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Renascido do Crepúsculo:Livro 2: Fragmentos do Infinito

Capítulo 1 — Ecos no Véu

O silêncio reinava entre as árvores ancestrais do Bosque de Ilaren, quebrado apenas pelo sussurro do vento e o leve ranger dos galhos altos. Arthur Dias avançava com passos firmes, mas atentos. Seus olhos varriam o caminho à frente como os de um soldado calejado, embora ainda conservassem a curiosidade inquieta de alguém que jamais pertenceria inteiramente àquele mundo.

Etheria mudara desde que ele restaurara os três Códices do Tempo. O céu parecia mais claro, os rios mais plenos. Ainda assim, havia algo no ar — algo que não pertencia ali.

Ele parou diante de uma pedra coberta por musgo, parcialmente enterrada no solo. Sobre ela, símbolos antigos reluziam fracamente sob a luz filtrada do sol. Quando estendeu a mão para tocá-los, um arrepio percorreu sua espinha.

— Você sente também, não é? — A voz veio atrás dele, serena e firme.

Arthur se virou devagar. Elyra emergia entre as árvores, tão silenciosa quanto a névoa matinal que a envolvia. Os cabelos prateados caíam como uma cortina viva sobre os ombros, e os olhos verdes pareciam brilhar com uma sabedoria dolorosa.

— Não sou só eu — disse Arthur, afastando-se da pedra. — O Véu está... diferente. Os caminhos não fluem como antes.

Elyra assentiu. — Há rachaduras, Arthur. Cicatrizes invisíveis no tecido do tempo. Surgiram depois que os Códices foram selados.

Ela tirou algo de dentro da túnica: um pergaminho envelhecido, bordado com fios de prata. Arthur pegou-o com cuidado. Os símbolos desenhados ali eram familiares e ao mesmo tempo estranhos. Uma escrita antiga, quase viva. As letras pulsavam.

— Isso apareceu no Santuário de Auralis — ela explicou. — Ninguém sabe como. Nem mesmo os Sábios.

Arthur franziu a testa. O pergaminho parecia emitir um som fraco, como um sussurro em uma língua esquecida.

“Quando o infinito for tocado, o tempo esquecerá seu nome.”

Ele repetiu as palavras em voz alta. Elas ecoaram como uma profecia sussurrada pelo próprio mundo.

— O que isso quer dizer? — ele perguntou, mais para si do que para Elyra.

— Não sei — disse ela. — Mas os Guardiões Velhos estão inquietos. Algo está se movendo sob Etheria. Algo antigo. Algo que vocês não derrotaram. Só adormeceram.

Arthur olhou para o céu, onde uma fina rachadura — imperceptível a olhos comuns — cintilava por breves instantes antes de desaparecer.

— Está começando de novo.

O Templo dos Guardiões se erguia no alto da Montanha de Lys, esculpido na rocha viva. Ao chegar, Arthur foi conduzido pelos corredores silenciosos até o Círculo de Mármore, onde os Guardiões mais antigos se reuniam. Todos estavam presentes: Kael, de olhos cerrados como se escutasse além do som; Maelir, o mestre dos selos temporais; Soryn, guardiã da Biblioteca Sombria. E no centro, um pedestal vazio. Esperando.

Arthur colocou o pergaminho sobre o pedestal. Ele se abriu sozinho, como se soubesse o momento certo de revelar seus segredos.

Kael se aproximou e leu em silêncio. Quando terminou, sua expressão era de um temor contido.

— Há muito tempo — começou ele — falava-se de um quarto códice. Um que não estava preso ao tempo, mas ao conceito de existência. Uma anomalia. Um erro.

Arthur sentiu o ar rarefeito. — Um quarto códice?

Kael assentiu. — Os Três Códices do Tempo foram criados para estabilizar Etheria, para controlar o fluxo das eras. Mas houve um... experimento anterior. Um artefato incompleto. Abandonado. Fragmentado.

— E agora ele está voltando? — Elyra perguntou, séria.

— Fragmentos do Infinito — disse Soryn, com um toque de reverência sombria. — Ecos de uma realidade que tentou existir antes da atual.

Arthur sentiu o estômago revirar. — Isso significa que o que restauramos... não foi o fim?

Kael ergueu os olhos. — Foi apenas o reinício. Mas o infinito não esquece. Ele aguarda. E agora ele sussurra de novo.

Naquela noite, Arthur não conseguiu dormir. Sentado na sacada de seus aposentos no templo, observava as constelações familiares. Uma delas — a Estrela Gêmea de Arthen — pulsava com um brilho que ele não lembrava ter visto antes. Como se quisesse chamar sua atenção.

Os pensamentos se acumulavam como tempestades dentro de sua mente. Se havia um quarto códice, onde estaria? E o que aconteceria se alguém o reunisse?

Ele ergueu o fragmento de pergaminho. As letras dançavam levemente, como se reagissem à sua presença.

“Fragmentos do Infinito...”

Ele repetiu as palavras e, por um momento, sentiu algo se mover dentro de si. Uma lembrança que não lhe pertencia. Uma voz. Um campo de batalha em chamas. Um nome que ele não conhecia, mas que parecia familiar.

— Arthur.

A voz ecoou em sua mente como um trovão calmo. Ele se virou de repente. Mas estava sozinho.

Ou não?

No dia seguinte, Kael entregou-lhe uma relíquia antiga: um colar de obsidiana negra com um cristal âmbar no centro.

— Foi usado por Guardiões antes de ti, quando enfrentaram aquilo que não podia ser nomeado. Vai te proteger... até certo ponto.

Arthur o colocou no pescoço. O cristal pareceu pulsar com sua própria energia.

— Para onde eu começo?

— Os ventos trazem sussurros das Montanhas Vazias. O tempo lá está... instável.

— Então é lá que vou.

Elyra colocou a mão no ombro dele. — Não vá sozinho. Esses fragmentos não são apenas objetos. Eles mexem com o que somos. Memórias. Realidades. Verdades distorcidas.

— É algo que preciso fazer — ele respondeu. — Mas prometo: voltarei.

Ela sorriu, triste. — Guarde suas promessas, Arthur. O tempo cobra caro por elas.

A jornada até as Montanhas Vazias levou três dias a cavalo. Arthur enfrentou tempestades repentinas, miragens temporais e, por duas vezes, ouviu seu próprio nome sendo chamado pelo vento — por vozes diferentes. Uma delas era sua. A outra... não sabia.

No quarto dia, chegou a uma clareira coberta por névoa cinzenta. No centro, uma árvore morta com galhos retorcidos, e, abaixo dela, uma fenda no chão — larga o bastante para alguém passar rastejando.

Arthur desceu sem hesitar.

Dentro da caverna, o ar era denso. As paredes pulsavam levemente, como se o lugar estivesse vivo. Ao fundo, algo brilhava com luz pálida. Ele avançou com cautela até encontrar uma pequena estrutura de pedra: um pedestal quebrado com um fragmento flutuando acima dele.

Era como vidro estilhaçado, girando devagar. Quando Arthur estendeu a mão, o fragmento se lançou até sua palma.

Instantaneamente, tudo à sua volta desapareceu.

Ele estava em outro lugar.

O céu era vermelho, e o chão queimava com brasas adormecidas. Um campo de batalha se estendia até onde os olhos podiam ver. Corpos — humanos e criaturas que ele não reconhecia — jaziam por toda parte.

Arthur estava de pé, espada na mão, ensanguentado. Mas não era o Arthur que conhecia.

— Você prometeu voltar — disse uma menina, ajoelhada diante dele, com lágrimas nos olhos. — Você disse que salvaria todos.

O outro Arthur olhou para ela, silencioso. Então se virou e partiu, deixando-a sozinha.

O Arthur verdadeiro gritou, tentando alcançá-la. Mas a visão desapareceu.

Ele voltou à caverna, ofegante. O fragmento agora estava frio em sua mão.

E junto com ele, vieram as palavras:

“Toda verdade esquecida deseja ser lembrada.”

Arthur guardou o fragmento no bolso interno da túnica. Seu coração batia rápido, não pelo esforço físico, mas pela emoção. O que quer que fossem esses fragmentos... não eram apenas pedaços de um artefato antigo. Eram janelas para possibilidades. Para erros. Para decisões não tomadas.

E ele as estava abrindo.

Ao retornar à superfície, o céu escurecia. As estrelas surgiam pouco a pouco, e entre elas, Arthur notou algo novo: uma linha tênue de luz cortando o firmamento, como uma cicatriz.

De volta ao templo, Kael e Elyra o esperavam.

— Um dos fragmentos — ele disse. — Já o encontrei.

Kael fechou os olhos. — Então o ciclo começou.

— Tive uma visão. De mim mesmo. Mas era diferente. Eu... abandonei alguém.

Elyra franziu a testa. — São realidades esquecidas. Possibilidades que o tempo rejeitou. Mas agora elas querem ser lembradas.

— E se alguém reunir todos? — perguntou Arthur.

Kael olhou fundo em seus olhos. — Então o Infinito despertará. E tudo o que conhecemos poderá ser reescrito.

Arthur fechou os olhos por um momento. A responsabilidade pesava como nunca antes. Mas ele já fizera escolhas difíceis. E faria de novo.

— Então temos que impedi-lo. Se esses fragmentos estão voltando, preciso encontrá-los antes de mais alguém.

Elyra assentiu. — Não estará sozinho.

Kael pousou a mão sobre o ombro dele. — Vá com sabedoria. E não se perca nas possibilidades. O verdadeiro perigo... é esquecer quem você realmente é.

Arthur assentiu. Então se virou para a estrada, com o fragmento em seu peito, o colar pulsando em seu pescoço, e a dúvida crescente de quantas versões suas existiam... e qual delas sobreviveria até o fim.

Capítulo 2 — As Sombras de Si Mesmo

Os corredores do Templo dos Guardiões estavam silenciosos quando Arthur acordou, no meio da madrugada. O fragmento que recuperara das Montanhas Vazias pulsava com uma leve luminescência dentro de sua bolsa de couro, como se estivesse inquieto. Ele se vestiu em silêncio e saiu de seus aposentos, guiado por uma sensação que não sabia nomear — uma mistura de urgência e presságio.

Ao atravessar o Salão dos Ecos, uma figura emergiu das sombras. Era Soryn, envolta em suas vestes negras com bordados prateados que pareciam se mover por conta própria.

— Está indo a algum lugar? — sua voz soou mais como uma afirmação do que uma pergunta.

Arthur hesitou. — Preciso entender o que esse fragmento me mostrou.

Ela se aproximou com passos leves. — Os fragmentos não mostram. Eles despertam. Revelam ecos. Verdades veladas pelo tempo.

— Mas eram lembranças que não são minhas. — Arthur franziu o cenho. — Ou talvez sejam.

Soryn inclinou levemente a cabeça. — Você não é o único Arthur Dias que Etheria conheceu.

As palavras o atingiram como um golpe seco.

— O que isso quer dizer?

— Fragmentos do Infinito são pedaços de possibilidades. Realidades que nunca chegaram a se concretizar, mas que existiram, mesmo que por um instante. Ao tocá-los, você não vê apenas o que poderia ter sido. Você sente. Você vive.

Arthur sentiu um frio subir pela coluna. — Então essas visões... não são apenas ilusões?

— São caminhos que você poderia ter trilhado. E alguns deles ainda podem tentar te puxar de volta.

Ela estendeu uma pequena caixa de ferro, ornamentada com runas antigas.

— Guarde o fragmento aqui. O tempo ao redor dele será suspenso. Mas saiba que cada novo fragmento trará mais... de você.

Arthur guardou o fragmento na caixa e sentiu o silêncio ao seu redor pesar. Era como se o mundo tivesse prendido a respiração por um segundo.

Na manhã seguinte, Kael reuniu o Círculo.

— As visões de Arthur confirmam as suspeitas — disse, encarando cada um dos Guardiões. — Os Fragmentos do Infinito contêm ecos de outras Etherias. E alguém, em algum lugar, está tentando reuni-los.

— Mas por quê? — perguntou Elyra. — Qual o propósito de trazer de volta possibilidades rejeitadas?

— Porque o Infinito não tem começo nem fim — respondeu Maelir. — Ele é a lembrança de tudo o que não foi. E há aqueles que acreditam que possam moldar o presente com base nessas memórias.

Arthur se levantou. — E se conseguirem?

Silêncio.

Kael finalmente falou. — A realidade será reescrita. Todos nós seremos apenas sombras de um passado que nunca existiu.

Foi então que Elyra revelou algo inesperado.

— Antes de você retornar com o primeiro fragmento, encontrei rastros de magia temporal corrompida nos arredores da Floresta das Névoas. Sinais de que alguém cruzou as barreiras entre realidades... vindo de fora.

— De fora? — Arthur perguntou.

— Outra Etheria — ela respondeu, com pesar. — Ou talvez outra versão da nossa.

O silêncio foi absoluto.

Soryn quebrou-o com sua voz suave. — O que quer que esteja acontecendo... não é apenas uma caça por fragmentos. É uma invasão. Uma tentativa de substituição.

Arthur cerrou os punhos. — Então precisamos nos mover. Não posso ficar esperando os fragmentos virem até mim.

— Há relatos de um artefato instável surgido nas Ruínas de Tharion — disse Maelir. — Um antigo laboratório dos Primevos. É possível que o segundo fragmento tenha se manifestado lá.

Kael assentiu. — Mas tenha cuidado. Tharion foi selada por um motivo. Os próprios Primevos temiam o que deixaram para trás.

Arthur ergueu-se. — Então é pra lá que eu vou.

Elyra o encarou com preocupação. — E se encontrar outra versão de si mesmo?

Ele hesitou, depois respondeu:

— Então vou descobrir o que ele quer... e impedi-lo.

A viagem até Tharion foi solitária e perigosa. As trilhas eram cobertas por névoa eterna, e os ventos uivavam como se carregassem vozes esquecidas. À medida que se aproximava das ruínas, Arthur sentia o tempo distorcer ao seu redor. Horas pareciam minutos. Dias, segundos. O próprio céu mudava de cor como se experimentasse possibilidades.

Ele alcançou o portão de pedra negra ao anoitecer. Rachaduras cobriam sua superfície, como cicatrizes. No centro, uma mão gravada em relevo — com seis dedos. Arthur tocou-a, e o portão se abriu com um rangido profundo, liberando um sopro de ar quente e estagnado.

Dentro, túneis se estendiam como raízes de uma árvore morta. Em cada parede, inscrições Primevas pulsavam. Ele seguiu os rastros de energia, sentindo o colar de obsidiana em seu peito esquentar.

Então, ouviu passos. Não ecos. Passos reais.

A sala à frente se abriu como uma catedral subterrânea. No centro, flutuando sobre um altar quebrado, estava outro fragmento. E diante dele, uma figura. De costas. Alta. Postura familiar.

Arthur parou.

— Quem é você? — perguntou, sabendo a resposta antes que ela viesse.

A figura se virou lentamente.

Era ele mesmo.

Mas diferente.

A pele um pouco mais pálida. O olhar mais sombrio. As roupas carregavam marcas de guerra, e a armadura estava rachada. Havia cicatrizes no rosto que Arthur não possuía. E os olhos... carregavam um peso que parecia secular.

— Eu sou o que você teria sido — disse o Outro Arthur — se tivesse escolhido vencer a qualquer custo.

Arthur engoliu em seco. — Por que está aqui?

— Porque você não é suficiente — disse o outro. — Porque Etheria precisa de alguém disposto a fazer o que for necessário. Mesmo que custe tudo.

— E o que você quer? — Arthur perguntou, sentindo o poder do fragmento vibrar entre eles.

— Reunir todos. Refazer Etheria. Uma Etheria onde não houve perda. Onde os fracos não atrapalharam. Onde eu não precisei... falhar.

Arthur se aproximou. — Isso não é equilíbrio. É controle.

— É sobrevivência — disse o Outro. — Você ainda não viu o que está vindo.

— Então me mostre.

O Outro Arthur estreitou os olhos. — Não está pronto.

Com um gesto rápido, ele desapareceu em uma névoa negra. O fragmento caiu lentamente até a palma de Arthur, como se tivesse sido libertado.

Assim que o tocou, outra visão o consumiu.

Ele estava em uma torre alta, olhando para Etheria em ruínas. As cidades estavam em chamas, e o céu, rachado como vidro. Seres de sombra e luz duelavam nos céus. E ele, Arthur, estava em um trono de ossos.

Elyra estava caída a seus pés.

— Isso é o que acontece — disse uma voz, talvez a sua — quando você escolhe demais.

Ele gritou. Mas a visão se dissipou.

Despertou no chão das ruínas, ofegante. O fragmento brilhava em sua mão. Ele o colocou na caixa de ferro, que imediatamente selou a energia contida.

Ao deixar Tharion, sentiu o mundo parecer mais... tênue. Como se cada passo pudesse afundá-lo em outra realidade.

No caminho de volta, Elyra o aguardava.

— Você viu ele? — perguntou.

— Vi. — Arthur assentiu, a voz grave. — Ele sou eu. De um lugar onde eu perdi tudo. E por isso... ele escolheu não perder mais nada. Mesmo que precise destruir tudo para isso.

Ela ficou em silêncio por alguns segundos. — Isso quer dizer que não estamos apenas lutando contra um inimigo. Estamos lutando contra nós mesmos.

Arthur encarou o horizonte. — E talvez isso seja o mais difícil.

Ao retornar ao templo, entregou o segundo fragmento aos Guardiões. Eles formaram um círculo de proteção em torno das caixas seladas.

— Quantos fragmentos existem? — Arthur perguntou.

— Ninguém sabe ao certo — disse Kael. — Mas os ecos indicam pelo menos sete. Sete realidades. Sete possibilidades.

— Então temos que encontrá-los antes que ele encontre — disse Arthur. — Porque se ele reunir todos...

— A Etheria que conhecemos deixará de existir — completou Soryn.

Elyra colocou a mão no ombro de Arthur. — Você ainda lembra quem é?

Ele fechou os olhos por um instante.

— Ainda lembro.

Mas, lá no fundo, uma dúvida germinava. E se, ao reunir todos os fragmentos, o verdadeiro inimigo não fosse o Outro Arthur... mas o próprio?

Capítulo 3 — A Guardiã do Vazio

O segundo fragmento repousava na caixa de ferro ao lado do primeiro. Selados, mas inquietos. Como se desejassem se unir, como imãs separados à força. Arthur os observava em silêncio, debruçado sobre a mesa de pedra na Câmara dos Guardiões. A presença deles pesava mais do que o aço, mais do que qualquer espada que já empunhara.

— Eles estão chamando — disse Soryn, surgindo da sombra como costumava fazer. — Não para você. Mas um para o outro.

Arthur assentiu. — Como se quisessem formar algo maior.

— Não algo. Alguém.

A frase ficou suspensa no ar como uma maldição.

— Ele já tem um fragmento — disse Arthur. — Talvez mais.

— E a cada fragmento que ele absorve, mais ele se distancia de quem você é — completou Soryn. — Ele está se tornando algo... que nunca deveria existir.

Antes que Arthur pudesse responder, Kael entrou na câmara, os passos pesados denunciando urgência.

— Recebemos uma mensagem dos Observadores de Névoa. Um terceiro fragmento pode ter se manifestado nas Ilhas Quebradas.

Arthur se endireitou. — As Ilhas Quebradas? Não eram um mito?

— Não para quem já naufragou nelas. — Kael entregou um pergaminho velho, com um mapa detalhado e símbolos Primevos riscados. — Há uma cripta selada em uma das ilhas. A lenda fala de uma mulher que nunca envelheceu. Uma guardiã esquecida. Ela pode ter contato com o fragmento... ou ser parte dele.

— E se for uma armadilha? — Elyra perguntou, entrando logo atrás. — O outro Arthur pode estar nos guiando.

— Se for — disse Arthur, com o olhar firme —, então eu vou encará-lo de novo.

A travessia pelas águas escuras até as Ilhas Quebradas foi feita a bordo do Ventus Sombrio, uma embarcação dos Ventos Silenciosos, antigos aliados dos Guardiões. Durante o trajeto, Arthur sentia o mar sussurrar. Vozes afogadas, memórias que não vivenciara. À noite, sonhou com Elyra sangrando em seus braços, com Kael desintegrando-se em poeira, com Soryn virando névoa.

E no centro de tudo, o trono de ossos.

Ele acordou suando, os dedos crispados na bainha da espada.

— Ainda são apenas sonhos — murmurou, tentando convencer a si mesmo.

As Ilhas Quebradas eram fragmentos de terra flutuando sobre um mar revolto, mantidas por raízes petrificadas que se entrelaçavam como serpentes. Árvores mortas cresciam de pedras rachadas, e o céu parecia sempre em crepúsculo, como se o tempo ali se recusasse a andar.

Arthur desembarcou sozinho, como combinado. Os Ventos Silenciosos não pisavam ali desde a Última Deriva, quando um grupo de exploradores jamais voltou.

A cripta ficava no coração da ilha principal, escondida sob uma árvore morta de vinte metros de altura. O chão rachou sob seus pés quando ele tocou o tronco. Uma escada se revelou, mergulhando na escuridão.

Ele desceu.

Degraus cobertos de poeira ancestral, corredores estreitos com inscrições em espiral, e no fim de tudo, uma porta de cristal negro. Ela se abriu ao seu toque.

Lá dentro, no centro de uma câmara circular, havia uma mulher.

Ela estava sentada sobre uma pedra lisa, olhos fechados, cabelos prateados espalhados como véu ao redor. Parecia jovem — não mais de vinte —, mas exalava uma presença que o fez estremecer.

— Você chegou tarde — disse ela, sem abrir os olhos.

Arthur se aproximou com cautela. — Você é a guardiã?

— Sou o que resta dela — respondeu a mulher, abrindo os olhos. Pupilas douradas. Eternas. — Já fui chamada de muitas coisas. Hoje, me chamam de Varda.

— Você tem o fragmento?

Ela sorriu, com tristeza. — Eu sou o fragmento.

Arthur parou. — Como assim?

— Há mil anos, fui escolhida para proteger o vazio entre as possibilidades. Quando o terceiro fragmento se fragmentou, ele se prendeu a mim. E desde então, eu vivi... incontáveis vidas dentro de mim.

Arthur sentiu o chão balançar. — E por que está aqui?

— Porque fugir não adianta — disse Varda, levantando-se. — O Outro já me encontrou uma vez. Mas ele não me tomou. Ele me temeu.

— Temeu?

— Porque eu vi através dele. E vi o fim. Um fim que nem mesmo ele deseja.

Ela se aproximou, os olhos brilhando como estrelas agonizantes.

— Você veio me levar?

— Eu vim impedir que ele leve você — respondeu Arthur. — Mesmo que isso signifique... protegê-la de mim mesmo.

Varda o estudou por longos segundos. — Então talvez ainda haja esperança para esse mundo.

Mas então, o mundo tremeu.

Explosões ecoaram no céu. Fendas se abriram no teto da cripta, revelando relâmpagos púrpura cortando as nuvens. Arthur empunhou sua espada.

— Ele chegou — disse Varda. — Mas não fisicamente. Apenas como projeção.

Uma silhueta surgiu na entrada da câmara. Escura. Distante. Mas claramente Arthur. O Outro.

— De novo você corre para o erro — disse o Outro Arthur. — Essa mulher é uma prisão. Um abismo disfarçado de esperança.

— E ainda assim, você não conseguiu quebrá-la — respondeu Arthur.

— Porque ela me conhece. Demais. — O Outro estreitou os olhos. — Mas você... ainda pode ser moldado.

Arthur avançou. Mas seu golpe atravessou apenas sombras. O Outro não estava realmente ali.

— Você não precisa fazer isso — gritou Arthur. — Não precisa se perder!

O Outro sorriu. — Eu já fui você. E por isso... sei como essa história termina.

E então desapareceu.

Varda cambaleou.

— Ele drenou parte de mim. Mesmo sem me tocar.

Arthur a segurou.

— Eu vou te tirar daqui.

— Você não pode — disse ela. — Eu sou a âncora das Ilhas. Se eu partir, o vazio se libertará. E o fragmento comigo.

Arthur olhou ao redor. As paredes já estavam rachando. As raízes vibravam.

— Então me ensine. Ensine a controlar o fragmento. A usá-lo sem que ele me consuma.

Varda o encarou com olhos que pareciam pesar mil anos. — Isso te mudará para sempre.

— Já estou mudando — respondeu. — Só quero mudar na direção certa.

Ela colocou a mão sobre seu peito.

E o mundo se dobrou.

Ele foi lançado para dentro de sua mente, para um lugar onde só existiam reflexos de si mesmo. Viu-se criança, adulto, guerreiro, tirano. Viu-se como rei e como traidor. Viu-se morrendo pelas mãos de Elyra. Viu-se salvando o mundo ao custo de sua alma. Viu-se abraçando o Outro, tornando-se Um.

E então, Varda apareceu no centro de tudo.

— O fragmento não é poder. É memória. Daquilo que você poderia ter sido. E daquilo que ainda pode se tornar.

Ela entregou a ele uma esfera de luz.

— Escolha uma lembrança. E torne-a parte de você.

Arthur estendeu a mão e, entre todas as possibilidades, escolheu uma:

A lembrança de proteger seus amigos. Mesmo que isso significasse perder.

A esfera se fundiu ao seu peito. Ele gritou. O mundo quebrou.

Acordou na superfície da ilha. As ruínas haviam colapsado. Varda estava ao seu lado, fraca, mas viva.

— Agora você carrega parte de mim — disse ela. — E eu, parte de você.

Arthur olhou para o céu. A tempestade se dissipava. Mas algo dizia que aquilo era só o começo.

De volta ao templo, Arthur foi recebido com olhares silenciosos. Ele entregou o terceiro fragmento — agora dentro de si.

Soryn foi a primeira a falar.

— Você está diferente.

— Estou inteiro — respondeu. — Pela primeira vez, sinto que entendo o que estamos enfrentando.

Kael assentiu. — Mas entender não é vencer.

Elyra o abraçou, apertado. — Só não se perca, Arthur. Por favor.

Ele fechou os olhos.

— Se eu me perder... me traga de volta.

Naquela noite, sozinho no alto da torre, Arthur olhou para as estrelas.

E ouviu, ao longe, o som de passos. Não no mundo físico. Mas dentro de sua mente.

O Outro estava vindo. Mais perto do que nunca.

E dessa vez... talvez fosse ele quem estivesse com medo.

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