Cap 1 - O Começo
Na Coreia do Sul, dizem que, entre cada dez adolescentes, apenas três conseguem alcançar uma vida que vale ser chamada de bem-sucedida. Os outros? Ninguém fala muito sobre eles.
Mas eu falo.
Porque eu sou um deles.
Me chamo Kyum-Ju, e, desde cedo, me tornei uma estatística. Um nome perdido entre diagnósticos, expectativas frustradas e noites mal dormidas. Mas antes que você ache que essa é só mais uma história triste, deixa eu te contar como tudo realmente começou.
Voltemos dezoito anos no tempo. Era 12 de outubro de 2006, uma noite fria em Seul. Na Maternidade Central SECR, os corredores ferviam de pressa e tensão. Minha mãe, Mong-Ju, lutava com todas as forças para me trazer ao mundo. Mas eu parecia teimoso desde o útero — e quase decidi não vir.
O médico responsável, Dr. Chain-sung, tentava manter a calma, mas seus olhos entregavam o medo.
— Não temos muito tempo... o bebê pode morrer ainda na barriga! — disse ele, olhando os monitores com uma intensidade afiada.
Minha mãe chorava, sufocada por dores e desespero.
— Por favor, doutor… não deixa meu bebê morrer!
Mas o doutor era firme, quase frio.
— Calma. Não fique nervosa… nós vamos trazê-lo com vida.
E trouxeram. Eu vim ao mundo entre gritos, suor e lágrimas. Não foi um nascimento bonito — foi uma batalha. E como todo guerreiro que sobrevive, fui marcado por isso.
Minha mãe me olhou pela primeira vez e sussurrou um nome com ternura nos olhos: Kyum-Ju — "tesouro precioso". Ela dizia que, mesmo em meio ao caos, eu era o presente que a vida tinha lhe dado. E talvez eu fosse, por um tempo.
Ela havia tido um caso com um homem chamado Juong. Um cara honesto, trabalhador, mas instável como o vento. Um dia, ele simplesmente… sumiu. Pegou um voo para o Brasil e nunca mais olhou pra trás.
Ele deixou minha mãe sozinha. E eu, sem saber, herdei essa ausência.
Capítulo 2 – A dor que não se esquece
Minha infância não foi como nos filmes. Nada de risadas no quintal, tardes ensolaradas ou bolo de aniversário com amigos. Cresci num apartamento minúsculo, com paredes finas e silêncios pesados. Minha mãe, Mong-Ju, fazia de tudo pra me dar uma vida digna, mas ela mesma já estava quebrada por dentro.
Ela trabalhava em dois empregos e ainda fazia bicos à noite. Quando eu acordava de madrugada com medo, era comum não encontrá-la. Só o som distante da TV ligada e o vento batendo nas janelas.
Mas mesmo com a ausência dela, ela era tudo pra mim. Meu mundo. Meu abrigo.
Até que, um dia… o mundo desabou.
Era uma sexta-feira. Lembro até hoje do cheiro do arroz queimado na panela, do som da chuva batendo forte no telhado. Eu tinha oito anos. Estava desenhando um robô numa folha amassada, esperando minha mãe chegar.
Mas ela não chegou.
Horas se passaram. O relógio marcava meia-noite. Depois, duas da manhã. Eu fiquei na janela, olhos colados na rua escura, até que um carro da polícia parou na frente do prédio.
Dois oficiais subiram. Bateram na porta. E eu… eu sabia. Algo dentro de mim já gritava.
— Você é Kyum-Ju? — perguntou um dos homens, com a voz baixa demais pra tanta dor.
Só consegui balançar a cabeça.
— Sinto muito… sua mãe sofreu um acidente de ônibus. Ela… ela não resistiu.
Naquele momento, o mundo parou. O chão sumiu. Tudo virou um som abafado, como se eu estivesse debaixo d’água.
Minha mãe estava morta.
O “tesouro precioso” que ela havia trazido ao mundo agora estava sozinho.
Capítulo 3 – Longe de Casa
Depois que minha mãe morreu, passei alguns dias numa casa de acolhimento. O quarto cheirava a desinfetante, e as paredes eram tão brancas que doíam os olhos. Eu não falava com ninguém. Só desenhava. Sempre os mesmos traços — uma mulher com os olhos cansados e um sorriso triste. Era a única forma de mantê-la viva.
Até que, numa manhã nublada, uma assistente social me chamou na sala dela.
— Kyum-Ju, encontramos um parente seu. Ele mora fora da Coreia, mas aceitou te receber. É seu tio, Pook-Ju.
Pook-Ju. Um nome que eu nunca tinha escutado. Minha mãe nunca falava da família. Agora, de repente, eu tinha um tio. E ele morava no exterior.
Sem muita escolha, fui colocado num avião com um passaporte provisório e uma mochila com meia dúzia de roupas. O destino? Um país frio, estranho, com um idioma que soava como música quebrada: Canadá.
Pook-Ju me esperava no aeroporto, com uma placa escrita "Kyum" — com o "J" faltando. Estava com um boné velho, uma jaqueta de couro rasgada e os olhos vermelhos, como se tivesse chorado ou… bebido.
Na verdade, era as duas coisas.
— E aí, garoto — ele disse, com a voz rouca. — Bem-vindo ao inferno gelado.
Não era exatamente o abraço caloroso que eu sonhei. Mas de alguma forma… parecia sincero.
O apartamento dele ficava num bairro afastado de Montreal. Era apertado, bagunçado, cheio de garrafas vazias e cinzeiros lotados. Mas tinha uma coisa que me pegou de surpresa: numa parede, havia uma foto da minha mãe. Jovem, sorridente. Ao lado dela, ele — Pook-Ju, mais novo, com os mesmos olhos que eu.
— Eu e sua mãe… éramos muito próximos — ele disse, quase sussurrando. — Mas eu estraguei tudo. Como sempre.
Naquela noite, dormi no sofá enquanto ele bebia e falava sozinho na varanda. Mesmo longe de casa, cercado de estranheza, senti um calor no peito. Como se talvez… só talvez… eu ainda tivesse uma chance de recomeçar.
Mesmo que fosse ao lado de um homem quebrado.
Capítulo 4 – A Casa que Não Era Lar
A casa do Pook-Ju tinha cheiro de cigarro velho, mofo e solidão. As paredes estavam descascando, a janela da sala vivia trincada, e o aquecedor só funcionava quando queria — ou seja, quase nunca. No banheiro, os azulejos eram manchados de ferrugem e a pia fazia um som estranho, como se tossisse.
Era como se a casa sentisse dor. Como se estivesse pedindo socorro, igual a mim.
Os dias começaram a passar lentos, repetitivos, sufocantes. Pook-Ju saía de manhã bem cedo, trabalhava num bar de quinta como segurança e voltava à noite com cheiro de álcool, olhos caídos e um saco de fast food que ele jogava na mesa e dizia:
— Se vira, moleque.
E eu me virava. Esquentava o que dava, comia frio o que sobrava. Lavava minhas próprias roupas na mão porque a máquina fazia um barulho esquisito que ele dizia ser "o demônio tentando sair".
A gente quase não se falava. Quando falava, era ruim.
— Você não ajuda em nada nessa casa! — ele gritava do nada, sem motivo.
— Eu só tenho 8 anos… — eu tentava dizer, com a voz baixa.
— E eu? Eu tive que virar homem com 12! Engole o choro e vai limpar essa porcaria de chão!
Ele nunca encostou a mão em mim — pelo menos, não nos primeiros dias. Mas os gritos batiam tão forte quanto tapas.
As paredes eram finas, mas ninguém parecia ouvir. Ou se ouviam, fingiam que não. Era como se eu tivesse sido jogado fora do mundo, pra viver ali, naquele lugar onde o tempo só passava pra piorar as coisas.
Às vezes ele chorava. De madrugada, eu escutava. Murmurava o nome da minha mãe. Dizia que sentia falta dela, que tudo era culpa dele. Outras vezes, falava comigo como se fosse com ela.
— Você também me abandonou, Mong-Ju… me deixou sozinho com ele.
Eu ficava quieto. Esperando. Contando os dias. Torcendo pra que aquilo mudasse. Mas a verdade é que aquela casa não era um lar. Era só um buraco com um telhado em cima.
E eu estava afundando.
Era uma quinta-feira gelada quando tudo estourou.
Pook-Ju chegou mais tarde do que o normal. A barba por fazer, os olhos vermelhos como sempre — mas dessa vez, havia algo mais. Um silêncio perigoso. O tipo de silêncio que vinha antes de um grito ou de uma tempestade.
Eu estava na cozinha, tentando preparar um miojo. O cheiro do tempero artificial era o mais próximo de conforto que eu tinha. Mas bastou o barulho da panela no fogão pra ele explodir.
— Já falei pra não mexer nesse fogão! Vai botar fogo nessa porcaria de casa!
— Eu só… tô com fome.
— Fome? Sabe o que é fome de verdade? Já comeu lixo? Já passou três dias comendo migalha de pão duro?
Ele veio pra cima de mim, tropeçando nos próprios passos. A mão levantada, mas parou no meio do caminho. Ficou ali, tremendo, encarando minha cara assustada.
— Você me olha como se eu fosse um monstro — ele disse, com a voz falhando. — Igual a sua mãe.
E foi aí que eu falei. Pela primeira vez, sem medo.
— Talvez seja porque você é.
O silêncio voltou, mais pesado. Ele abaixou a mão, deu um passo pra trás e me olhou como se eu tivesse lhe enfiado uma faca no peito.
— Sai da minha frente — ele disse, baixo, frio.
Naquela noite, eu dormi com as roupas de frio, deitado no tapete da sala. O sofá tava molhado de vômito. E mesmo com tudo aquilo, com o estômago vazio e o corpo doendo, eu não chorei.
Porque pela primeira vez, eu não me sentia só uma vítima. Eu era um sobrevivente.
E talvez… talvez isso quisesse dizer alguma coisa.
No dia seguinte, Pook-Ju não disse uma palavra.
Saiu cedo, como sempre, e deixou a porta batendo atrás dele. Nenhuma bronca, nenhum saco de fast food jogado na mesa. O apartamento estava em silêncio, e pela primeira vez… isso não foi um alívio. Foi estranho. Um silêncio que ecoava, como se o próprio ar tivesse medo de fazer barulho.
Passei o dia inteiro sem sair do lugar. Sentado perto da janela trincada, olhando a neve cair. As pessoas lá fora andavam rápido, encolhidas, cada uma carregando seu mundo nos ombros. E eu ali, preso dentro do meu.
Comecei a desenhar. Como antes. Como na casa de acolhimento. Mas, dessa vez, não desenhei minha mãe.
Desenhei ele.
Pook-Ju, sentado na varanda, com um copo na mão e os olhos perdidos. Tentei desenhar o cansaço, a raiva, a solidão. E quando terminei, percebi: ele também estava afundando. Só que diferente de mim, ele não tentava mais sair.
Naquela noite, ele voltou tarde — mas estava sóbrio. Os olhos inchados, o boné na mão.
— O aquecedor quebrou de vez — disse, como se fosse a coisa mais importante do mundo. — Tá frio, né?
Assenti com a cabeça. Ele olhou pro desenho em cima da mesa, mas não comentou nada. Só ficou ali, parado, por alguns segundos.
— Você me odeia?
A pergunta me pegou de surpresa. Não era uma pergunta que adultos faziam. Era uma pergunta de criança.
— Eu… não sei — respondi.
Ele respirou fundo, como quem queria dizer mil coisas, mas não sabia por onde começar. Então, só disse:
— Amanhã eu vou ver se arrumo esse aquecedor.
Depois foi pro quarto, e eu fiquei ali. Sentado. O desenho entre nós, como um espelho torto.
Naquela noite, dormi de novo no chão. Mas algo estava diferente. Não era perdão. Não era amor. Era só… um começo.
Talvez.
Para mais, baixe o APP de MangaToon!