O relógio marcava duas da manhã quando Katrina finalmente pôde tirar o avental e respirar fundo. O restaurante, que havia sediado uma importante reunião de negócios naquela noite, permaneceu cheio até tarde, com empresários russos discutindo contratos e brindando sucessos com vodca e vinho caro.
Katrina e os demais funcionários correram de um lado para o outro durante horas, servindo pratos sofisticados, limpando taças e mantendo tudo impecável. Apesar do cansaço físico, ela se mantinha firme — como fazia todos os dias. Não podia se dar ao luxo de fraquejar. A irmã ainda respirava por aparelhos no hospital e toda ajuda contava.
Enquanto recolhia os últimos copos da mesa central, Mila se aproximou com um sorriso largo e um envelope nas mãos.
— Fica firme aí que vou te fazer chorar — brincou, estendendo o envelope com carinho.
— O que é isso agora? — Katrina arqueou uma sobrancelha, desconfiada.
— A rifa, lembra? Aquela das panelas que eu sorteei. Todo mundo aqui participou. Até alguns dos clientes da noite contribuíram.
Katrina abriu o envelope com dedos trêmulos. Lá dentro, notas dobradas, algumas até desgastadas. Era dinheiro. Não uma fortuna, mas suficiente para representar mais um passo rumo à cirurgia que poderia salvar a vida da irmã.
— Mila... — sua voz falhou. O nó na garganta veio antes mesmo das lágrimas. — Eu nem sei como...
— Não precisa agradecer. A gente te ama, Katrina. Todo mundo aqui quer ajudar — Mila a puxou para um abraço apertado.
Alguns colegas de trabalho se aproximaram em silêncio, deixando discretamente mais algumas notas sobre o balcão.
— Não é muito, mas todo mês vai ter alguma coisa — disse Vadim, o cozinheiro ranzinza com coração mole.
— A sua luta é nossa também — completou Irina com um sorriso sincero.
Katrina apenas assentiu, com os olhos marejados. A gratidão a envolveu como um cobertor em noite fria. Aqueles colegas se tornaram sua família quando ela mais precisou.
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Quando finalmente terminou de limpar tudo, Katrina pegou sua bolsa e se despediu dos colegas. O Sr. Pavel, dono do restaurante, cruzou os braços ao vê-la se aproximar da porta.
— Vai a pé de novo?
— Sim, senhor. É pertinho. Quinze minutinhos e estou em casa.
— São duas da manhã, Katrina. Você sabe que essa cidade muda de cara à noite.
— Já fiz esse caminho tantas vezes. Nunca aconteceu nada — tentou tranquilizá-lo com um sorriso cansado.
— Me manda mensagem assim que chegar, pelo menos.
— Pode deixar.
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As ruas estavam silenciosas, envoltas por uma neblina fina. O ar gelado cortava a pele, e as luzes dos postes lançavam sombras distorcidas no chão úmido. Katrina andava rápido, mantendo os olhos atentos e os passos firmes. Só queria chegar em casa, tomar um banho quente e dormir antes de visitar a irmã no hospital.
Foi então que ela ouviu. Um som seco, abafado. Um grunhido. Depois, uma voz baixa e furiosa que rasgava o silêncio da madrugada.
— Você traiu a Bratva. Achou que ninguém perceberia?
Movida por um impulso, Katrina se aproximou de um beco escuro. Seus olhos se arregalaram diante da cena: um homem apanhava brutalmente. Havia sangue em sua camisa, suas mãos erguidas num gesto desesperado.
E o agressor… Era como uma sombra viva. Alto, vestindo paletó escuro, os olhos cravados em sua vítima como garras. Ao redor, dois capangas observavam sem interferir.
O homem o ergueu pela gola e o lançou contra a parede, com nojo.
— A traição se paga com dor. Com sangue. Com a vida.
O estalo de um soco ecoou. Katrina mal respirava. Queria correr, mas não conseguia. Um movimento em falso fez uma lata cair de seu lado, emitindo um som metálico que cortou o silêncio como uma faca.
Três pares de olhos se voltaram para a direção dela.
O coração de Katrina disparou.
— Merda! — Katrina sussurrou e saiu em disparada.
Dois homens começaram a correr atrás dela. O medo lhe dava força nas pernas, mas a adrenalina a cegava. Viu um caminhão estacionado mais à frente e, sem pensar duas vezes, deslizou para trás dele, ofegante, encolhida entre a lataria e o muro.
Os passos se aproximaram... passaram direto... e logo se distanciaram.
Katrina segurou o fôlego. Esperou. Minutos depois, viu os dois capangas retornando apressados pelo mesmo caminho, visivelmente frustrados.
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De volta ao beco, Dimitry os aguardava com expressão fechada.
— E então?
— Perdemos ela de vista, senhor. Era rápida... sumiu atrás de um caminhão e desapareceu.
Dimitry olhou para a direção por onde Katrina havia fugido. Seus olhos estreitaram.
A imagem daquela mulher ainda estava cravada em sua mente. Os olhos arregalados de medo, os cabelos caindo sobre o rosto, a respiração ofegante. Havia algo nela... algo que ele não soube explicar.
E aquilo o incomodava.
Porque, pela primeira vez em anos, sentiu algo que não podia controlar.
Desejo, sim. Mas também curiosidade. Fascínio. Uma espécie de... necessidade. Como se aquela mulher fosse parte de algo que ele nem sabia que procurava.
— Não importa. — Ele sorriu de lado, a expressão tomada por um brilho sombrio. — Eu vou vê-la de novo. Sinto isso. Não importa quanto tempo leve... Eu preciso daquela garota.
Enquanto os outros homens se entreolhavam, confusos com a reação do chefe, Dimitry encarava o fim da rua escura como quem mira um alvo invisível.
Porque algo dentro dele tinha sido despertado.
E já não havia volta.
A neve cobria os arredores da mansão Mikhailov como um véu branco de silêncio. Do lado de dentro, no escritório de paredes escuras, o silêncio era sufocado por uma fúria prestes a explodir.
— Ele me traiu. — As palavras saíram secas da boca de Dimitry, os olhos cravados na tela do notebook onde a imagem de um contrato ilegal com o nome do irmão estava estampada. — Nikolai ousou fazer acordo com os Kostin pelas minhas costas.
Alexei, parado à sua frente, não respondeu. Sabia que não era hora de palavras. O ar ao redor de Dimitry parecia mais denso, carregado de um ódio antigo que ele tentava manter sob controle desde que assumira o comando da máfia. Mas agora... agora haviam cruzado a linha.
— Ele não queria só dinheiro. Ele queria me destruir. — Dimitry murmurou, se levantando da cadeira. — Quer meu lugar. Sempre quis. E agora, achando que estou distraído, vende informações nossas para a polícia por meio dos Kostin.
Alexei assentiu lentamente.
— A emboscada está montada. Encontraremos o contato dele esta noite, em Moscou. Um beco atrás do restaurante Bela Rússia. É lá que tudo vai acabar.
Dimitry pegou o casaco de couro, a arma que nunca saía de seu alcance e olhou para o símbolo da família cravado na parede atrás da escrivaninha. Seus olhos queimavam com um fogo frio.
— Dessa vez... eu mesmo vou arrancar a verdade dele.
Era madrugada quando o jato particular de Dimitri pousou na pista privada de Moscou. A cidade, mesmo envolta em neve e silêncio, não conseguia esconder os segredos que ferviam sob suas fundações.
Ele não esperava voltar tão cedo. Mas quando recebeu a ligação de Anton, seu braço direito, avisando que um dos seus homens mais antigos havia vendido informações para a concorrência, tudo mudou.
Traição.
A palavra ecoou em sua mente como veneno.
Durante anos, Dimitri construiu seu império com punhos de ferro e sangue frio. Nenhuma fraqueza era tolerada. Nenhum deslize era esquecido. Aqueles que tentavam jogá-lo contra a parede descobriam, tarde demais, que ele não era um homem que se deixava encurralar.
— Quem é? — perguntou, ainda a bordo do jato, o copo de whisky firme entre os dedos.
— Nikolai Petrov. Ele passou informações para o cartel turco. Temos provas, gravações, depósitos em contas fantasmas... — respondeu Anton, do outro lado da linha. — Ele está se escondendo em Moscou. Mas temos um informante que marcou um encontro com ele para esta noite. No beco da Sadovaya, às duas da manhã.
Dimitri fechou os olhos por um instante.
Nikolai.
O homem em quem ele confiou operações inteiras.
Que jantava com ele, que carregava sua bandeira.
A traição queimava mais do que ele gostaria de admitir.
— Prepare o carro. E leve apenas dois homens. Essa lição será dada por mim pessoalmente.
A neve havia parado quando o carro preto estacionou próximo ao beco. Dimitri desceu em silêncio, envolto num sobretudo escuro que destacava seus traços firmes e olhos gélidos. Ele caminhava como um predador. Cada passo calculado, cada respiração controlada. O sangue pulsava com força, mas sua expressão permanecia inalterada.
Ao virar a esquina do beco, encontrou Nikolai tremendo de frio e medo. Sozinho.
Dimitri não disse uma palavra. Apenas caminhou até ele.
O primeiro soco veio seco. Depois o chute. E então, a sequência. Cada golpe carregava raiva, decepção, ódio.
— Você traiu a Bratva. Achou que ninguém perceberia?
— Você me traiu, Nikolai... Eu confiei em você. Confiar é um luxo. E você cuspiu nesse privilégio.
O homem já nem reagia mais, apenas gemia, caído no chão sujo.
— A traição se paga com dor. Com sangue. Com a vida.
Foi quando Dimitri ouviu um som metálico, como uma lata caindo.
Ele se virou e, por um instante, os olhos se cruzaram com os de uma mulher parada na entrada do beco.
Era rápida, mas não o bastante para impedir que ele visse.
Seus olhos grandes e assustados. A respiração presa. Os lábios trêmulos.
Ela o viu.
E, por algum motivo inexplicável, aquilo o atingiu mais fundo do que qualquer golpe que tivesse dado naquela noite.
A garota correu. E seus homens reagiram de imediato.
— Atrás dela! — gritou um deles, puxando a arma.
De volta ao beco, Dimitry os aguardava com expressão fechada.
— E então?
— Perdemos ela de vista, senhor. Era rápida... sumiu atrás de um caminhão e desapareceu.
Dimitry olhou para a direção por onde Katrina havia fugido. Seus olhos estreitaram.
A imagem daquela mulher ainda estava cravada em sua mente. Os olhos arregalados de medo, os cabelos caindo sobre o rosto, a respiração ofegante. Havia algo nela... algo que ele não soube explicar.
Mas, de alguma forma perversa, aquilo apenas o atraiu ainda mais.
Era como se seu instinto dissesse: ela é sua.
— Quem era ela? — perguntou Alexei, se aproximando.
Dimitri não respondeu de imediato. Apenas olhou para o fim do beco e sorriu, de forma quase doentia.
— Não sei... ainda. — Passou os dedos pelos lábios, como se saboreasse o nome que ainda não conhecia. — Mas vou descobrir. E quando a encontrar... ela não vai fugir outra vez.
No coração do homem que comandava o submundo com mãos de ferro, algo novo nascia.
Obscuro.
Doentio.
Irresistível.
Uma obsessão.
O sol já surgia por trás dos prédios de Moscou, tingindo a neve com tons dourados e frios. A cobertura do hotel onde Dimitry estava hospedado havia sido transformada numa base de operações. Telas de vigilância, arquivos abertos, fotos impressas. Cada pedaço daquela madrugada estava sendo minuciosamente reconstruído.
— Temos algo. — anunciou Artem, girando o notebook em sua direção.
Dimitry se aproximou, o olhar afiado pousando sobre a imagem da câmera de segurança.
— Aqui. Sadovaya, 2h17. — disse Maxim, apontando para a figura feminina que saía correndo da viela lateral.
Mesmo com o capuz, Dimitry soube imediatamente que era ela. A garota do beco. O olhar de medo. A expressão marcada. Era impossível esquecer.
— Consegui rastrear o caminho. Ela vira à esquerda, corre duas quadras e entra nesse prédio. — explicou Igor, ampliando outra imagem.
A fachada antiga de tijolos cinzentos surgiu na tela. Um letreiro desbotado pendia sobre a porta principal.
— Bratva's Table. Um restaurante típico, comida russa. Pequeno, familiar. Segundo o registro da prefeitura, tem vinte funcionários. E sim... — ele clicou mais uma vez — aqui está. Katrina Novikova. Garçonete. Turno noturno. Entra às 18h, sai à 1h30.
Dimitry permaneceu em silêncio, processando a informação. O nome dela soou em sua mente como uma sentença.
Katrina.
— Tem endereço? — perguntou ele, frio.
— Ainda estamos cruzando os dados. Mas conseguimos o número da ficha dela no RH. Estamos quase lá.
Dimitri se afastou das telas e foi até a janela. Observou Moscou se agitar abaixo, indiferente aos planos que ele construía. Então, se virou.
— Preparem o carro. — disse, com a voz firme.
— Vai até lá? — perguntou Artem, surpreso.
— Sim. Quero vê-la. Com os próprios olhos. Quero entender por que... — ele parou por um instante, cerrando o maxilar. — ...por que aquela mulher ficou presa dentro da minha mente.
— Quer que entremos primeiro? Verificamos a segurança do local?
— Não. — Dimitry cortou com um gesto. — Não quero armas. Nem ameaças. Ainda não. Hoje... sou apenas um cliente.
Os três homens trocaram olhares. Conheciam Dimitri demais para acreditar que ele estivesse ali apenas por curiosidade. Quando Dimitri Ivanov colocava os olhos em algo — ou alguém — não havia espaço para acaso.
— Mantenham distância. Observem o entorno. Quero saber se alguém a protege. Se ela tem amigos, contatos, ou algo que não estamos vendo.
— Entendido.
Dimitry pegou seu casaco escuro, o mesmo da noite anterior. Alisou os cabelos com as mãos e passou o perfume leve que usava apenas em ocasiões específicas. Havia algo de meticulosamente calculado em cada movimento dele.
— Katrina Novikova... — murmurou, enquanto caminhava até o elevador.
“Vamos nos ver de novo. Mas, desta vez, você vai me olhar... sem correr.”
E então, as portas se fecharam atrás dele.
O pequeno restaurante Bratva’s Table já estava em pleno movimento naquela noite fria. O cheiro de sopa borscht e pão quente dominava o ambiente, e os risos dos clientes misturavam-se ao tilintar de copos e talheres. Na cozinha apertada, Katrina prendia o cabelo em um coque desleixado enquanto distribuía pratos para os garçons com agilidade.
— Mesa sete, pierogi com sour cream. Mila, cuidado com o molho! — ela alertou, limpando a borda de um prato antes de colocá-lo na bandeja.
Foi então que Mila entrou na cozinha como um furacão, com os olhos arregalados e as mãos agarradas ao avental.
— Kat! Kat! Tem um monumento no salão!
Katrina riu, sem desviar os olhos da bancada.
— Mila, de novo? Toda semana você encontra um "monumento".
— Não, você não tá entendendo! Esse homem não é normal. Ele parece... esculpido em mármore. Alto, elegante, com olhos de gelo. Um verdadeiro czar moderno!
— Ai, Mila... — Katrina balançou a cabeça, divertida. — Só falta você dizer que ele chegou montado num cavalo branco.
— Com aquele olhar, ele nem precisa! — Mila colocou as mãos no peito, teatral. — Sério, vem ver. Só dá ele no salão. Todo mundo olha. Até a senhora Nina quase deixou cair o copo de vodca!
Katrina riu, pegando a bandeja com três pratos e alguns copos.
— Tá bom, tá bom. Vou levar isso logo antes que você tenha um colapso.
Ela saiu da cozinha com passos firmes, equilibrando a bandeja com a leveza de quem fazia aquilo há anos. Mas assim que atravessou a porta e entrou no salão... parou.
O tempo pareceu prender a respiração com ela.
Ele estava ali.
Sentado à mesa do canto, vestindo um sobretudo escuro, com as pernas cruzadas e o olhar firme fixo nela.
Dimitry.
Os olhos que ela jamais esqueceu.
O homem do beco.
A bandeja escorregou das mãos de Katrina antes que ela pudesse sequer reagir. Os pratos se espatifaram no chão, a sopa se espalhou como tinta vermelha sobre o piso, os copos estilhaçaram em mil pedaços.
O salão inteiro virou para olhar.
Mas ela não via mais ninguém.
O ar faltou. As mãos tremiam. O medo que ela sentiu naquela noite retornou com força brutal.
Katrina virou nos calcanhares e, sem uma palavra, saiu correndo do restaurante.
Atrás dela, Dimitry permaneceu sentado. Um leve sorriso desenhou-se em seus lábios enquanto observava a porta da cozinha balançando lentamente.
— Então é você, Katrina Novikova... — ele murmurou, mais para si do que para qualquer um ali.
Ela havia o reconhecido.
E agora, não havia mais dúvida.
A caça havia começado.
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