O silêncio que ficou após a partida do jatinho foi mais cruel que qualquer grito.
Celso observava a pista vazia da propriedade à beira do mar, os olhos fixos no céu acinzentado onde o avião de Lavínia desaparecera há poucos minutos. Não houve palavras de despedida, não houve adeus. Ela o olhou uma última vez antes de subir a escada da aeronave, acreditando ingenuamente que tinha vencido — que tinha enganado o homem que um dia jurou amar.
Ele apenas sorriu. Um sorriso amargo, frio. Quase piedoso.
Lavínia acreditava que estava indo embora livre. Mas estava apenas sendo entregue à própria sentença. A LME — a Liga dos Mafiosos Europeus — não falhava em suas decisões. Ela seria punida por tudo: por ter tentado manipular o Dom da Sol Nascente, por ter se passado por mãe carinhosa, por ter planejado o aborto de uma mulher inocente apenas por obsessão. Por ter se perdido de si.
Celso sabia de cada plano. As mensagens apagadas. As chamadas codificadas. Os bilhetes escondidos. Nada escapava ao seu controle. Ele a deixou acreditar que estava livre, apenas para assistir a queda ser ainda mais cruel.
A brisa fria cortava o rosto dele quando ele se virou, os passos lentos em direção à mansão silenciosa.
Carlos dormia no berço, alheio ao peso do mundo que o esperava. Um bebê de apenas um ano, tão pequeno... tão inocente. Celso se aproximou e, pela primeira vez em meses, se permitiu sentar ao lado do filho com os ombros curvados.
O Dom não chorava. Mas naquela madrugada, ele respirou como se segurasse o próprio choro no peito.
Ele passou os dedos pelos cabelos claros do menino, idênticos aos seus. Carlos resmungou no sono, virando-se levemente. E foi ali, naquele pequeno gesto, que Celso sentiu — pela primeira vez em muito tempo — que ainda havia algo pelo qual lutar.
Não pelo poder. Não pela vingança. Mas por aquele pequeno ser que agora dependia apenas dele.
— Você vai ser diferente de mim... — murmurou em voz baixa, quase um sussurro. — Vai crescer longe da sujeira. Longe da dor que sua mãe causou.
Mas nem ele acreditava plenamente nisso.
O mundo em que vivia não permitia inocência por muito tempo. E Celso sabia que a única forma de proteger Carlos era permanecer forte, frio, impenetrável.
Fechou os olhos por um momento, escutando o leve som da respiração do filho. A raiva, o desprezo e o rancor ainda queimavam dentro de si como brasas incandescentes, mas agora estavam direcionados. A Lavínia ele já havia deixado para trás. O que viesse a acontecer com ela nas mãos da LME não era mais problema seu.
Miguel que cuidasse dela.
Ele cuidaria de Carlos.
Levantou-se com calma, ajeitando o cobertor sobre o menino. O olhar dele estava diferente agora — mais duro, mais sombrio. O Dom da máfia Sol Nascente estava de volta, mais implacável do que nunca. Mas por trás de toda sua frieza, havia algo que nenhum inimigo imaginaria existir: o instinto feroz de um pai que não mediria esforços para proteger aquilo que amava.
A partir daquele momento, Celso Farias havia enterrado o último vestígio do homem que um dia amou Lavínia Makrov.
E jurou silenciosamente que nunca mais daria a alguém o poder de destruí-lo.
- - -
A noite caiu com o peso de uma sentença.
O silêncio da mansão já não era novidade, mas agora parecia mais espesso. Pesava sobre os ombros de Celso como um manto feito de arrependimento e solidão.
Carlos dormia — como sempre, alheio a tudo — e Celso, por um momento, desejou ser como ele: inocente, alheio ao mundo que consumia os homens por dentro antes mesmo de matá-los.
A notícia veio naquela manhã, pelas mãos de um informante da LME.
Lavínia havia sido capturada oficialmente. Estava sob custódia, internada no manicômio particular da Liga dos Mafiosos Europeus. Um lugar onde não havia janelas, nem nomes, nem esperanças. Somente gritos abafados e almas condenadas à própria insanidade.
Ela teve um surto, segundo os registros. Quebrou vidros, tentou agredir os próprios aliados, dizia que precisava destruir uma criança que nunca nasceu — a mesma que tentou matar ao perseguir a noiva do ex-marido.
Celso não se surpreendeu.
“Somente uma louca seria capaz do que ela fez. Somente alguém sem alma...”
Por meses ele sustentou a farsa, a deixou acreditar que poderia recomeçar. A assistiu mentir, manipular, encenar o papel de boa mãe, enquanto armava pelas costas dele. Ele a monitorava com olhos invisíveis, ouvidos em todas as paredes.
Ela jamais soube — mas ele sempre soube de tudo.
Agora, ela estava incomunicável.
Ninguém poderia visitá-la. Nem notícias sairiam de lá.
Lavínia Makrov havia deixado de ser um problema.
Ela havia sido selada, enclausurada... controlada.
Mas Celso estava quebrado.
Pela dor. Pela traição.
E, principalmente, por saber que, mesmo livre dela, a ferida aberta em sua alma continuava sangrando.
Seu olhar se voltou para uma caixa trancada em uma gaveta de ferro — lá estavam os papéis do divórcio.
Agora, inúteis.
“Irônico,” ele pensou, “lutei tanto para mudar vida dele e agora... nem posso vê-la para dizer que acabou.”
Mas talvez fosse melhor assim.
Não havia mais o que dizer.
**
Ainda havia outro peso — um mais antigo, mais profundo.
Sua irmã... Karina.
A dor latejava, como uma ferida mal cicatrizada.
Ele havia falhado com ela.
Ele fechou os olhos e viu o rosto dela como era na infância. Risonha, cheia de vida. A garota que ele jurou proteger.
A quem ele prometeu ao pai — no leito de morte — que daria um futuro brilhante.
Mas ele falhou.
Miseravelmente.
Deixou-se cegar por Lavínia.
Permitiu que a esposa influenciasse suas decisões.
Tentou casar Karina com o filho de um Dom da máfia alemã. Um homem mulherengo, sem caráter, que só traria humilhação e infelicidade.
Ela implorou. Chorou. Suplicou.
Mas ele não ouviu.
Guilherme Castellazzo foi o único que estendeu a mão a ela.
Foi ele quem a tirou da armadilha.
Quem a protegeu.
E mesmo assim, Celso afundou ainda mais.
Manipulado por Lavínia, tentou roubar a herança da própria irmã.
Desprezou-a.
E hoje... tudo o que restava era saudade.
Karina era feliz agora — ou ao menos parecia ser.
Mas nunca o perdoou.
Como poderia?
Ele não teve coragem de procurá-la.
Não depois de tudo.
Não depois de pisar na promessa que fez ao pai.
Não depois de destruir a confiança de quem mais o amava.
— “Você era tudo que me restava...” — ele murmurou para o vazio.
A voz falhou.
A saudade não vinha sozinha.
Ela trazia vergonha.
Trazia a consciência de que o homem que ele foi não era digno do cargo que ocupava.
Nem do sangue que corria nas veias de Karina.
Lavínia havia sido neutralizada.
Mas o estrago que causou... esse ainda ecoava dentro dele.
Celso ergueu o olhar para o quarto onde Carlos dormia.
O menino tinha o sorriso da mãe, mas os olhos dele.
Era frágil.
Puro.
E era sua chance de fazer diferente.
De quebrar o ciclo.
— “Por você, filho... eu vou tentar ser melhor.” — sussurrou.
Mas mesmo ali, sozinho, ele sabia que até fazer as pazes com Karina, até conseguir o perdão dela, nada seria suficiente.
Nada apagaria o erro.
Mas talvez...
Só talvez...
Ainda houvesse tempo de reconstruir.
Peso do Nome, a Dor do Silêncio
O sol mal havia nascido, mas Celso já estava de pé.
Vestido de preto da cabeça aos pés, ele olhava para o mapa tático estendido sobre a mesa de reuniões da mansão. Os olhos fixos, mas a mente distante.
Os capos o observavam com respeito — ou medo. O novo Dom da máfia Sol Nascente não deixava espaço para dúvida: ele era frio, estratégico, incansável. Um homem que parecia ter enterrado o coração com o passado.
E, de certa forma, tinha mesmo.
Lavínia estava internada, longe de tudo.
Carlos, seu filho, agora era o centro do universo de Celso.
Mas o universo também podia ser cruel.
— “Vamos eliminar os pontos de infiltração em Okinawa. Se o clã de Ishikawa ousar atravessar a linha de novo, quero que saibam o preço.”
Sua voz era seca. Definitiva.
A máfia precisava de um líder.
Ele seria esse líder.
Mesmo que, por dentro, estivesse desmoronando.
Depois de horas em reunião com seus homens, ele subiu as escadas da mansão, afrouxando a gravata. O som de passos pequenos o fez parar. Carlos corria pelos corredores com o boneco favorito na mão, chamando em voz alta:
— “Mamãe? Mamãe, cadê você?”
Celso sentiu um soco no estômago.
Carlos tinha apenas dois anos, mas já entendia o que era ausência.
Durante os oito meses em que Lavínia esteve confinada na mansão, ela fingiu com perfeição. Acariciava os cabelos do menino, contava histórias, dava risadas forçadas, inventava canções. O amor era falso, mas o apego da criança era real.
E agora, o vazio era ainda mais real.
Carlos vasculhava os cantos da casa, como se em algum lugar entre os sofás e os corredores escuros, a mãe fosse reaparecer sorrindo.
Mas Lavínia nunca mais voltaria.
Celso se ajoelhou e tentou alcançar o filho, mas Carlos se afastou.
— “Não! Quero a mamãe!”
O Dom sentiu os olhos arderem, mas não deixou que as lágrimas caíssem.
Não podia fraquejar. Não diante do filho. Não diante do mundo.
Levantou-se em silêncio e chamou a empregada.
Enquanto a mulher distraía a criança com um desenho animado, Celso foi até o escritório e trancou a porta.
Ali, no escuro, permitiu-se desmoronar.
Sozinho.
— “Você conseguiu, Lavínia...” — murmurou, com os punhos fechados. — “Mesmo longe, mesmo internada, você ainda causa dor.”
Ele culpava a si mesmo por ter deixado Carlos se apegar a ela.
Mas o que podia fazer? Separar mãe e filho à força?
Ele tentou.
Tentou proteger, controlar, amenizar.
Mas Lavínia era uma atriz de guerra. Sabia como manipular até mesmo um bebê.
Agora, Carlos chorava à noite.
Gritava o nome da mãe nos pesadelos.
Acordava procurando pelos braços dela.
E Celso...
Celso era apenas uma sombra.
O pai que tentava ocupar um espaço que jamais seria seu por completo.
Os dias viraram rotina: reuniões, execuções, estratégia, sangue.
E, à noite, histórias infantis contadas com a voz rouca de um homem que esquecia como sorrir.
— “Era uma vez um menino muito corajoso...” — sussurrava, sentado na beira da cama.
Carlos o ouvia com atenção, mas sempre fazia a mesma pergunta no fim:
— “E a mamãe? Onde ela tá?”
Celso respondia com silêncio.
Depois que o menino dormia, voltava para o escritório.
Mais uma garrafa de uísque, mais uma parede rabiscada com nomes, rotas, ameaças.
Ele queria ser o Dom que todos respeitassem.
O nome que ecoaria entre os maiores da máfia.
O homem que ninguém ousaria trair.
Mas no fundo...
O que ele queria era voltar no tempo.
Pegar o garoto nos braços e apagar qualquer traço da mãe que o enganou.
Apagar o próprio erro de ter permitido que ela ficasse por perto tanto tempo.
Mas o tempo não voltava.
E o nome que ele carregava — Farias — era agora um fardo mais do que uma honra.
Do lado de fora, os aliados o aclamavam.
Do lado de dentro, o filho sofria em silêncio.
E ele... apenas sobrevivia.
Mas por Carlos, ele lutaria.
Por Carlos, ele recomeçaria.
Mesmo que sozinho.
Mesmo que quebrado.
O som dos passos ecoava pelos corredores da mansão como um lamento contido. Celso ajeitou o colarinho da camisa e lançou um último olhar ao espelho antes de descer. Seus olhos estavam vermelhos de mais uma noite mal dormida. Carlos, com seus dois aninhos, acordara diversas vezes, choramingando e balbuciando o nome da mãe entre soluços. E ele... mais uma vez, não soubera como consolá-lo.
Naquela manhã, a nova babá chegaria. Não por escolha, mas por pura necessidade.
Ao abrir a porta, deparou-se com uma mulher de expressão doce e postura firme. Chamava-se Helena. Tinha cabelos castanhos presos num coque simples e uma pasta nas mãos.
— Sr. Farias — cumprimentou com seriedade. — Vim conforme solicitado.
Celso assentiu, direto.
— Carlos está no jardim. Ele... está sensível.
Helena apenas fez um gesto sutil com a cabeça e seguiu para os fundos da mansão. Carlos estava sentado na grama, sob a sombra de uma árvore, com o boneco de pano favorito agarrado contra o peito. Os olhos inchados, o rosto ainda manchado de choro.
Assim que viu a mulher se aproximar, o menino virou o rosto, escondendo-o entre os bracinhos e balbuciando:
— Não, não... mamãe, cadê?
Helena não tentou tocá-lo. Apenas se sentou na grama, um pouco afastada, e ficou ali, em silêncio. Fez alguns gestos calmos com as mãos, mostrou o brinquedo de pano que ele tinha deixado cair, mas nada que o pressionasse. E, de alguma forma, aquela presença tranquila começou a quebrar a resistência da criança.
Celso observava de longe. Precisava sair. Tinha um encontro marcado.
Pouco tempo depois, ouviu passos firmes na entrada da casa.
Era Miguel.
O velho mafioso — e pai de Lavínia — Nenhuma menção à filha, nenhum assunto proibido. Aquelas eram as regras.
Celso o recebeu com um aceno breve e o conduziu ao escritório.
— Onde está o meu neto? — perguntou Miguel, a voz mais rouca que o normal.
— No jardim. Com a nova babá. — Celso afundou-se na poltrona, passando a mão pelos cabelos. — Ele está sofrendo, Miguel.
Miguel se aproximou da estante, como se procurasse distração do peso da conversa. Pegou uma garrafa de uísque, serviu dois copos e estendeu um ao genro.
— E você?
Celso aceitou a bebida, mas não respondeu de imediato. Bebeu num gole só, os olhos baixos.
— Tento manter tudo no lugar. A máfia, os aliados, a fachada de poder... Mas quando ele acorda de madrugada e diz “mamãe... vem cá, mamá”, como se ela ainda fosse aparecer pela porta... eu me sinto um lixo.
Miguel permaneceu em silêncio.
— Lavínia destruiu tudo. Enganou o nosso filho por meses. Se fez de mãe. Fez ele se apegar. E agora... ele sente falta dela. Ele a ama. A chama como se ela fosse voltar a qualquer momento.
O velho se aproximou, encarando Celso como se visse o reflexo de um erro antigo.
— Eu tentei fazer alguma coisa por ela, achei que ela mudaria com o casamento de vocês, mas estava errado. — Sua voz era dura, mas havia um peso de cansaço. — Mas também fui cego. Pior... eu sou pai dela.
Celso ergueu os olhos, tomado por mágoas acumuladas.
— Eu só queria proteger o meu filho... — murmurou, a voz embargada. — Mas agora não sei como arrancar dela a dor que ele sente. Como explicar pra ele, Miguel? Ele nem entende o que é perda... só sente o vazio.
Miguel se sentou diante dele, firme.
— Minta.
Celso franziu o cenho.
— O quê?
— Diga que Lavínia morreu.
— Não!
— Escute, Celso. Ela não vai sair de lá nunca mais. A LME decidiu. Lavínia... minha filha... perdeu o direito de ser mãe no instante em que tentou matar uma criança. — Ele respirou fundo, com dificuldade. — E quanto mais tempo Carlos passar esperando por ela, mais vai doer. Dê a ele um ponto final. Crianças esquecem. Ele vai crescer, e a dor vai diluir com o tempo.
Celso virou o rosto, perturbado.
— Você está pedindo pra eu matar a mãe dele... com palavras.
— É a única morte que ela merece. Uma morte simbólica. Indolor. — Miguel se levantou, os olhos pesados de culpa e convicção. — E essa mentira, por mais cruel que pareça, pode ser a única forma de vocês dois viverem em paz.
Celso fechou os olhos.
O silêncio foi preenchido por lembranças. As noites falsas com Lavínia, as promessas vazias, o teatro de uma família que nunca existiu. E agora, o buraco.
— Eu falhei com a Karina — murmurou de repente. — Tentei vendê-la pra fechar uma aliança. Depois roubei tudo dela... tudo por Lavínia. Tudo por uma mulher que só me destruiu.
Miguel não respondeu. Apenas pousou a mão firme no ombro do genro.
— Está na hora de recomeçar, Celso. Pelo Carlos. Pela única coisa que Lavínia deixou de bom.
— Mas como?
Miguel caminhou até a porta, sem olhar para trás.
— Comece enterrando os mortos. Mesmo os que ainda respiram.
E saiu.
Celso permaneceu ali, sozinho.
Do jardim, ouviu uma risada tímida. A primeira em semanas. Carlos, balbuciando palavras desconexas, parecia ter se distraído por um instante com a babá.
Mas logo em seguida, veio a voz fininha e insistente do menino:
— Mamãe? Cadê mamá? Mamãe, vem cááá...
Celso se encurvou na poltrona, cobrindo o rosto com as mãos.
Talvez... talvez fosse mesmo preciso matar o passado.
Mesmo que fosse com uma mentira.
O sol ainda surgia tímido no horizonte quando Celso entrou discretamente no quarto do filho. Carlos dormia encolhido entre os travesseiros, os braços ao redor do boneco de pano que Lavínia havia lhe dado meses atrás.
Celso parou ali por um tempo, observando. O coração apertado.
As palavras de Miguel ainda martelavam em sua mente.
“Minta. Diga a ele que Lavínia morreu. É a única morte que ela merece. Uma morte simbólica. Indolor.”
Ele não queria... mas talvez fosse mesmo necessário. Carlos estava começando a perguntar. Chamava pela mãe com frequência, às vezes no meio da noite, às vezes no jardim, onde dizia vê-la nas flores.
Era hora de dar um ponto final, mesmo que fosse doloroso.
Mais tarde, quando Helena chegou, Celso a esperava na cozinha, com expressão abatida.
— Preciso da sua ajuda — disse, baixo. — Miguel me aconselhou a contar ao Carlos que Lavínia... morreu.
Helena arqueou as sobrancelhas, mas não parecia surpresa.
— E o senhor vai mesmo fazer isso?
— Não tem outro jeito. Ele está sofrendo. Esperando por alguém que não vai voltar. Mas ele só tem dois anos, Helena. Como explicar a morte para alguém que ainda nem entende o que é o tempo?
Helena pousou a mão sobre o braço dele, com suavidade.
— A gente explica com imagens, com amor. Ele não precisa entender tudo. Só precisa sentir que está seguro.
Celso assentiu, engolindo em seco. — Me ajuda?
—
Naquela tarde, os três estavam no jardim. Carlos brincava com folhas e pedras, fazendo de conta que eram carros e monstros. Helena o chamou suavemente e apontou para o céu.
— Olha lá, Carlos... tá vendo aquela estrela bem alta, mesmo com o sol?
Carlos arregalou os olhos.
— ‘Tá brilhando! — ele apontou, animado.
Celso se sentou ao lado, com o filho no colo. Seu tom era baixo, quase um sussurro.
— Sabe, filho... às vezes, quando uma pessoa vai morar muito, muito longe, ela sobe lá pro céu. E vira uma estrelinha assim, ó... só pra continuar olhando pra gente.
Carlos o olhou, confuso.
— Mamãe?
Celso assentiu devagar.
— A mamãe ficou cansada, meu amor. O coração dela ficou dodói. Então ela foi descansar lá no céu. Mas ela ainda ama você. E agora, virou uma estrela linda, que brilha só pra te proteger.
Carlos ficou em silêncio, os olhinhos marejando sem entender por completo. Depois, encostou a cabeça no peito do pai.
— Mamãe ‘tá dormindo no céu?
Helena se aproximou, sorrindo com doçura.
— Está sim. E quando você sentir saudade, é só olhar pro céu e mandar um beijinho. Ela vai receber.
Carlos fez exatamente isso. Levantou a mãozinha, estalou um beijo no ar e riu, tímido.
Celso não conseguiu segurar a emoção. Apertou o filho com força, deixando as lágrimas caírem em silêncio. Helena desviou o olhar, respeitando o momento.
—
Mais tarde naquela noite
Carlos dormia tranquilo, abraçado ao boneco. Celso ficou em pé à porta, como se vigiasse o sono do menino.
Helena apareceu ao lado dele com uma xícara de chá.
— Você foi forte hoje.
— Não me senti forte. Me senti um covarde por ter que mentir pra ele.
— Às vezes, proteger também é escolher qual dor a gente evita. — Ela olhou para o menino. — E o senhor escolheu a dele, não a sua.
Celso suspirou, com a voz trêmula.
— Eu só quero que ele cresça livre dela. Da ausência dela. Da sombra dela.
Helena encostou no batente, suave.
— Ele vai crescer com amor. E isso é o que importa. O resto… o tempo transforma.
No céu, entre as estrelas tímidas que começavam a surgir, Celso buscou por alguma que parecesse familiar. E escolheu uma para chamar de Lavínia.
Mesmo que ela não estivesse lá.
Mesmo que fosse só uma mentira contada por amor.
Os dias seguintes à conversa no jardim foram delicados como vidro fino. Carlos, ainda pequeno demais para entender a profundidade da ausência, sentia em seu corpinho de dois anos uma mudança silenciosa. O nome da mãe, antes dito com frequência e esperança, agora saía com hesitação, como se ele próprio estivesse aprendendo a aceitar que ela não voltaria.
— Papai... mamãe virou estrela? — perguntava, de vez em quando, ao olhar para o céu.
Celso, com o coração apertado, apenas o abraçava e respondia com um aceno leve.
— Virou sim, filho... e ainda brilha por você.
No início, Carlos acordava chorando no meio da noite, chamando por Lavínia entre soluços confusos. Era Helena quem corria primeiro, quem o pegava no colo com ternura, balançava nos braços e cantava baixinho uma canção que ela própria cantava para o filho que já não tinha mais.
Celso, parado na porta, a observava, sentindo uma dor que era espelho da dela.
—
Com o passar dos dias, as noites foram se tornando menos turbulentas, e os dias mais leves. Carlos passou a brincar mais, a se distrair com os jogos simples que Helena inventava. A ausência da mãe ainda pairava no ar, como perfume que insiste em ficar mesmo quando o frasco se vai — mas já não doía com o mesmo corte.
Celso voltava do trabalho cansado, muitas vezes em silêncio, e encontrava a casa em ordem, Carlos limpo, alimentado, e um cheiro quente de comida no ar.
— Ele comeu bem hoje — dizia Helena. — Pediu dois pratos. Depois correu pro quintal e ficou falando com a estrela da mamãe.
Celso sorria de lado, meio triste, meio aliviado.
— Você tem sido um apoio... maior do que imagina.
Helena balançava a cabeça.
— Eu só estou tentando dar o que um dia também precisei. Depois que meu filho e meu marido se foram... só me restou servir. A dor me fez útil.
Foi naquela noite, sentados à mesa, que Celso soube a história que nunca tivera coragem de perguntar.
—
O marido de Helena fora um dos soldados mais leais da máfia Sol Nascente. Homem bom, silencioso, que preferia lutar por honra do que viver em paz com covardia. Quando Rafael Castellazzo foi capturado tentando salvar sua esposa Aléssia das mãos de um coreano de uma mafia rival a sol nascente , o marido de Helena se voluntariou para a missão de resgate.
Ela segurava a xícara de chá com mãos firmes, mas os olhos denunciavam o tremor da alma.
— Eles foram com a LME. Era um grupo pequeno. Infiltrado. Corajoso. Mas... não foram todos que voltaram.
Celso ouvia em silêncio, o peito cada vez mais apertado.
— Quando soube da morte... não chorei de imediato. Primeiro fui pegar meu filho na escola. Ele nunca soube que o pai morreu. Teve febre naquela noite. Dormiu no meu colo e, no dia seguinte... não acordou.
Celso fechou os olhos por um segundo. Era como se a dor dela tivesse ganhado eco na própria pele.
— Desde então — continuou ela —, cuidar de crianças com o coração ferido virou meu jeito de manter viva a memória dele.
—
A partir daquele dia, algo mudou entre eles. Não foi um laço romântico, nem um flerte mal escondido. Era mais íntimo, mais seguro. Como um irmão que encontra consolo numa irmã que não nasceu do mesmo sangue, mas da mesma dor.
Helena passou a ser mais do que a babá. Era a voz calma nos momentos em que Celso perdia a paciência com Carlos. Era quem fazia questão de preparar o jantar quando ele voltava exausto. Era quem dava conselhos simples, como alguém que conhecia a vida pela ponta dos dedos calejados.
E Celso passou a cuidar dela também — mesmo sem perceber. A chamava para almoçar com eles, dividia as tarefas, comprava flores para a casa dizendo que era para “alegrar o ambiente”, mas as deixava sempre na mesa onde Helena tomava café.
Carlos começou a chamá-la de “Tia Lena”. Às vezes, corria para os braços dela quando se machucava, antes mesmo de buscar o colo do pai. E Celso não sentia ciúmes. Sentia gratidão.
—
Num fim de tarde, os dois estavam sentados na varanda, observando Carlos brincar com pedrinhas no chão.
— Ele está mais leve — comentou Helena. — Acho que já começou a entender, mesmo sem entender.
Celso observou o filho e respirou fundo.
— Ele é forte... talvez mais do que eu fui.
Helena sorriu de leve.
— Porque ele tem você. E não está sozinho.
Celso a olhou, com sinceridade nos olhos.
— E nem eu.
A partir daquele momento, a casa não era mais apenas um lugar com dois corações machucados. Era um abrigo. Um recomeço silencioso. Um espaço onde a dor se transformava em companheirismo.
Helena, a babá. Carlos, o menino que perdeu a mãe. E Celso, o homem que aprendeu que amizade também pode ser família — e que algumas perdas se curam devagar, com o tempo e com mãos que não nos abandonam
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