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Prometida ao Tirano, Amada Pelo Inimigo

Capítulo 1 – O Início do Silêncio

Os sinos do templo soavam longos e profundos, marcando o início de mais um dia no Reino de Virelle. Lá do alto das muralhas de mármore, o sol dourava os telhados como se tentasse pintar de esperança uma terra que há muito havia esquecido o que era sonhar.

A rainha Elira observava a paisagem de sua sacada, o manto azul que cobria seus ombros balançando ao vento como se também tentasse escapar.

Seu reflexo no espelho do vitral mostrava uma mulher jovem, esbelta, de olhos intensos e longos cabelos escuros, que jamais haviam sido tocados por um homem, nem mesmo por seu marido, o rei Kael.

Casaram-se quando ela tinha dezessete anos. Um casamento arranjado, como tantos antes, entre famílias de poder. Kael era bonito, culto, promissor. Elira se entregou ao destino com dignidade, acreditando que poderia haver amor, ou ao menos companheirismo. Por um breve período, ele fingiu ser esse homem. Chegava com flores, sorrisos gentis, versos recitados nos corredores. Mas tão logo a aliança brilhou em seu dedo, a verdade emergiu: Kael era frio. Calculista. E, pior, alheio.

Ele nunca a beijou. Nunca deitou ao lado dela. A presença de concubinas preenchia o lugar onde um marido deveria estar. E ela? Era a figura silenciosa ao lado do trono. Uma rainha sem voz.

— Majestade, a Duquesa Mavara solicita sua presença no salão de chá — disse Lia, sua dama de companhia, com uma reverência contida.

Elira fechou os olhos por um instante. Duquesa Mavara — sua sogra — era a sombra mais constante e cruel em sua vida no castelo. Uma mulher de poder enraizado, olhos de gelo e língua afiada.

— Diga a ela que irei em breve — respondeu Elira, voltando-se com a serenidade de uma estátua esculpida para parecer perfeita, ainda que o mármore por dentro estivesse rachado.

O salão de chá era um aposento repleto de tapeçarias com cenas de caça, móveis entalhados com ouro envelhecido e pratos de porcelana importada. A Duquesa Mavara sentava-se no centro, como uma aranha em sua teia, com um vestido escuro e uma expressão de eterna decepção.

— Chegou atrasada — disse ela, sem desviar o olhar do bule que vertia chá.

— Perdoe-me, Duquesa — Elira respondeu com a habitual educação.

— As rainhas devem inspirar pontualidade. Dignidade. Autoridade. Ainda que não tenham sequer gerado um herdeiro.

Elira se sentou sem dizer nada. Havia aprendido a escolher quais batalhas lutar. Algumas palavras, ditas por aquela mulher, mereciam apenas o silêncio.

— O rei prepara-se para receber o príncipe de Serendale nos próximos dias — anunciou Mavara, pegando uma fina fatia de bolo. — Um inimigo antigo, agora travestido de aliado. Cuidado com os sorrisos dele, minha rainha. Os homens que não se curvam ao poder, disfarçam a lâmina com charme.

Elira ergueu as sobrancelhas.

— O príncipe não vem em missão de guerra, duquesa. Apenas para fortalecer laços.

— Homens vêm para conquistar, minha querida. Seja reinos... ou rainhas.

O olhar de Mavara perfurava a alma, como se soubesse o que nem o destino havia escrito ainda. Elira sentiu um arrepio involuntário. O que esperava daquele encontro com o príncipe de um reino rival?

Três dias depois, os portões do castelo se abriram para o séquito de Serendale. Os soldados trajavam mantos negros bordados em vermelho-escarlate, como sangue vivo sobre a neve. E entre eles, montado em um cavalo branco, o príncipe Auren.

Elira o viu da varanda do salão nobre. Ele parecia feito de fogo contido. Havia uma ousadia natural em seu porte, um charme sem esforço. Tinha os cabelos dourados como o entardecer e olhos cor de âmbar, que carregavam a serenidade perigosa de quem sabe o próprio poder.

Ele desmontou com leveza, olhou ao redor e, mesmo distante, seus olhos cruzaram os dela.

E Elira sentiu algo estranho — como se, pela primeira vez em anos, não fosse invisível.

O banquete de recepção foi preparado com grandiosidade. Virelle queria mostrar opulência, dominação. Kael queria intimidar. Mas Auren parecia imune a tudo isso. Sorriu, brindou, cumprimentou... e finalmente foi apresentado à rainha.

— Vossa Graça — disse ele, inclinando-se educadamente.

— Príncipe Auren — ela respondeu, com a voz firme, porém suave.

Ele não lhe estendeu a mão, mas seus olhos ficaram fixos nos dela por segundos que pareceram mais longos do que qualquer ritual. E, em silêncio, Elira soube que ele a via.

Durante o jantar, Elira manteve-se em silêncio a maior parte do tempo. Mas não conseguiu evitar notar como Auren, mesmo cercado por cortesãos bajuladores, lançava olhares furtivos em sua direção. E como, ao falar, sua voz se destacava de todas as outras — grave, pausada, segura.

Kael não a tocou uma única vez naquela noite. Quando brindou com Auren, o fez com uma frieza que cortava. O povo começava a murmurar pelas esquinas do reino: o rei se isolava mais a cada dia, e seu temperamento tornava-se cada vez mais imprevisível.

Auren parecia perceber tudo. E parecia intrigado.

No dia seguinte, Elira foi até a estufa real para colher algumas ervas para seus banhos. Era uma de suas poucas liberdades no palácio — cuidar de flores, preparar chás. Um pequeno jardim secreto, que só ela e Lia conheciam bem.

Mas, naquela manhã, não estava sozinha.

— Majestade — disse Auren, surgindo entre as folhas de madressilva. — Espero que não considere minha presença uma invasão.

Ela se virou, surpresa, mas sem se mostrar abalada.

— Apenas... inesperada.

— Às vezes, o inesperado é o que nos mantém vivos.

Ela ergueu os olhos, medindo cada palavra dele. Havia uma provocação gentil ali. Mas também um interesse sincero.

— Não esperava que um príncipe soubesse apreciar jardins.

— Não sou um príncipe comum — ele respondeu, agachando-se diante de uma flor violeta. — Eu gosto do que é belo, mas não óbvio.

Elira não respondeu de imediato. Auren tocou uma pétala, depois se levantou lentamente.

— Sua Majestade também parece gostar do silêncio.

— No meu mundo, o silêncio é uma armadura.

— Ou uma prisão.

A resposta o surpreendeu. E Elira, ao ver isso, deixou escapar um leve sorriso.

— E o que faz um homem como você tão interessado na prisão de outra?

— Porque talvez ela não precise ser prisão, mas passagem.

Ela segurou o frasco de vidro com ervas com mais força.

— Príncipe Auren... — disse, por fim, com um tom que procurava distanciamento. — Seria imprudente começar a falar como poeta em solo que ainda pode se tornar campo de guerra.

Ele se aproximou um passo. Não o suficiente para invadir, mas o bastante para deixá-la consciente do calor de sua presença.

— Talvez. Mas entre guerras e poesias, prefiro as verdades que se dizem nos olhos.

Ela o olhou. Longamente. Não havia toque. Não havia beijo. Mas naquele instante, alguma coisa nasceu. Pequena. Ardente.

Ela se virou antes que se queimasse mais.

— Aproveite sua estadia em Virelle, Vossa Alteza.

— Se for ao seu lado, Majestade... será mais do que proveitosa.

Naquela noite, sozinha em seus aposentos, Elira tocou os lábios com a ponta dos dedos. Não por causa de um beijo, mas pela ausência dele. Pela promessa que ela sentia no ar — uma promessa silenciosa, perigosa, mas viva.

Pela primeira vez em muito tempo, ela não se sentia apenas a rainha de um rei tirano.

Ela se sentia... mulher.

Capítulo 2 – Entre Olhares e Espinhos

O sol se infiltrava por entre os vitrais altos do salão de leitura, lançando cores sobre as prateleiras antigas e os tapetes macios. Elira passava os dedos pelas lombadas dos livros com distração, como se buscasse um refúgio que nenhum título podia realmente oferecer.

Desde o encontro com Auren na estufa, seus pensamentos haviam se tornado um campo de batalha silencioso. A presença dele rondava como um perfume persistente. Era impossível ignorá-lo.

Lia entrou no salão com uma reverência suave, trazendo consigo um pequeno bilhete sobre uma bandeja de prata.

— Chegou esta manhã, Majestade.

Elira abriu o pergaminho com delicadeza. A caligrafia era firme, elegante, sem excessos — masculina.

“Descobri que há rosas brancas nos jardins do lado norte, mas dizem que só florescem sob olhos atentos. Permita-me apreciá-las com a senhora?”

Não havia assinatura. Não precisava.

Elira segurou o bilhete por um tempo. Depois o dobrou cuidadosamente e o guardou no decote do vestido, como se fosse uma confidência roubada.

No final da tarde, ela caminhou até o jardim norte, o mais escondido de todos os que cercavam o palácio. Era o mesmo onde os servos raramente iam, e onde as rosas brancas cresciam entre espinhos altos e silêncios perfumados.

Auren já estava lá.

De costas, ele observava uma das flores com a concentração de um artista diante da tela. Seu manto escuro contrastava com a palidez das pétalas, e seus cabelos dourados brilhavam sob o último raio de sol.

Elira se aproximou devagar, sem anunciar sua chegada. Mas ele não se assustou.

— Pensei que não viria — disse ele, sem virar-se.

— Pensei que não devia.

Ele se voltou para ela, os olhos âmbar acesos como se tivessem guardado o próprio crepúsculo.

— O dever pode ser a mais cruel das correntes.

Elira deu um passo mais perto, mas manteve a distância de segurança. Sempre essa distância.

— Por que me procura, príncipe?

— Porque, entre todos os rostos desse castelo, o seu é o único que não mente.

Ela ergueu o queixo, como quem quer parecer impenetrável. Mas os olhos dela já traíam algo mais.

— Vossa Alteza é um homem ousado.

— Ousado ou apenas honesto?

Ele estendeu a mão para uma das rosas, e um espinho cortou-lhe o dedo. Uma gota de sangue rubra manchou a flor branca.

Elira se aproximou instintivamente e segurou a mão dele com delicadeza.

— Precisa tomar mais cuidado.

— É curioso como, mesmo nos espinhos, há beleza.

Ela pegou um lenço de seda do cinto e envolveu seu dedo ferido, os olhos fixos no gesto. As mãos se tocaram. A pele dele era quente. Firme. E ela sentiu o mundo inclinar levemente.

Quando ergueu os olhos, os rostos estavam mais próximos do que deveriam.

Auren sorriu, um sorriso carregado de promessas não ditas.

— A rainha está cuidando de um príncipe rival. Isso seria escandaloso em qualquer outro reino.

— Talvez. Mas escandaloso é ignorar a dor — disse ela, soltando sua mão com um toque final suave demais para ser puramente cuidadoso.

— Ou ignorar o que é verdadeiro — sussurrou ele.

Elira deu um passo para trás, quebrando o encantamento.

— Preciso voltar antes que notem minha ausência.

Auren inclinou a cabeça com um gesto de respeito, mas os olhos dele a seguiram como uma carícia silenciosa.

Ela caminhou de volta sentindo o coração martelar contra o peito. Como se a cada olhar de Auren, mais uma parte dela acordasse da anestesia que havia sido o casamento com Kael.

Os dias seguintes foram preenchidos com encontros velados. Palavras trocadas nos corredores, olhares que se cruzavam nos banquetes, sorrisos roubados quando o rei estava de costas.

Em uma manhã chuvosa, Elira foi até a biblioteca apenas para encontrá-lo casualmente sentado na janela, um livro nas mãos.

— Está se tornando um hábito, Alteza — ela disse, disfarçando o sorriso.

— A leitura ou a sua presença?

Ela riu, algo raro. Algo precioso.

— Os dois parecem igualmente perigosos.

— Ah, mas é o perigo que nos torna vivos, Majestade.

Auren fechou o livro e se levantou. Caminhou em direção a ela com calma, como quem conhece o efeito de cada passo. Parou tão perto que Elira podia sentir o cheiro de couro molhado, tabaco leve e um toque de especiarias.

— Diga-me uma coisa — murmurou ele. — Você sente falta de ser tocada?

A pergunta foi tão inesperada quanto cortante.

Elira desviou os olhos, mas não recuou.

— Isso não é apropriado.

— Apropriado é uma palavra que aprisiona. Eu prefiro as que libertam. Desejo. Sede. Verdade.

Ela engoliu em seco. Auren não tentou tocá-la. Mas a ausência do toque era, por si só, uma provocação.

— O que pretende com tudo isso?

— Não pretendo, Elira. Sinto. E o que sinto é que você está tão viva quanto eu... mas se convenceu de que deve viver em silêncio.

— E o que mudaria isso?

— Um beijo?

Ela o encarou, os olhos cheios de tempestades contidas.

— Não ainda.

Auren sorriu, satisfeito. Como se tivesse acabado de vencer um jogo que ainda estava no início.

— Quando for a hora... você saberá.

A cada dia, Elira percebia a diferença gritante entre os dois homens que ocupavam seu mundo.

Kael havia se tornado um rei ausente, preocupado apenas com guerras, alianças e concubinas. Frio ao toque, vazio nas palavras.

Auren, por outro lado, era tudo que Kael não era: presente. Atento. Incansável em sua curiosidade por ela. Ele a escutava como se cada palavra que ela dissesse fosse um segredo precioso.

E, com o tempo, ela começou a contar mais do que devia.

Sobre sua infância em Loryen. Sobre as noites em que sonhava com o mar. Sobre o medo que sentia quando o rei batia a porta de seus aposentos — não por desejo, mas por ódio.

Auren escutava. E, quando falava, sua voz era um sussurro que tocava a alma.

— Você não foi feita para obedecer ordens, Elira. Você nasceu para inspirar rebeliões.

Na noite do festival da Lua, o povo se reuniu nas praças do reino. Fogos, danças, luzes. Mas no castelo, o clima era tenso. O rei havia sido contrariado pelo conselho real e, em sua fúria, recusou-se a participar das celebrações.

Elira desceu até os jardins iluminados por tochas. Mas não demorou para que um certo príncipe surgisse entre os corredores de buxo aparado.

— Achei que não viria — ela disse, com um sorriso contido.

— Eu jamais perderia uma chance de vê-la sob a luz da lua.

Auren se aproximou e, desta vez, ofereceu o braço.

Elira hesitou. Depois, com um leve gesto, segurou-o.

Caminharam entre as lanternas, em silêncio, até que chegaram a uma parte afastada do jardim. A música da festa se tornava distante, um eco no vento.

— Você está se apaixonando por mim, Elira? — ele perguntou, com a voz baixa, quase um sussurro no pescoço dela.

Ela o olhou nos olhos. Profundamente.

— Não sei ainda.

— Eu saberei por você, então.

Ele ergueu sua mão e a beijou na parte interna do pulso, lentamente. A pele dela se arrepiou.

— Isso... é loucura — ela murmurou.

— Talvez. Mas e se a loucura for o único caminho para a liberdade?

Ela recuou um passo, o coração batendo descompassado.

— Você quer me perder, Auren?

— Eu quero que você se encontre.

Naquela noite, Elira não dormiu.

O toque nos dedos. O olhar demorado. O calor do corpo dele. Tudo ardia sob sua pele como fogo escondido.

Ela ainda não sabia o que aconteceria. Ainda havia muralhas demais entre eles.

Mas pela primeira vez em sua vida, ela ansiava queimar.

Capítulo 3 – Jogo de Sombras e Promessas

O céu estava cinzento naquela manhã. A neblina pairava sobre os jardins como um véu de mistério, e o ar tinha o cheiro frio de chuva prestes a cair. Elira observava pela janela do salão de chá, onde gotas de orvalho escorriam lentamente pelos vidros.

Era o tipo de manhã que pedia silêncio — e talvez confissões.

Ela deveria estar revendo documentos do reino ao lado do conselheiro real, mas o rei havia cancelado a reunião de última hora. Irritado com os boatos de que o povo começava a clamar por mudanças. Boatos que, curiosamente, coincidiam com a presença recente do príncipe Auren em terras de Kael.

— Sempre que o céu se cobre, parece que os segredos do mundo ganham coragem para sair — disse uma voz masculina atrás dela.

Elira não precisou se virar. Auren.

— E o que o céu lhe inspiraria a confessar hoje, príncipe?

— Que sua ausência me inquieta mais do que qualquer tempestade.

Ela finalmente se virou. Ele estava ali, recostado na parede, com os braços cruzados e os olhos fixos nela como se o mundo estivesse suspenso entre uma palavra e outra.

— Não nos vemos há dois dias — comentou ela, tentando manter o tom neutro.

— Dois dias, sete horas e um punhado de pensamentos inconfessáveis.

Elira não conteve o riso breve. Auren tinha esse dom: transformava cada encontro num jogo onde o desejo era a peça principal, mas jamais movida cedo demais.

— Isso é perigoso.

— Perigoso seria continuar fingindo que não há fogo entre nós.

Ela se aproximou da mesa, fingindo buscar uma das taças de cristal. Auren acompanhou o movimento com os olhos, mas não se moveu. Quando ela ergueu a bebida aos lábios, ele falou de novo.

— O rei, dizem, perdeu o favor do povo. — A voz dele era baixa. — E da própria rainha?

Elira apoiou a taça com mais força do que o necessário.

— Há coisas que não se dizem nem quando o céu está nublado.

— Mas podem ser ditas com o corpo. Com os olhos.

Ele caminhou até ela. Parou a poucos centímetros. O perfume dele a envolveu de novo — um misto de couro, especiarias e um calor masculino inconfundível. Um arrepio percorreu sua espinha.

— Quando me olha assim — continuou ele — você esquece quem eu sou.

— E o que você é?

— Seu inimigo, teoricamente. Mas eu prefiro pensar que sou o primeiro homem a realmente enxergar você.

Elira fechou os olhos por um instante, sufocando o impulso de tocá-lo. Ele parecia ler seus pensamentos.

— Posso tocá-la?

Ela abriu os olhos. Havia vulnerabilidade ali, sim. Mas também coragem.

— Só a mão.

Ele estendeu a palma. Ela pousou a dela sobre a dele. O contato era quente. Intenso. E ainda assim, contido.

Ele virou a mão dela devagar e acariciou a parte interna do pulso com o polegar. O gesto era sutil, mas enviou ondas por todo o corpo de Elira.

— Você treme — disse ele, com um sorriso leve.

— Não é medo — ela respondeu.

— Eu sei.

Mais tarde naquele dia, Elira entrou na sala de música, onde os músicos da corte ensaiavam discretamente. Um dos salões menos frequentados do castelo, mas que ela amava por sua acústica e isolamento. Era ali que, quando mais jovem, ela sonhava em tocar harpa sem ninguém ouvir.

E foi ali que o destino decidiu brincar novamente.

Auren estava sentado diante do instrumento, os dedos dedilhando cordas com surpreendente delicadeza. Quando a viu, sorriu com prazer visível.

— Achei que viria.

— Acha muitas coisas, Alteza.

— Algumas delas estão certas.

Ele se levantou e a guiou até o banco da harpa.

— Sente-se. Quero ouvir você tocar.

— Não toco há anos.

— Tente. Por mim.

Elira hesitou, depois se deixou levar. Seus dedos tocaram as cordas, produzindo notas suaves e um pouco hesitantes. Auren a observava com a atenção de quem assiste a uma revelação.

— Isso... — ele disse baixinho. — Isso é o som da sua alma.

Ela parou de tocar e desviou o olhar, envergonhada.

— Você é mesmo assim com todas as mulheres?

— Com todas as mulheres que me tomam o fôlego. Até agora... só você.

Ele se aproximou mais. Seus dedos pousaram suavemente sobre os dela.

— Não precisa ter medo de mim.

— Tenho medo de mim mesma — confessou ela.

— Então, permita-se aos poucos. Um gesto de cada vez.

Ele entrelaçou os dedos aos dela. Os olhos estavam tão próximos que ela podia ver o brilho âmbar neles, a forma como a íris mudava de tom conforme a luz.

— Se eu pedisse para tocar seu rosto, você deixaria?

Elira hesitou, depois assentiu com um leve movimento de cabeça.

Auren levou a mão livre até o rosto dela, contornando com as costas dos dedos sua mandíbula, depois a curva do queixo, até a têmpora.

— Você é feita de mármore e fogo — sussurrou ele.

Ela fechou os olhos. Pela primeira vez em muito tempo, se sentia viva.

Mais tarde, no salão principal, durante o jantar, os olhares dos dois se cruzavam em silêncio. Auren, sentado entre os diplomatas estrangeiros, fingia participar das conversas. Mas seus olhos estavam sempre nela.

O rei Kael parecia irritado. Havia rumores de que seu exército perdera uma batalha importante no norte. Seu humor, já sombrio, se tornara quase cruel.

Durante a refeição, ele mal olhou para Elira. A atenção dele era voltada para uma das concubinas, uma jovem de cabelos dourados que ria alto demais.

Quando a concubina lhe tocou o braço, Elira se retirou da mesa sob o pretexto de dor de cabeça.

Auren a seguiu minutos depois.

Nos corredores escuros do castelo, encontrou-a diante de uma das tapeçarias antigas, os dedos pressionando as têmporas.

— Devo dizer que sua ausência deixou o salão um pouco mais frio — comentou ele.

Ela se virou, surpresa.

— Está me seguindo agora?

— Estou me preocupando.

— Isso... é perigoso. — Seus olhos estavam úmidos, embora ela tentasse esconder.

Auren se aproximou. Tomou uma mecha de seu cabelo e a envolveu entre os dedos.

— Posso tirar você daqui um dia, sabia?

— E para onde me levaria?

— Para um lugar onde os olhos que te tocam não sejam de desprezo. Onde as mãos que te alcancem não sejam de propriedade. Onde você possa ser... apenas Elira.

Ela respirou fundo.

— Eu não posso. Ainda não.

Ele assentiu, respeitoso. Mas sua voz veio baixa, quente.

— Então me deixe ser o lugar onde você respira, mesmo que só por um momento.

Naquela noite, Elira se deitou sem sono. Cada palavra de Auren, cada toque, cada olhar... tudo ecoava.

Ela passou os dedos pela pele do pulso, onde ele havia a tocado mais cedo. Ainda ardia. Um calor invisível.

E, pela primeira vez, ela não se sentiu culpada por desejar.

Não se sentiu fraca por sonhar.

Sentiu-se viva.

E no fundo do peito, começou a nascer algo perigoso. Doce. Incendiário.

Algo que só cresceria.

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