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Contos do Fundo

Chuva de Sangue

O sol do sertão parecia uma ameaça, não uma bênção.

A caminhonete prateada de Marcos avançava pela estrada de barro com dificuldade, levantando uma nuvem ocre que se misturava ao céu seco. A trilha para São Cipriano não constava no GPS, e as placas de madeira pintadas à mão estavam tão desbotadas que mais pareciam relíquias esquecidas.

Ana, com os pés descalços sobre o painel, folheava uma revista de literatura meio amassada. De tempos em tempos, olhava pela janela com um misto de curiosidade e cansaço.

— Essa estrada tá me lembrando aquele filme do Ari Aster — disse ela. — Aquele com o culto e os dançarinos suecos...

— “Midsommar”? — Marcos perguntou, rindo. — Tranquilo, amor. Aqui é nordeste, não Escandinávia. Aqui o povo é gente boa. Rola até cuscuz.

Ana sorriu. Mas o sorriso morreu rápido.

— Você viu que acharam outro corpo no lago do Pará?

— O quê?

— Saiu ontem. Outro caso daquelas mortes sem ferimento visível. A polícia tá dizendo que é afogamento. Mas tinha sangue no barco, nenhum no corpo.

Marcos balançou a cabeça, tentando se manter no bom humor.

— Ótimo assunto pra quem vai passar uma temporada numa vila isolada, hein?

— Me desculpa. — Ela riu. — É só... Não sei. Lugares pequenos mexem comigo.

— É por isso que viemos, né? Isolamento criativo. Você escreve, eu fico no sol… a gente vive um pouquinho fora da internet.

— Se for tipo novela da Globo, tudo bem. Mas se for tipo Stephen King...

— A gente faz as malas e volta pra Recife, fechado.

Passaram por uma porteira aberta. Uma vaquinha magra os observou com desdém. Logo à frente, viram o letreiro improvisado de São Cipriano, entalhado em madeira de um tronco queimado.

A vila surgiu como uma miragem no meio da aridez. Era pequena — três ruas paralelas, uma praça no centro, e casas com paredes de barro e telhados vermelhos desbotados. Algumas janelas estavam abertas, outras cobertas com lençóis. Poucos moradores andavam pelas ruas, todos os observando como se já soubessem quem eles eram.

Marcos estacionou ao lado da praça. Desligou o motor.

— E aí, escritora. Chegamos.

Ana olhou para a casa alugada.

Parecia viva.

Não de um jeito bom.

A casa tinha cheiro de madeira antiga e barro seco, o tipo de cheiro que parece sair das paredes, não dos objetos. O forro de madeira rangia com o menor passo, e a luz do sol entrava filtrada pelas venezianas, riscando o chão com sombras compridas.

Ana largou a mochila no quarto e fez uma volta pela casa, sentindo-se como uma intrusa. O silêncio era grosso, quase sólido. Só o som de um ventilador velho rodando no canto da sala quebrava o clima — e mesmo assim, o barulho era mais irritado que constante.

— Achei o roteador — gritou Marcos da cozinha. — E, surpresa, ele é só de enfeite.

— Não tem Wi-Fi? — Ana apareceu encostada no batente da porta, segurando um copo de água.

— Nada. E a água tá morna, viu? Torneira quente e fria aqui é “quase escaldando” ou “temperatura de cuíca ao meio-dia”.

Ana riu.

— Pelo menos é água. Achei que a gente ia ter que buscar no poço.

Marcos parou e olhou pra ela por alguns segundos.

— Tá se sentindo bem aqui?

Ela hesitou.

— Eu não sei. É bonito. Mas... tem uma coisa estranha no ar. Como se estivéssemos num lugar que tá esperando alguma coisa.

— Você e essas frases de livro. — Ele deu um beijo na testa dela. — Vai ser bom. Uma semana, duas no máximo. Você vai escrever horrores e eu vou finalmente terminar aquele curso de fotografia analógica que nunca comecei.

— Você trouxe a câmera?

— Lógico. E uns filmes vencidos pra dar aquela estética “assombração de 1993”.

O dia seguiu abafado. O céu, que costumava mudar de cor conforme o sol caía, manteve-se de um azul opaco. Pássaros? Nenhum. Nem mesmo os urubus que geralmente circulam alto, fazendo círculos como sentinelas do sertão.

Na segunda ida ao mercadinho da vila, conheceram Dona Zefa.

Ela estava sentada em um banquinho de madeira em frente à loja, com uma sombrinha preta aberta, mesmo sem sol direto. Vestia preto da cabeça aos pés, com um rosário enrolado duas vezes no pulso.

— São os forasteiros da Casa da Cruz Torta — ela disse, antes mesmo deles abrirem a boca.

Ana sentiu o frio subir pelas costas.

— Como a senhora sabe?

— Aqui a gente sente. A casa puxa diferente quando tá pra chuva.

— Vai chover? — Marcos tentou manter a conversa leve.

Dona Zefa não respondeu de imediato. Fitou Ana por um tempo.

— Vocês deviam ir embora antes da sexta-feira.

— Por quê? — Ana perguntou.

— A chuva vai cair. E não é água que molha. É sangue que leva.

O casal se entreolhou. Marcos forçou um sorriso.

— Deve ser alguma lenda local, né?

Zefa continuou olhando.

— Toda vila tem um preço. Aqui a gente paga com silêncio e paciência. Mas quando chove... é hora de cobrar.

Ela levantou devagar, apoiando-se no banco. Deu um passo e murmurou:

— Foi escolha de vocês. Agora é escolha dele.

— Dele quem? — Ana perguntou.

Mas Dona Zefa já havia entrado na loja.

Na volta, Ana permaneceu quieta. Só que o silêncio não parecia mais um alívio. Era o tipo de silêncio que pressiona o peito.

— Isso tá te assustando? — Marcos perguntou, finalmente.

— A senhora... ela parecia saber mais do que dizia. E quando ela falou "chuva de sangue", eu lembrei daquele documentário que a gente viu no streaming. Lembra? O que teve no interior do Maranhão?

— Que caiu água avermelhada por causa de uma alga?

— Sim. Mas os moradores diziam que não era só água. Tinham sonhos estranhos. Um deles dizia que via as pegadas antes da chuva chegar...

— Amor. — Marcos segurou a mão dela. — É um vilarejo no meio do sertão. Isolado. Povo simples. Se a gente procurar, vai achar história de lobisomem, mula sem cabeça e até disco voador. Não pira.

Ana assentiu. Mas à noite, quando o céu se tornou uma camada cinza e o ar ficou parado, ela percebeu que o problema não era a lenda.

Era a espera.

Aquela vila inteira parecia esperar algo.

E eles, talvez, tivessem chegado na hora errada.

Na manhã de quinta-feira, Ana acordou com a sensação de que havia dormido pouco, mesmo sem lembrar de ter acordado durante a noite. O quarto estava abafado, o ventilador girando devagar, como se lutasse contra o ar espesso.

Marcos ainda dormia, roncando leve. Ela olhou o relógio digital: 6h03.

No banheiro, a água saiu morna e barrenta. No começo, pensou que fosse ferrugem nos canos. Depois percebeu que cheirava diferente. Não era podre, nem suja. Era um cheiro... férreo, levemente doce.

O mesmo cheiro que ela lembrava da escola, quando furava o dedo em atividades de ciências.

Ela deixou a torneira correr por alguns minutos. A água ficou mais clara, mas o cheiro permaneceu. Sentiu um incômodo profundo, como se algo dentro dela reconhecesse aquilo.

Na sala, Marcos lia um jornal velho deixado na casa. A data era de cinco anos atrás. A manchete falava sobre uma “seca histórica” na região, mas o que chamou a atenção dele foi uma notícia menor no rodapé:

“Casal desaparece em São Cipriano após aluguel em casa abandonada. Autoridades locais encerram buscas por falta de provas.”

Ele mostrou o jornal a Ana.

— Provavelmente é só coincidência, né? — disse, sem muita convicção.

Ana sentou-se devagar, sem tirar os olhos da notícia.

— A data. É o mesmo mês. Junho. E o nome da rua... é essa casa.

Marcos tentou rir.

— Talvez essa cidade só precise de mais jornalismo investigativo. Sabe como é, folclore, tragédia, dá ibope...

— Marcos, ontem à noite... eu sonhei com sapos.

Ele parou. Olhou sério.

— Tipo... “a gente acorda de um pesadelo e ri”, ou tipo “você tá lembrando agora e sentindo vontade de chorar”?

— Eu... eu não sei. Só lembro do som. Milhares deles. Não era natural. Era como... como se estivessem cantando.

Silêncio.

Ele pegou o copo de água da pia, cheirou.

— Isso tá com cheiro de sangue.

— Eu sei.

Durante o dia, a vila estava estranhamente parada.

Não havia barulho de carroça, nem rádio tocando. As lojas estavam fechadas. Os poucos moradores que apareciam na rua desviavam o olhar. Um menino passou correndo, descalço, e deixou cair um brinquedo de madeira.

Ana pegou o boneco. Era um sapo.

Feito à mão, grosseiro, mas os olhos tinham detalhe demais. Ela jurava que piscavam com o reflexo da luz.

No final da tarde, foram até a venda de novo. Estava aberta, mas vazia. Nenhum funcionário, nenhum som.

Sobre o balcão, uma única garrafa de água mineral, como se estivesse deixada ali propositalmente.

Ao lado dela, um bilhete:

“Não fiquem depois da sexta noite. A casa conhece seus nomes agora.”

Naquela noite, Ana trancou todas as portas e janelas. Marcos afastou os móveis e bloqueou as frestas com toalhas.

— Se isso for alguma pegadinha bizarra de interior, eu juro que vou rir no final.

— Você ainda acha que isso é pegadinha?

— Não. Mas prefiro isso do que pensar que a gente... foi trazido.

Ana parou de se mover.

— Trouxeram a gente, Marcos?

Ele não respondeu.

Mas no fundo, ela já sabia.

Durante a madrugada, ela acordou com o som.

Era um coaxar.

Baixo, molhado. Vindo do telhado.

Depois do sótão.

Depois das paredes.

Marcos dormia profundamente, o rosto pálido, os olhos tremendo sob as pálpebras.

Ela se aproximou. E quando ia acordá-lo, viu algo estranho: uma bolha d’água escorrendo do canto do olho dele.

Não era lágrima. Era mais densa. Escura.

Como se a chuva já estivesse dentro dele.

O dia nasceu cinza. Mas não o cinza comum das manhãs nubladas. Era um tom mais escuro, como se o céu tivesse sido coberto por uma lona suja, pesada. O sol não apareceu nem por segundos. E, mesmo sem vento, as árvores e arbustos da praça balançavam — como se respirassem.

Ana acordou antes de Marcos. O corpo inteiro doía. Quando se olhou no espelho, notou pequenas manchas escuras nas laterais do pescoço, como hematomas circulares. Tentou esfregar, mas elas estavam fundas na pele, como marcas de sucção.

Na cozinha, a torneira soltou dois espirros secos de ar antes de morrer de vez. Nenhuma gota.

— A água acabou — disse ela, enquanto Marcos, ainda sonolento, aparecia no corredor.

Ele parou.

— Isso... é normal?

— Aqui, nada mais parece normal.

Eles comeram bolachas velhas e dividem a última garrafa de água. O relógio marcava 9h44 quando ouviram o primeiro som: uma pancada seca no telhado. Depois outra. Como se pedras estivessem caindo.

— Deve ser o começo da chuva — disse Marcos, tentando parecer calmo.

Mas Ana estava parada na janela.

— Não. Não são pedras. São... sapos.

Ele foi até ela. Juntos, viram um dos bichos escorregar pela calha e cair no chão com um estalo úmido. Era maior que o normal, com a pele acinzentada e olhos muito escuros. Por um segundo, os olhos do animal se moveram com consciência — não como um bicho, mas como algo que observa e reconhece.

E então, o som.

Vindo do centro da vila.

Um coaxar em uníssono.

Não era natural. Tinha ritmo. Padrão. Era um canto. Uma convocação.

Marcos correu até a porta. Estava destrancada, como haviam deixado, mas agora não abria. A maçaneta girava, mas o trinco parecia preso por dentro — como se a casa estivesse... segurando.

Ana começou a ouvir vozes.

Sussurros pelas paredes.

Pelas frestas do chão.

Pelo encanamento seco.

“O tempo chegou.

A carne deve responder.

Vocês estão escolhidos.”

Ela caiu de joelhos, segurando a cabeça.

— Faz parar! Faz parar!

Marcos correu até ela, desesperado. O som estava por todo lado. O coaxar se transformava em palavras. Palavras em línguas antigas, que não deviam existir. Palavras que pareciam vir da terra, do fundo do barro, de debaixo da casa.

Eles correram para o quarto. Fecharam a porta. Empurraram a cômoda.

Lá fora, os sapos começaram a entrar.

Pelas venezianas.

Pelo ralo do banheiro.

Pelas rachaduras do assoalho.

Escorrendo pelas paredes como lama viva.

Marcos pegou a faca de cozinha. Era tudo que tinha.

Ana estava no canto, cobrindo os ouvidos, os olhos arregalados.

— Vai passar — disse ele. — Só precisamos resistir. Só isso.

Mas ela já sabia que não era sobre resistir.

Era sobre aceitar.

Na parede do quarto, uma fenda apareceu.

Fina. Escorrendo sangue.

Depois abriu-se, como se a casa estivesse parindo algo.

Dali saiu o primeiro deles.

Não era sapo.

Era... algo que usava a forma de um sapo.

Tinha pele e olhos e bocas demais. Saltava e se arrastava, como se tivesse nascido da fome de algo maior.

E quando abriu a boca, Ana ouviu a voz de Dona Zefa.

“É assim que se preserva.

Com sangue, com silêncio.

Com entrega."

O tempo dentro da casa não seguia mais as regras da Terra.

Ana não sabia há quantas horas estavam ali. Os sapos — ou as coisas que fingiam ser sapos — agora não rastejavam mais: caminhavam. De pé. Em duas pernas. Com mãos pequenas demais, cheias de unhas.

Alguns usavam pedaços de pele humana como manto.

Marcos estava no chão. Respirava, mas não falava mais. Os olhos parados, como os dos animais mortos que o avô de Ana pendurava atrás da casa.

Ela tentava não pensar. Apenas ouvia o som da chuva vermelha do lado de fora. Agora, também caía dentro da casa.

Gotejava do teto como lágrimas.

Escorria pelas paredes.

Mergulhava o quarto inteiro em um vermelho espesso, quente, vivo.

As criaturas cercaram o casal. Não atacaram. Só observavam.

Foi então que ela percebeu: não estavam ali por ela.

Era ele.

Marcos.

Ele sussurrou algo.

— Ana... me desculpa. Eu sabia.

Ela congelou.

— O quê?

— Eu... soube. A imobiliária... me pagaram pra trazer alguém. Eu não sabia que seria assim. Achei que era só... uma superstição. Um ritual bobo. Me disseram que duraria pouco. Que seria indolor. Eu só... só queria o dinheiro.

Os olhos de Ana ardiam.

Chuva caía sobre ela. Dentro dela.

As criaturas se moviam. Lentamente.

Uma delas se aproximou de Marcos. Encostou a mão no peito dele.

Ele se contorceu.

Gritou.

Mas não saiu som.

E então, ele se desfez.

Não explodiu. Não foi rasgado. Apenas... desmanchou. Como se sua existência fosse devolvida em partículas, em sangue, em silêncio.

Ana gritou.

E a casa... parou de chover.

Na manhã seguinte, a vila estava em paz.

Crianças voltaram a brincar na praça.

O mercado reabriu.

Dona Zefa pendurou roupa no varal, assoviando.

Na casa da Cruz Torta, apenas Ana permanecia.

Sentada.

Encharcada.

Olhos vazios, fixos na porta.

Ninguém ousava entrar.

— Sobreviveu — disse um dos moradores, cochichando.

— E agora?

— Agora... a vila vai esperar de novo. Mas algo mudou.

No chão do quarto, onde antes estava Marcos, uma nova rachadura surgiu.

Fina.

Pulsante.

No meio dela, uma flor brotava.

Vermelha.

Carnuda.

O ciclo recomeçara.,

Branco

O quarto era simplesmente branco. Branco de um jeito agressivo, violento, como se tivesse sido pintado com a intenção específica de apagar qualquer pensamento que tentasse sobreviver ali dentro. O tipo de branco que não se encontra numa loja de tintas comum, mas talvez em uma clínica onde ninguém volta o mesmo.

As paredes, o teto, o chão — tudo revestido pela mesma superfície lisa e absurda, sem um único detalhe, uma única rachadura, sem sombra, sem textura. Um branco absoluto. Não era hospitalar. Era hostil. Um branco que parecia vibrar, como se estivesse à beira de emitir som.

Havia poucos móveis, igualmente brancos, que pareciam brotados do chão, ou moldados da mesma massa sólida que fazia o ambiente. Uma cama de solteiro sem cabeceira, uma cadeira de madeira — fria ao toque — e uma mesa pequena onde absolutamente nada repousava. Tudo meticulosamente colocado, como peças numa exposição cujo tema fosse "o nada".

O mais perturbador era a ausência total de marcas humanas. Nem um arranhão no chão. Nem um canto lascado na madeira. Nenhum vestígio de que alguém, algum dia, existiu ali. Exceto eu.

Acordei ali.

Não lembrava de como.

Só sei que abri os olhos, e o branco me engoliu como uma onda. Não houve aquele breve momento de desorientação normal — o cérebro pulando entre sonho e vigília — houve apenas o choque. Um soco visual. Era como se meus olhos não estivessem prontos para aquele mundo, como se tivessem nascido naquele instante, condenados a um único estímulo.

Levantar da cama foi como tentar se erguer de dentro de um torpor anestésico. Os músculos respondiam com lentidão, como se estivessem debaixo d’água. Senti a tontura quase imediatamente, um redemoinho suave, mas constante, que tornava cada tentativa de se orientar inútil. O chão parecia se mover embaixo de mim — ora se esticando, ora se encolhendo — como se respirasse.

Não havia som.

Nenhum.

Não o silêncio comum de uma madrugada calma, mas uma ausência de som que parecia premeditada. Uma construção. Como se o ambiente tivesse sido projetado para absorver tudo: minha respiração, o ranger do colchão, os passos descalços. Andar ali era como caminhar dentro do próprio crânio.

como um corredor que vai se estreitando.

O silêncio tinha peso.

E forma.

Ele se acumulava nos cantos do quarto — se é que havia cantos — e se adensava como poeira invisível, pressionando meus ombros e enchendo meu peito com uma ansiedade silenciosa, quase respeitosa. Como se estivesse esperando. Observando.

Respirei fundo.

Esperei ouvir minha própria respiração — o som mais íntimo, mais inegável, o som da vida dentro da gente.

Nada.

Era como tentar ouvir uma fita sem fita. Como um sussurro num vácuo.

O ar entrava e saía, mas não produzia ruído algum.

Ali, até o tempo parecia engolido. Não sabia dizer se eram cinco da manhã ou duas da tarde. A luz era constante, neutra, sem ângulo, sem sombra. Uma luz branca que parecia vir de todas as direções — ou de lugar nenhum.

Olhei para meus próprios braços. Estavam ali. Mas não havia cor neles. Como se minha pele fosse um reflexo da parede, da cadeira, do lençol. Meu corpo inteiro era um prolongamento daquele lugar.

...eu não gostava disso.

Tentei lembrar.

Qualquer coisa.

Um nome. Um rosto. Uma rua. Um som.

Mas a mente tropeçava em branco, como se as memórias fossem páginas arrancadas de um livro antes da impressão.

Era um vazio tão agudo que doía fisicamente. Quando tentei forçar, a dor se concentrou atrás dos olhos — uma pontada quente, como se um prego tivesse sido empurrado devagar através do globo ocular, lá atrás, no fundo da cabeça, onde ficam as lembranças de verdade.

Me sentei na cama. Coloquei as mãos no rosto.

Foi aí que percebi que estava suando.

O suor corria frio pelas costas. Entre os dedos. Dentro dos cotovelos.

Não pelo calor — ali era sempre a mesma temperatura — mas pela sensação.

De que algo estava prestes a acontecer.

Ou talvez... já estivesse acontecendo.

E eu seria o último a saber.

Ali não era um quarto comum.

Era como se o espaço não tivesse sido feito para um corpo humano.

Comecei a notar isso depois de um tempo — talvez horas, talvez dias. É difícil dizer. Na ausência de som, de sombra e de mudança, o tempo se dissolve. Mas minha mente começou a perceber pequenas... anomalias.

Os cantos do quarto não pareciam mais fixos.

Eles... oscilavam.

Não fisicamente, mas na percepção.

Eu olhava para a mesa e ela parecia mais próxima da cama. Olhava de novo, e estava mais longe. A cadeira se movia quando eu não olhava. Eu tinha certeza disso. Uma certeza instintiva, como a que sentimos ao saber que alguém está nos observando, mesmo de olhos fechados.

Comecei a andar em círculos, medindo os passos.

Dez passos até a parede.

Depois, doze.

Depois, sete.

Isso não fazia sentido.

Comecei a andar com os olhos fechados, tentando sentir o espaço com o corpo, com os pés. O chão parecia plano — mas ao mesmo tempo, em certas áreas, havia uma leve inclinação invisível, uma sensação de que eu estava sendo levemente puxado em determinada direção.

Como se o quarto respirasse.

Como se o chão tivesse pulso.

Tentei me acalmar. Sentei de novo na cama. Olhei ao redor.

A mesa. A cadeira. A cama. As paredes.

Tudo perfeitamente branco.

E então algo aconteceu.

Não uma mudança brusca. Mas um detalhe sutil demais para ser ignorado.

A mesa.

Ela agora estava virada para outra direção.

Eu não tinha tocado nela. Não lembro de ter tocado. Mas ela não estava onde devia estar.

Me aproximei. Toquei.

Fria. Imóvel.

Mas eu sabia. Ela havia se movido.

Deitei no chão. Tentei encostar o rosto. Ver se havia alguma diferença na textura.

Mas não havia chão — havia apenas branco.

E mesmo com o rosto colado ao solo, não ouvia minha própria respiração ecoar.

Era como se o quarto consumisse tudo o que eu emitia.

Voltei a me sentar na cama, dessa vez sem soltar o colchão.

A sensação crescia. Não de medo. Não ainda.

Era algo mais... ancestral.

Como se meu corpo estivesse se lembrando de um instinto que a mente não compreendia.

Algo dentro de mim dizia:

“Esse lugar não foi feito para você.

Esse lugar... é você.”

E aí, pela primeira vez, eu me perguntei:

será que eu realmente acordei aqui?

Ou será que... nunca saí?

Não havia ninguém ali.

Nunca houve.

E, aos poucos, comecei a entender que talvez o que me apavorava não era a ideia de estar preso com alguma coisa…

Mas de estar preso comigo mesmo.

Mais ainda:

Preso depois de mim mesmo.

Como se eu fosse um rascunho do que havia sido alguém.

Como se a mente, isolada demais, começasse a se apagar linha por linha, letra por letra, mas não tudo de uma vez — não. Ela apaga o que for mais urgente esquecer primeiro. Nome. Memória. Tempo. E depois, vai roendo o resto com calma.

Eu não estava sendo vigiado.

Eu estava sendo reconhecido por mim mesmo.

E não gostava do que via.

Acordei várias vezes — mesmo sem dormir.

Me vi deitado. Depois em pé.

Depois sentado na cadeira.

Depois andando em círculos.

Depois encarando a parede, como se houvesse algo escrito nela que só aparecia pra mim.

Mas não havia.

Nunca houve.

E ainda assim, continuei olhando.

Ficar muito tempo sozinho faz isso.

Mas ficar muito tempo em branco... faz outra coisa.

Você começa a pensar coisas que não são pensamentos.

Começa a ouvir ruídos que não são sons.

Começa a duvidar que existiu, de verdade, antes daquele quarto.

Você sente o cérebro... deslizar.

Não por falha.

Mas por excesso de silêncio.

Lá pela enésima hora — ou dia, ou século — comecei a conversar comigo.

Em voz alta.

Mesmo sem som.

Imitava vozes.

Inventava perguntas e respostas.

Repetia palavras sem sentido até elas parecerem outra língua.

“Branco. Branco. Branco. Branco. Brancobrancobrancobrancob...”

E de repente, era como se essa palavra nunca tivesse tido significado nenhum.

Fiquei tentando lembrar o nome de uma fruta. Qualquer fruta.

Apenas uma.

Não consegui.

E aí comecei a chorar.

Não por tristeza.

Mas por constatar que a mente, quando não é alimentada com mundo, come a si mesma.

E naquele lugar...

não havia nada para me alimentar.

Nem dor.

Nem toque.

Nem cor.

Só eu

.....dissolvendo aos poucos, como açúcar no chá.

A última coisa que lembro de ter sentido foi… ausência.

Nem dor. Nem paz. Nem medo.

Apenas aquela ausência que é mais forte que qualquer presença.

Mais forte que um grito.

Mais forte que Deus.

É o momento em que a mente para de tentar entender.

Para de buscar padrão.

Para de resistir.

E começa, simplesmente, a não ser.

Deitei na cama. Ou talvez estivesse de pé. Ou talvez não estivesse mais em forma alguma.

Meu corpo já não importava.

Ele era só… extensão do branco.

As palavras sumiram primeiro.

Depois os pensamentos.

E, por fim, o impulso de existir.

Foi aí que percebi — de forma tão clara que não precisava de voz ou razão — que eu não havia sido esquecido ali.

Eu havia sido apagado.

Não por alguém.

Mas por dentro.

Por mim.

Era como se minha mente tivesse finalmente alcançado o branco perfeito.

A pureza do nada.

A quietude absoluta onde nenhuma dor consegue entrar — porque não há mais onde ela se prender.

E no instante em que isso aconteceu...

Não houve luz.

Nem som.

Nem fim.

Apenas branco.

O Apartamento 303

Ninguém durava muito tempo no 303.

Para a maioria dos moradores do Edifício Monte Castelo, era apenas mais um número entre tantos, uma porta como outra qualquer em um dos blocos esquecidos do centro. Mas os antigos sabiam — e os novos, quando descobriam, já era tarde demais.

Lucas ignorou tudo. As histórias, os olhares desviados, o porteiro que gaguejou ao entregar as chaves. Era o tipo de cara que não acreditava em “baboseiras populares”, como dizia com aquele tom de desdém que aprendeu lendo Bukowski e ouvindo podcasts sobre niilismo.

Pagou seiscentos reais por um aluguel no centro da cidade, sem fiador e sem consulta ao nome sujo. Um achado. Uma bênção.

Ou um aviso ignorado.

O apartamento tinha cheiro de tinta fresca misturado a mofo de décadas. As paredes recém-pintadas não escondiam os vestígios da água que descia pelas frestas da estrutura. O chão de taco rangia como se guardasse memórias — memórias ruins.

Lucas se mudou numa terça-feira nublada, com duas malas, um colchão inflável e uma TV de 42 polegadas. Naquela noite, comeu pizza fria sentado no chão da sala vazia, bebendo cerveja quente direto da lata. Sentia-se livre. Finalmente longe da cidade pequena, da mãe controladora, da ex que dizia que ele "só fugia".

Mas naquela primeira noite, às 3h03, a TV ligou sozinha.

Sem som. Só imagem.

Um corredor escuro. Piso de mármore rachado. Uma porta vermelha no fim, trêmula como se estivesse pulsando. Diante dela, um homem — magro, nu, o rosto coberto de sangue seco. Os olhos abertos, vazios. O olhar... não era para a porta. Era direto para a câmera.

Direto para ele.

Lucas desligou. O controle caiu da mão, mas ele não percebeu. Deitou-se de novo. “Pegadinha do novo século. Deve ter algum sensor doido nessa merda.”

Na manhã seguinte, a vizinha do 304 bateu à sua porta. Era uma senhora de cabelos brancos desgrenhados, olhos inchados e batom borrado. Parecia que não dormia há dias.

— Você entrou lá... — disse, sem preâmbulos.

— Bom dia, dona...? — Ele abriu. Abriu a entrada de novo.

— Desculpa, a senhora tá bem? — Não abra o espelho. Ele vê.

Ela empurrou um pedaço de papel dobrado na mão de Lucas e saiu, arrastando os chinelos no corredor como se arrastasse também os ossos.

Lucas olhou o bilhete. Uma única palavra escrita à mão, com letras trêmulas:

“Lembre-se.”

Ele guardou o bilhete por impulso.

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Lucas acordou às 3h03.

Sem alarme. Sem barulho. Apenas aquele despertar repentino, como se algo o tivesse puxado das profundezas de um pesadelo que ele já não conseguia lembrar.

A TV estava ligada de novo.

Mas agora havia som. Um sussurro, baixo, constante, como se uma centena de pessoas murmurassem orações esquecidas por trás de uma parede fina. A imagem era a mesma: o corredor escuro, a porta vermelha. O homem nu ainda estava ali, mas agora batia com a cabeça contra a porta. Lentamente. Ritmado. Cada batida fazia o vídeo vibrar, como se a câmera sofresse com o impacto.

Lucas desligou a TV.

O controle estava no chão, do outro lado da sala. Ele não lembrava de ter deixado ali. Mas a cabeça latejava demais para questionar.

Foi até o banheiro, querendo lavar o rosto e esquecer a madrugada como se fosse um filme ruim. A luz trêmula do teto parecia mais fraca, e o espelho embaçado exibia a própria imagem distorcida. Mas não havia vapor. Não havia banho.

Ele passou a mão para limpar. E viu.

No reflexo, ele não estava sozinho.

Atrás de si, parado junto à porta do banheiro, um vulto — escuro, como fumaça, mas com algo vagamente humano em sua forma. Os olhos eram dois buracos vermelhos, fundos, pulsando.

O reflexo sorriu.

Lucas se virou num rompante, mas o banheiro estava vazio.

Voltou o olhar para o espelho.

Nada. Apenas ele.

Mas agora... ele estava suando frio.

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Durante o dia, tentou convencer a si mesmo de que estava apenas cansado. Mudanças de cidade, pressão do novo emprego que começaria dali a uma semana, aquela paranoia de sempre que vinha junto com a solidão.

Mas o 303 não deixava esquecer.

A geladeira, que ele jurava estar desligada, começou a fazer um som agudo, como uma sirene abafada. Às vezes, Lucas tinha certeza de que ouvia passos no corredor... dentro do apartamento. Pequenos estalos na madeira, como pés descalços andando devagar.

À noite, as batidas começaram. Três toques secos. Sempre às 3h03.

Na parede.

No chão.

E no espelho.

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Cansado, Lucas buscou o bilhete da velha do 304. Releu a palavra “Lembre-se” como quem procura um feitiço de proteção. Havia algo naquele papel que o incomodava. A textura era mais grossa, quase áspera. E, ao segurar contra a luz, ele notou uma mancha — algo escrito por baixo, apagado ou encoberto.

Raspou levemente com a unha.

“303 é uma repetição.”

O quê?

Ele vasculhou a internet. Não encontrou nada relevante. Apenas fóruns obscuros com histórias mal contadas sobre apartamentos onde o tempo se dobrava, onde pessoas desapareciam e reapareciam sem memória. Uma postagem, em particular, o fez congelar:

“Se você está no 303, cuidado com os espelhos. Eles não mostram você. Eles mostram quem te quer de volta.”

Lucas tentou sair do apartamento naquela noite. Deu duas voltas na chave, pegou as mochilas.

Mas a porta não abria.

A maçaneta girava em falso, como se fosse parte de um cenário. O olho mágico mostrava o corredor, sim — mas em preto e branco, e vazio demais. Sem som. Sem luz.

Sem saída.

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A primeira vez aconteceu às 2h17 da manhã. Lucas acordou com sede e foi até a cozinha. Acendeu a luz. Serviu-se de água. Voltou para o colchão. Cochilou.

Acordou de novo às 2h17.

Exatamente.

Olhou o celular. Pensou estar bugado. Reiniciou. O relógio voltou: 2h17.

Olhou pela janela. A rua estava escura como breu. O poste à frente do prédio, que piscava durante o dia, estava agora completamente apagado. Mas havia luz vinda de algum lugar. Uma luz fria, branca, que parecia escorrer das paredes do apartamento.

Olhou para o corredor do 303.

O corredor estava mais comprido.

Não havia portas, nem luzes. Apenas um vazio retorcido se estendendo além da geometria real do imóvel. Um eco gelado se arrastava pelo chão de madeira. Não era som. Era como se o próprio ar deslizasse ali, úmido e sibilante.

Lucas recuou.

Olhou o celular.

2h17.

E quando olhou de novo para o corredor... ele já não estava ali.

A planta original do apartamento tinha voltado.

Ele tocou o batente da porta. Estava quente. Como se tivesse sido dobrado, esticado... e recém-recolocado no lugar.

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Na noite seguinte, colocou o celular para gravar áudio. Deixou em cima da mesa, junto ao bilhete da vizinha. Dormiu com a TV desligada, trancado no quarto, a luz do banheiro acesa.

Acordou com dor no pescoço. E arranhões no braço esquerdo.

Nada sério. Mas profundos o suficiente para sangrar.

Correu até o celular. Parou a gravação. Ao reproduzir, o áudio estava normal... até 3h03.

Um estalo. Um som de vento. E depois, uma voz rouca, mas familiar:

“Você não devia ter lembrado. O 303 só existe porque você existe.”

Ele pausou.

Recuou até o canto da sala. Tremia. Não de medo — mas de um reconhecimento sinistro.

Aquilo era a sua voz.

Gravada. Falando com ele mesmo.

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Na tarde seguinte, tentou sair de novo.

Abriu a porta com força. Corredor vazio. Luzes apagadas.

Desceu as escadas correndo, três andares. A cada lance, as luzes piscavam.

Ao chegar no térreo, as portas de entrada... não existiam mais.

Em seu lugar, um espelho. Enorme. Atravessando toda a parede.

E nele, o reflexo mostrava o hall vazio. Mas sem ele.

Lucas não estava lá.

O espelho devolvia um mundo onde ele não existia.

Onde talvez nunca tivesse existido.

Ele subiu correndo, tropeçando nos próprios pés.

Ao entrar no 303, a porta se fechou sozinha atrás dele.

Não bateu. Não trancou.

Sumiu.

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Lucas passou as próximas horas sentado na sala, sem coragem de piscar por muito tempo. O apartamento estava mudo, parado — como se estivesse esperando ele se mexer.

Ele não dormiu. Não comeu. Não bebeu.

Porque no fundo, ele sabia.

Estava sendo observado.

Às 3h03, a luz do teto piscou uma vez. Só uma.

E então veio o cheiro.

Não de mofo. Nem de coisa podre.

Era um cheiro quente, metálico, como sangue novo misturado com ferro oxidado. Era o cheiro de um lugar onde algo foi morto… e o que sobrou se recusou a ir embora.

Lucas se levantou devagar, como se qualquer movimento mais brusco pudesse acordar algo.

O espelho do banheiro estava sujo.

Mas não por fora.

Por dentro.

Como se algo do outro lado tivesse encostado a mão suja e deixado um rastro. Havia marcas de dedos. Longos. Quase... garras.

Ele se aproximou.

E então viu.

Um rosto.

Não o seu.

Não uma distorção.

Mas um rosto parado no fundo do espelho, olhando-o com olhos tão fundos e pretos que pareciam sugar tudo ao redor. A boca era grande demais. O nariz, desprovido de forma. A pele... lisa como vidro, sem poros, sem humanidade.

E então, abriu a boca.

Do outro lado do espelho.

Não saiu som.

Mas o abajur estourou.

As luzes apagaram.

Lucas tropeçou para trás. Bateu a cabeça na parede. O mundo girou.

E por um momento, ele viu o 303 como ele realmente era.

Não havia paredes.

Não havia teto.

Apenas um espaço oco e escuro, com dezenas de olhos flutuando no ar, todos voltados para ele. As janelas tremiam. O chão pulsava como carne. O ar estava mais quente — como a respiração de algo muito grande… e muito perto.

Ele tentou gritar.

Mas o som não saía.

E então, tudo voltou.

A sala.

A luz.

O silêncio.

O espelho estava limpo.

Mas no chão, em letras tremidas de água vermelha, havia uma frase:

ELE MORA AQUI.

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Lucas começou a contar os dias.

Mas isso não importava.

Porque o tempo no 303 não respeitava calendários.

Às vezes, ele acordava e o leite na geladeira estava coalhado. Outras, as plantas que ele esqueceu de regar estavam verdejantes e abertas, como se tivessem acabado de ser colocadas ali. Seu celular mostrava a mesma data há cinco dias. Depois, pulava três semanas.

Mas isso não era o pior.

O pior era o espelho que surgira no quarto.

Ele nunca esteve ali antes.

Simples, oval, pendurado acima da cama como uma sentença.

Ele o cobriu com um lençol. Mas toda manhã, o lençol caía.

E o reflexo mostrava Lucas... dormindo.

Mesmo quando ele estava acordado.

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Aos poucos, ele parou de lutar.

Dormia por exaustão, com luzes acesas.

Não comia mais. O estômago não sentia fome, mas o corpo enfraquecia.

A pele ficou acinzentada. Os olhos fundos.

Ele já não lembrava seu sobrenome. Não sabia de onde viera.

E o mais assustador… já não sabia se queria sair.

O 303 começou a falar com ele.

Nas paredes, nas rachaduras do teto, nas pausas entre os zumbidos dos fios elétricos.

Sussurros como o som do vento num necrotério. Vozes de quem foi esquecido.

“Você é lar agora.”

“Fique. Preencha o vazio.”

“Ele precisa de você inteiro.”

Ele tentou quebrar o espelho. Usou um martelo. Um pedaço de ferro.

Mas a superfície absorveu os golpes, como se fosse líquido.

E, por um segundo, a mão dele quase entrou.

E do outro lado… algo tentou puxar.

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Na última noite, Lucas se sentou na sala.

Respirou fundo.

Olhou para a porta.

Ela estava aberta.

Pela primeira vez.

O corredor à frente estava vazio, iluminado pela luz fraca de emergência.

Ele se levantou. Caminhou. Cada passo ecoava como um adeus.

Chegou à soleira. Parou.

Olhou para fora. Depois para dentro.

E o 303 falou pela última vez:

“Você já está aqui. Sempre esteve.”

Lucas virou-se para correr.

Mas não havia mais corredor.

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