Capítulo 1 – O Legado do Sangue
Sebastian aprendeu desde cedo que o mundo era feito de dor, poder e obediência. Ainda criança, não teve o luxo da inocência. Enquanto outras crianças brincavam nas ruas, ele apanhava em silêncio dentro das paredes frias da mansão, sob os olhos impiedosos de seu próprio pai — o chefe da máfia italiana mais temida da região. Era assim que, segundo ele, se moldava um herdeiro. A pancada, o medo, o silêncio. Tudo fazia parte da “educação”.
Sebastian
Aos 16 anos, Sebastian já era um soldado sem alma. Olhos duros, punhos prontos e coração blindado. Foi nessa época que conheceu Marcos, um jovem de 22 anos, recém-chegado no mundo do crime, com uma coragem cega e uma lealdade rara. Quando presenciou o pai de Sebastian erguendo o cinto para mais uma lição, Marcos não hesitou. Se colocou entre os dois e, pela primeira vez, alguém bateu de frente com o monstro.
Desde então, Sebastian nunca mais esteve sozinho.
A amizade entre eles cresceu como ferro forjado no fogo. Com 18 anos, Sebastian assumiu o posto do pai, após o velho morrer da mesma forma que viveu: traído por um dos seus. E ao seu lado, sempre, estava Marcos — seu braço direito, sua consciência, seu único amigo.
Durante cinco anos, dominaram juntos o submundo. E mesmo nesse caos, Marcos encontrou o amor. Casou-se, teve uma filha, Luiza. A garota que ele chamava de "minha luz". Mas o destino, cruel como sempre fora com Sebastian, também levou o que restava de paz no coração de Marcos. Sua esposa morreu subitamente, e com o coração quebrado, ele decidiu abandonar a máfia para criar a filha longe daquele mundo.
Sebastian não questionou. Apenas respeitou. Porque, no fundo, invejava a coragem do amigo. Marcos nunca se afastou por completo. Sempre se falavam. Às vezes, mandava uma mensagem, uma ligação rápida, uma lembrança. Sebastian nunca viu Luiza pessoalmente, mas já tinha visto uma única foto: uma menina de olhos vivos, sorriso espontâneo, e um brilho que não combinava com as trevas que ele carregava.
O tempo passou, e a vida seguiu seu curso. Até que tudo parou.
Era uma tarde cinzenta quando Sebastian recebeu a ligação. Luiza e Marcos haviam sofrido um acidente. Um carro desgovernado acertou em cheio o veículo em que estavam, a caminho da praia — o lugar preferido de Luiza. A última postagem dela nas redes sociais mostrava os dois sorrindo dentro do carro.
Luiza
"Com minha companhia preferida, indo pro meu lugar preferido."
Minutos depois... o silêncio.
Marcos morreu na hora. Luiza foi levada em estado grave. Coma profundo.
Sebastian não lembrava como o telefone caiu da sua mão. Só sabia que ficou parado, sentindo um vazio tão escuro quanto os porões onde cresceu. Perder Marcos era como perder a única parte de si que ainda o fazia humano. Ele não chorou. Não conseguia. Apenas ficou imóvel, como se a alma tivesse sido arrancada com a notícia.
O advogado de Marcos o procurou três dias depois. Entregou-lhe uma carta escrita à mão, com a caligrafia inconfundível do amigo.
"Sebastian,
Se você está lendo isso, é porque algo me tirou da vida da minha filha.
Eu não confio em ninguém, meu irmão. Apenas em você.
Você conhece a escuridão e sabe como protegê-la.
Luiza é meu maior tesouro. Cuide dela como cuidaria da sua própria vida.
Ela não tem ninguém além de você agora.
Confio em você.
Marcos."
A mão de Sebastian tremeu ao terminar a leitura. Ele não sabia o que era mais difícil: perder o amigo ou assumir a responsabilidade por uma jovem que ele nunca conheceu de verdade. Luiza agora tinha 17 anos. Estava entre o mundo da inocência e o da descoberta. E ele… ele era um homem quebrado, moldado pelo sangue e pela dor. Que tipo de proteção ele poderia oferecer?
Mas ele jurou.
Jurou em silêncio, de punhos cerrados, que cuidaria dela. E naquele momento, uma nova parte de sua vida começou — uma que ele não estava preparado, mas que o destino impunha como uma sentença.
Luiza ainda estava em coma. Mas em breve, acordaria. E quando acordasse, descobriria que o mundo como ela conhecia tinha acabado. O pai se foi. A liberdade se foi. E em seu lugar, um homem perigoso, de olhos gélidos e coração cicatrizado, seria agora seu guardião.
Ela não fazia ideia de quem era Sebastian.
Mas ele sabia…
Ela mudaria tudo.
Capítulo 2 – O Despertar da Dor
O som do monitor cardíaco foi a primeira coisa que ela ouviu.
Bip... bip... bip...
Fraco, contínuo, insistente.
Luiza abriu os olhos devagar, sentindo as pálpebras pesadas, como se mil dias tivessem se passado dentro dela. A luz branca do hospital ardeu, ofuscando sua visão. Tudo parecia fora do lugar. O ar tinha cheiro de desinfetante. As mãos estavam geladas. O corpo doía.
— Luiza...? — uma voz suave chamou, ao lado da cama.
Ela tentou virar o rosto, mas o esforço foi demais. Apenas piscou, tentando entender onde estava. O coração acelerou. E então a pergunta veio, fraca, rouca, quase um sussurro:
— Onde... meu pai?
Silêncio.
A enfermeira desviou o olhar, apertando os lábios. Chamou um médico.
Minutos depois, ela soube.
Soube da forma mais cruel possível: palavras cortantes, ditas com cuidado, mas que perfuraram como lâminas.
O acidente.
A colisão.
A morte instantânea.
O coma.
Quatro meses.
E agora... ela sozinha no mundo.
Luiza não chorou. O choque era profundo demais para lágrimas. O coração parecia vazio, como se alguém tivesse arrancado o que havia de mais importante dentro dela e deixado só a casca.
Queria apagar de novo. Queria não ter acordado.
Não conseguia respirar direito. O peito pesava, como se estivesse sendo esmagado. A ausência do pai era um buraco que consumia tudo.
— Você vai se recuperar, querida — disse uma voz gentil. — E há alguém esperando por você... alguém que vai cuidar de você agora.
Ela franziu a testa, confusa.
— Quem?
— Sebastian.
Aquele nome soou como um eco distante. Ela já ouvira o pai mencionar, poucas vezes, com uma mistura de respeito e mistério. O melhor amigo. Um homem perigoso, alguém de um passado sombrio. Mas... ela nunca o viu. Nunca falou com ele. E agora, do nada, esse tal Sebastian era responsável por ela?
Não. Não podia ser verdade.
Mas era.
Duas semanas depois, ainda fraca e emocionalmente devastada, Luiza foi liberada do hospital. Não teve tempo de escolher. Não teve voz ativa. Seu pai deixara tudo preparado: documentos, advogado, tutela. Era como se Marcos soubesse que não voltaria daquela viagem.
Sebastian estava lá. Na saída.
Alto, imponente, vestindo preto dos pés à cabeça. A barba por fazer, os olhos escuros e inexpressivos. Ele a encarava como se já soubesse de tudo que ela estava sentindo, mas não demonstrava nada. Nenhuma emoção. Nenhuma aproximação forçada.
Luiza desviou o olhar.
Foi um trajeto silencioso até a casa dele — uma fazenda enorme, afastada, cercada de árvores e cercas de ferro. Tudo frio, escuro, intimidador. Assim como ele.
Ela entrou muda. Subiu as escadas sem dizer uma palavra. Trancou-se no quarto e só então, desabou.
O choro veio como uma avalanche. O grito ficou preso na garganta, mas o coração gritava em silêncio. Não era só a dor da perda. Era o medo. A raiva. A solidão. E aquele homem desconhecido, que agora era tudo o que restava.
Nos dias seguintes, Luiza não saiu do quarto. Não comeu. Não falou com ninguém. Ignorou as batidas na porta, recusou todas as bandejas de comida deixadas do lado de fora. A dor era tanta que ela desejava não ter acordado.
"Quero morrer", pensou, abraçada ao travesseiro. "Quero dormir e não acordar nunca mais."
Sebastian, por sua vez, observava à distância. Sabia que forçar não ajudaria. Ele conhecia a dor da perda, mas não sabia consolar. Nunca soube. Seu mundo era feito de ordens e sobrevivência — não de acolhimento. Mas ver aquela garota definhar sem comer, se apagando aos poucos... estava mexendo com ele.
Na terceira noite, ele subiu até o quarto. Bateu forte na porta. Nada. Bateu de novo.
— Luiza — chamou, sério, firme. — Abre a porta.
Silêncio.
— Eu sei que está me ouvindo. Não quer falar comigo, tudo bem. Mas precisa comer. Isso não é o que seu pai gostaria que você fizesse.
Nada.
Ele encostou a testa na porta por alguns segundos. Suspirou fundo.
— Eu não sou bom com isso. Nunca fui. Mas prometi a ele que cuidaria de você. E mesmo que você me odeie agora... eu vou cumprir minha promessa. Nem que você me odeie todos os dias por isso.
Ele deixou a bandeja no chão, como nas outras vezes. Mas antes de sair, disse com voz mais baixa:
— Se não por você... faz por ele.
E desceu as escadas.
Luiza, deitada no escuro, mordeu o lábio até sentir o gosto de sangue. Lágrimas escorriam. Seu coração quebrado doía em cada batida. Mas... algo naquela voz... naquela frase... quase a fez levantar.
Quase.
Mas ainda não.
Capítulo 3 – Frio como o silêncio
Doze dias.
Foram doze dias sem que Luiza dissesse uma única palavra a Sebastian.
Doze dias trancada no quarto, se alimentando mal e chorando em silêncio.
Ela não queria estar ali.
Na verdade, ela não queria estar em lugar nenhum. Queria o pai. Queria a antiga vida de volta. As risadas nas manhãs de domingo, as dancinhas na varanda, os abraços longos e seguros. E agora... só o vazio.
Mas naquela manhã, algo nela estalou.
Talvez tenha sido o cheiro do café recém-passado vindo da cozinha. Ou talvez tenha sido a exaustão de tanto se esconder da realidade. A dor ainda estava lá, profunda, sufocante... mas ela precisava respirar. Nem que fosse só por cinco minutos.
Luiza empurrou a porta devagar. O corredor da mansão era silencioso, quase solene. As paredes em tom escuro e os móveis antigos deixavam tudo com uma aparência fria, impessoal. Era como se a casa refletisse o homem que agora era seu responsável.
Desceu as escadas devagar, sentindo o chão de madeira ranger sob seus pés descalços. Estava pálida, mais magra, com olheiras profundas. A camisa larga e o short pareciam engolir o corpo.
Na cozinha, Sebastian estava de costas, preparando o café. Ao ouvir os passos, virou lentamente.
Os olhos dele encontraram os dela, mas ele não disse nada.
Luiza também não.
O silêncio entre os dois foi quase sufocante.
Ela desviou o olhar e caminhou até a bancada, puxando uma caneca. As mãos tremiam levemente, mas ela se obrigou a ignorar. Despejou o café, sentindo o aroma forte subir até o nariz. Era estranho como um cheiro tão comum podia ser tão reconfortante.
Sentou-se à mesa, tomando o primeiro gole. Estava quente. Forte. Quase amargo.
Assim como ele.
— Achei que ia passar a vida no quarto — a voz dele finalmente quebrou o silêncio, grave e firme.
Ela não respondeu.
— Pensei que você ia desmaiar de fraqueza — continuou, cruzando os braços e se encostando na pia. — Mas fico feliz que tenha saído.
— Não fiz isso por você — ela murmurou, sem encará-lo.
— Eu sei.
— E não quero conversar.
— Também sei.
Ela ergueu os olhos, encarando-o com mais firmeza agora.
— Só tô aqui porque... meu pai confiava em você. Só por isso.
Sebastian não reagiu. Apenas observou. A postura dele era sempre a mesma: rígida, contida, como se controlasse cada palavra antes de sair. Como se carregar o mundo nas costas fosse um hábito.
— Eu nunca pedi pra vir pra cá — ela disse, a voz embargada.
— E eu nunca pedi pra perder meu melhor amigo.
A resposta foi seca. E atingiu como um tapa.
Luiza mordeu o lábio inferior, tentando conter as lágrimas. Mas elas estavam ali, sempre à espreita, prontas pra escorrerem quando menos esperava. Levantou da mesa, deixando a caneca pela metade.
— Isso aqui... não é a minha casa. Nunca vai ser.
— Também não é a minha ideia de família perfeita, se isso te consola — ele respondeu, e havia algo em seu tom que beirava o sarcasmo.
Ela bufou, virou as costas e subiu as escadas de novo.
Mas naquela noite, comeu.
Nos dias seguintes, Luiza começou a sair do quarto com mais frequência. Não por vontade. Mas por necessidade.
O clima entre os dois continuava o mesmo: cortante. Ela mal falava com ele. Quando o fazia, era com frieza. E Sebastian... bem, ele não fazia questão de mudar isso.
Ele respeitava o espaço dela. Não forçava conversas. Mas observava tudo. Sabia cada passo, cada olhar cansado, cada suspiro no corredor.
E Luiza... notava. Mesmo quando não queria. O jeito como ele a estudava em silêncio. O modo como mantinha tudo sob controle, como se estivesse sempre pronto para o pior.
À noite, ela o ouvia falando ao telefone, em voz baixa. Palavras em italiano, ordens secas, tom sério. Ela sabia que ele estava envolvido com coisas perigosas — o pai dela sempre dizia que Sebastian era o tipo de homem que comandava no silêncio, com o olhar. E que ninguém ousava desafiá-lo.
Mas ali, dentro daquela casa, ele parecia... contido. Um animal ferido que escondia bem as cicatrizes.
Naquela noite, ela não conseguiu dormir. Desceu até a cozinha, silenciosa, procurando algo pra comer. Mas ao virar o corredor, deu de cara com ele.
Sebastian estava sentado na varanda dos fundos, camisa aberta, cigarro na mão, olhos perdidos no escuro da noite.
Ela ficou parada, sem saber se voltava ou falava algo.
— Tá com fome? — ele perguntou, sem virar o rosto.
— Um pouco.
— Tem torta de frango na geladeira.
Ela hesitou, depois entrou na cozinha. Pegou um pedaço e voltou, devagar. O frio da madrugada arrepiou sua pele. Sebastian estava quieto, olhando pro nada.
— Você conhecia meu pai há muito tempo? — perguntou, baixinho, sentando no sofá oposto.
Ele assentiu.
— Desde que você nem sonhava em existir.
Ela ficou em silêncio por alguns segundos, depois murmurou:
— Ele falava de você... mas eu nunca imaginei que um dia... você fosse...
— A última pessoa no mundo que te restou? — ele completou, olhando pra ela pela primeira vez.
Luiza sentiu o coração apertar. Não por ele. Mas pela verdade crua daquelas palavras.
— Não precisa gostar de mim, Luiza. — A voz dele era firme, sem emoção. — Só precisa sobreviver.
— E você? — ela perguntou. — Tá sobrevivendo?
Ele deu uma longa tragada no cigarro, depois soltou a fumaça no ar gelado da noite.
— Há anos.
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