ti… e os votos que fiz muito antes de te conhecer."
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Na sacada acima do salão, Moira observava com os olhos semicerrados. Adam se recostava com pesar. Dimitry cruzava os braços, como quem antecipa uma guerra de sentimentos.
E no fundo do salão, entre sombras… Tharion viu tudo.
Sussurro no jardim.
Após a dança, como se os próprios deuses tivessem se curvado à vontade dele, Erizy guiou Kátyra pelas escadas laterais do salão. Ninguém os deteve. Era como se ele pertencesse àquele lugar, mesmo sendo um estranho.
Eles atravessaram uma porta ornamentada com símbolos lunares e chegaram à Sacada da Rosa Solar, onde os ancestrais observavam os céus em busca de presságios.
Lá em cima, o mundo parecia silencioso. O vento acariciava os cabelos prateados de Kátyra, e as estrelas surgiam como olhos antigos observando a Terra.
> "Olha para elas..." — disse Erizy, encostando-se no parapeito de pedra.
"Não brilham. Elas ardem. Cada uma… é uma morte à distância. E mesmo assim, chamamos de luz."
Kátyra ficou em silêncio por um momento, absorvendo a estranheza poética daquilo.
> "Nunca pensei nas estrelas como mortes." — ela respondeu.
"Sempre as vi como guias."
Erizy sorriu de canto, sem olhar para ela.
> "Talvez sejamos diferentes, tu e eu. Talvez... tu foste feita para seguir a luz. E eu, para entender o que ela queima."
Ela franziu o cenho, intrigada.
> "Por que me disseste isso?"
Erizy finalmente virou-se para ela. Os olhos dele estavam mais escuros que antes — não ameaçadores, mas... antigos. Como se escondessem milênios.
> "Porque esta dança que começou entre nós... vai cobrar um preço. Talvez não agora. Talvez não de ti. Mas haverá uma hora em que precisarás escolher entre o amor que acende… e o amor que consome."
Ela recuou um passo, confusa.
> "Tu falas como se soubesse o que vai acontecer."
Ele hesitou… e então murmurou:
> "Eu sei o suficiente para saber que nem todos os que te amam te salvarão. E nem todos que te ferirem serão teus inimigos."
Antes que ela pudesse perguntar mais, ele se aproximou e tocou suavemente sua testa com a dele — um gesto antigo entre alianças verdadeiras.
> "Se te perderes... olha para as estrelas. Uma delas ainda arde por ti."
Então, sem mais uma palavra, Erizy se afastou, desaparecendo por um arco envolto em trepadeiras douradas.
Kátyra ficou sozinha ali, o coração pulsando em um ritmo estranho. Havia algo naquele rapaz que ecoava nela... como uma profecia esquecida. Mas também havia um frio súbito que nem o vento do norte explicava.
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Lá dentro, Tharion ainda a procurava. E no alto da torre, Moira murmurava um antigo feitiço de proteção. Ela tinha sentido. A estrela errante havia descido à Terra — e com ela, vinham as escolhas que mudariam tudo.
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